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CULTURA

A história de Isaiah Bradley: eugenia, racismo e luta negra nos quadrinhos

Arthur Gibson*

Na série “Falcão e o Soldado Invernal” vemos o personagem Isaiah Bradley nas telas pela primeira vez. Apesar de não ser um personagem muito presente nas histórias da Marvel, ele é muito importante pois abre várias possibilidades de pensar criticamente este universo.

Nos quadrinhos Isaiah Bradley era um soldado americano quando foi submetido à força, junto com centenas de colegas negros, a experiências que buscavam reproduzir o soro do supersoldado que criou o Capitão América. Ele foi o único sobrevivente destes experimentos. 

Enviado à Europa, ele luta contra o Eixo e, em uma das missões, resolve pegar escondido e usar o uniforme do Capitão América. Por isto é condenado à prisão e acaba obrigado a manter silêncio sobre sua trajetória.

A criação do personagem, em 2003, representa uma crítica tanto à história americana quanto aos quadrinhos dos anos 1930-40. Quando o Capitão América foi criado as ideias eugênicas eram amplamente aceitas, tanto na Europa quanto nos EUA. O objetivo era guiar a evolução humana, buscando o melhoramento da espécie por meio de políticas que estimulavam a reprodução dos elementos considerados mais saudáveis, restringindo os menos aptos.

Nesta época, estas noções eram totalmente atravessadas pelo racismo e pelos preconceitos de todo tipo, que colocavam os mais pobres, os imigrantes, os portadores de necessidades especiais e os grupos étnicos não-brancos como indesejados.

O Capitão América é, ele mesmo, criado por uma experiência eugênica que visava formar uma raça de supersoldados, superior física e mentalmente. Não à toa Steve Rogers é um homem alto, forte, branco, loiro e de olhos azuis, uma representação do ideal buscado pela eugenia. A história de origem de Isaiah Bradley surge justamente para problematizar a versão original, higienizada e essencialmente positiva da experiência eugênica nas revistas do Capitão América.  

A história de origem de Isaiah Bradley se inspira também no caso do estudo sobre sífilis da cidade de Tuskegee, no Alabama. Neste experimento, cidadãos negros foram estudados ao passo que eram mantidos sem conhecimento de sua situação de saúde e sem acesso a tratamento adequado.

Também por isso quando Isaiah Bradley usa o uniforme do Capitão América ele é desenhado com um escudo com o logotipo do “Duplo V”. Esta foi uma campanha organizada pelo jornal negro Pittsburg Courier, e que pregava a necessidade de que a luta durante a Segunda Guerra Mundial fosse pela vitória “em casa e no exterior”. Com isso buscava-se mobilizar soldados e civis a lutarem pela liberdade contra as forças do eixo, mas também pela democracia dentro dos EUA, onde a população negra continuava sem cidadania plena nem acesso efetivo a direitos. 

Assim, a criação de Isaiah Bradley por Kyle Baker e Robert Morales é uma tentativa de discutir o tratamento dado à população negra ao longo da história dos Estados Unidos. É também uma denúncia não apenas do contexto histórico que levou à criação do Capitão América, mas à própria narrativa dos quadrinhos que durante décadas alimentou o racismo no país. Inserida no personagem está a mensagem de que a história da população negra dos EUA precisa ganhar destaque e ser valorizada.

 

* Arthur Gibson é professor e historiador. Estuda as relações entre história, política e cultura pop; e escreve sobre estes temas no www.instagram.com/artugibson.

Uma versão completa deste artigo, em formato acadêmico, pode ser encontrado no livro “Negritude, poderes e heroísmos”, vendido no site da editora Conexão 7.