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Vivos – e preparados

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

Um verdadeiro lockdown, acompanhado da aceleração da vacinação em massa, do auxílio emergencial aos trabalhadores, dos aportes aos pequenos comerciantes e da proibição de demissões, é vital para que percamos menos vidas – dentre as milhares que certamente perderemos – nas próximas semanas.

O governo, por óbvio, é contra isto, pois seu plano é a morte, o genocídio tout court. A dita oposição liberal, representante do Deus mercado, fazendo jus à sua base social e seus cordeiros midiáticos, não consegue agir senão pela lógica de um economicismo imediatista, e as mortes, seja lá como e quantas forem, não são um problema até que ameacem os lucros. O principal partido da esquerda, por sua vez, parece só pensar em 2022, como se a filosofia iluminista liberal que certa feita afirmou que “houve história, mas não há mais” fosse verdadeira, e como se tudo se reduzisse ao ramerrão da democracia liberal e seu calendário, incluindo o bolsonarismo genocida, o qual só poderá ser derrotado nas urnas, o que faria, segundo tal raciocínio pueril, com que os ponteiros da história voltassem pacificamente para antes do golpe de 2016.

Mas talvez não seja correto obnubilar o fato de que também nós, da esquerda socialista, demoramos muito pra defender uma política de efetivo lockdown e seus necessários complementos mencionados acima. Durante toda a pandemia, não houve só um momento de possibilidade de se derrubar o governo, o que, portanto, justificaria a defesa das pessoas irem às ruas e se aglomerarem na forma de mobilizações para dar um basta ao genocídio. Sob a égide do governo, a aquiescência da burguesia, a apatia do PT e a insignificância resignada da esquerda socialista o que prevaleceu, na verdade, foi o “novo normal”, cada vez mais letal. A própria esquerda socialista, equivocadamente, ponderava que “a massa talvez não fosse fosse apoiar um lockdown” ou que este poderia não ser senão um pretexto para “políticas de exceção” (fechamento do regime). Muitos de nós não levamos a questão a sério, na gravidade que ela tem e sempre teve. Muitos foram pra rua fazer campanha eleitoral e simplesmente esqueceram de voltar pra casa. Não seria de todo surpreendente se descobríssemos depois que pais e avós de uma juventude de esquerda e “progressista” acabaram mortos por conta do egoísmo ou da “saúde mental” de seus filhos e netos, que não se furtaram a lotar bares e promover confraternizações e meio à alta circulação do vírus. Alguns importantes mandatos da esquerda socialista começaram a funcionar antes mesmo do início do ano “letivo” das câmaras municipais, e o fizeram de forma presencial.

Evidentemente, nada disso explica a tragédia brasileira, mas fala um pouco da nossa. Caminhamos para uma hecatombe sem precedentes e temos parlamentares e subcelebridades da esquerda postando diariamente sobre os acontecimentos em uma tal “casa” no Projac. A realidade virou “uma ideologia de si mesma”, e talvez Adorno tenha acertado nisso. Agora, contudo, é hora de se cuidar, refletir e tentar encontrar, teórica e praticamente, onde pode estar “a negatividade” desse movimento do real, sobre a qual podemos, talvez, intervir pra efetivá-la. Esse é o nosso desafio, e exige rigor teórico e uma prática crítica (práxis).

Talvez a hecatombe atinja um ponto em que enfraqueça o governo de tal maneira que coloque a possibilidade de sua derrubada, e se houver algum mínimo avanço subjetivo entre os explorados e oprimidos até lá, pode haver, talvez – e sempre talvez -, um “lapso de possibilidade” de intervenção real da esquerda socialista nesse processo, quando talvez, aí sim, o risco da contaminação de milhares ao ir pras ruas derrubar Bolsonaro seja necessário e se justifique como a única forma de evitar mais dezenas de milhares de mortes. Pode demorar, mas pode ser rápido. Não sabemos. Mas temos que estar preparados e vivos, pois os mortos não costumam derrubar governos.

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