Os poderosos podem matar uma, duas ou três rosas,
mas jamais conseguirão deter a primavera inteira
(Che Guevara)
Terminada a apuração dos votos no Equador, após o comparecimento de mais de 80% dos eleitores inscritos no país andino, uma primeira conclusão é irrefutável: a direita reacionária agroexportadora e o governo de Lênin Moreno foram varridos pela onda de esquerda correísta-indígena! Assim revelam os números da totalização para Presidente e Vice-Presidente, para a Assembleia Nacional, bem como para o Parlamento Andino. Além da esquerda ter eleito juntas cerca de 50% dos candidatos, contando ainda com alguns parlamentares do quarto lugar de centro-esquerda (Partido Esquerda Democrática) somar-se-á uma ampla maioria na Assembleia Nacional. Mas a grande novidade é que haverá uma disputa inédita no segundo turno.
A coligação de direita CREO-PSC que apoiou o banqueiro Guillermo Lasso, bem longe da desenvoltura de 2017, não conseguiu passar para o 2º turno, e a candidata do governo, Ximena Peña, que alcançou pouco mais de 1,5% dos votos são o principal recado das urnas: um contundente repúdio ao neoliberalismo, tanto da velha direita liberal e oligárquica quanto do atual governo que tentou impor um severo pacote de cortes de salários, demissões de servidores e aumento dos preços dos combustíveis com parte de seu acordo com o FMI, recuado parcialmente ante os gigantescos protestos, greves e bloqueios de estradas de Outubro/19.
Lasso era sem sombras de dúvida o candidato preferido do grande capital, das velhas oligarquias e da grande mídia empresarial. Em 2017, disputou e perdeu por pouco para Lenin Moreno, apelando no final para uma fracassada tentativa golpista de não reconhecer a derrota. Tem o apoio do Partido Social Cristão-PSC, tradicional porta voz de direita do agronegócio e das oligarquias, principalmente da Província de Guayas, que já teve expoentes da direita como o ex-Presidente, Leon Febres Cordero e Jaime Nebot, ex-prefeito de Guayaquil por quase 19 anos.
Andrés Arauz, economista com 35 anos e ex-ministro do Governo de linha bolivariana de Rafael Correa, principal candidato da esquerda, inscrito pelo partido Centro Democrático, numa Coalizão chamada União pela Esperança-UNES, passou em 1º lugar ao segundo turno com mais de 32% dos votos válidos.
Apoiado pelo ex-presidente Rafael Correa desde o exterior, houve uma massiva campanha com vídeos e declarações por redes sociais, pois a justiça do país numa nítida comprovação de lawfare (manobras jurídicas para destruir opositores com o apoio da grande mídia empresarial), não somente impugnou o nome de Correa para vice de Arauz pelo Partido Centro Democrático, como proibiu o uso das imagens do ex-presidente na campanha.
A decisão da justiça foi totalmente ineficaz, pois na prática se tornou impossível proibir o fenômeno do uso das imagens e dos vídeos através das diversas redes sociais, quando um setor expressivo da população e de milhares de jovens do país que participaram das jornadas de protesto do Outubro/19 tomaram a defesa de Correa e contra a criminalização dos dirigentes do Partido Revolução Cidadã nas mãos e atuaram como multiplicadores nas redes sociais de sua defesa, ante julgamentos instrumentalizados politicamente.
Antes disso, contra a maioria da Direção do partido Aliança País que havia destituído Moreno, o Tribunal Eleitoral já havia imposto o nome Moreno na manutenção da Presidência do partido e indeferido o trâmite para legalização de mais dois registros iniciados pelo Movimento Revolução Cidadã e Movimento Revolução Alfarista. Na sequência, após o movimento correista ter aderido à outra legenda já registrada, Força Compromisso Social, houve outro processo de cassação deste registro. Sem falar da condenação a 8 anos de prisão e a 25 anos sem direitos a exercer algum cargo público contra o ex-presidente.
Um inédito segundo turno entre as esquerdas
A maior novidade é a disputa que seguirá no segundo turno. Yaku Peres, candidato pelo Partido Movimento de Unidade Plurinacional – Pachakutik, contrariando praticamente todas as pesquisas, que garantiam a participação do banqueiro, Guillermo Lasso, na segunda volta, Yaku ultrapassou o candidato do CREO na apuração por cerca de 0,5% dos votos.
O dirigente indígena da nacionalidade Kichwa-Kañari foi prefeito da Província de Azuay e também Presidente da Confederação dos Povos de Nacionalidade Kichwa (ECUARUNARI) e atual Presidente da Coordenação Andina de Organizações Indígenas.
Refletindo o giro à esquerda do país, principalmente após o catastrófico governo neoliberal de Moreno e seu maior rechaço popular que foi o levante de Outubro/19, o segundo turno será de arrepiar a grande mídia empresarial e os principais grupos econômicos, que estimularam toda uma campanha de criminalização contra Rafael Correa e lideranças indígenas que participaram dos protestos sociais de 2019.
Agora terão que engolir também uma disputa de um lado com um representante direto de um movimento bolivariano e nacional-desenvolvimentista, por um lado, e por outro, de um dos dirigentes que tem relações diretas com a maior organização indígena e popular do país, a Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador-CONAIE, que dirigiu e ajudou a derrubar o Presidente Abdalá Bucaram (1997), dirigiu a insurreição de 21 de Janeiro de 2000 derrubando Jamil Mahuad e contribuiu para a queda de Lucio Gutierrez (2005), além de ter sido a principal protagonista do levante de Outubro de 2019.
O grande desafio é evitar uma disputa fraticida no 2º turno
A pergunta que surge é: as oligarquias, o grande capital, os velhos partidos da direita e a superestrutura das classes dominantes ficarão neutros na disputa eleitoral? Aí reside o grande perigo e armadilha. Analisando o programa e as declarações tanto de Andrés quanto de Yaku, seria perfeitamente possível fazer uma disputa sem tentar destruir o adversário eleitoral e ver se é possível uma aliança na Assembleia Nacional para governar, visto que o verdadeiro inimigo o governo norte-americano, o imperialismo, a frente CREO-PSC e seus satélites, já foram derrotados nas urnas.
Mesmo considerando que houve enfrentamentos à época entre Rafael Correa e algumas nacionalidades indígenas, dirigidas pela CONAIE, em face de temas relacionados às erráticas autorizações governamentais em favor do extrativismo de mineradoras em algumas regiões, que geraram legítimos protestos dos movimentos sociais, é inegável que Correa e vários dirigentes do Movimento Revolução Cidadã foram ou estão sendo perseguidos e criminalizados por suas posições políticas que se enfrentaram contra os interesses dos EUA no país.
Correa teve seus limites, por exemplo, não questionou a dolarização da economia que é um dos pilares das relações neocoloniais com o imperialismo, nem nacionalizou setores estratégicos da economia como o sistema financeiro, nem mesmo democratizou o acesso e o controle social dos meios de comunicação, mas tomou algumas medidas consideradas anti-imperialistas, a exemplo do asilo político para Julian Assange, na Embaixada do país em Londres; a ruptura com o FMI e a redução da dívida pública em 70% após Auditoria com ajuda da Auditoria Cidadã da Dívida; a proibição de bases militares e convênios no território com a CIA e forças militares dos Estados Unidos; as relações geopolíticas soberanas na política externa, a exemplo de cooperações com a Venezuela, entre outras medidas, como garantir a Assembleia Constituinte, muitas delas foram pouco a pouco revogadas por Lenin Moreno nos últimos quatro anos.
Andrés Arauz defendeu a necessidade de novamente romper com o FMI e retomar as linhas de desenvolvimento nacional, associada às medidas imediatas contra a crise econômica e sanitária, aprovando um auxílio emergencial de 1 mil dólares para cerca de 1 milhão de pessoas. Pergunta-se se haverá imposto sob grandes fortunas para financiar o projeto do auxílio?
Yaku tem uma longa trajetória reconhecida no movimento indígena, principalmente na região de Azuay/Cuenca. Também conhecido como porta voz da ala mais institucionalista e moderada dos movimentos liderados pela CONAIE e Pachakutik. Sua campanha foi centrada no tema “contra a corrupção” em uma alusão evidente que absorveu do eixo da criminalização das lideranças correístas, a maioria inseridas na estratégia do lawfare, desencadeada pelas agências imperialistas na América Latina como forma de combater as lideranças de esquerda, como ficou bem demonstrado no Brasil, Bolívia, Honduras, Equador e agora recentemente na tentativa de enquadrar Maduro como suposto “traficante”.
Vimos de perto no Brasil que é uma ingenuidade achar que problemas como a corrupção serão solucionados com operações policiais espetaculosas como foi o caso da Lava Jato no Brasil, que após abrir espaço para Golpe/16 contra a Presidente Dilma e na sequência, prender e destruir a candidatura de Lula, em 2018, foi recentemente encerrada como num passe de mágica.
Por outro lado, a relevância de temas ambientais como a defesa da água contra as mineradoras e direitos dos povos ancestrais que levantou Yaku durante a campanha não combina com propostas como a abertura do mercado bancário para o sistema financeiro internacional, como defendeu o dirigente. É possível mudar o país de rumo se associando ao banqueiro Guillermo Lasso como fez Pachakutik em 2017, no segundo turno? Por que até o momento Yaku combateu Correa durante toda a campanha, mas não se pronunciou de forma contundente contra uma aliança com a direita no segundo turno?
De todas as formas, o mais importante é que as nacionalidades e bases sociais populares, camponesas e indígenas da CONAIE estão fortalecidas com o resultado eleitoral e deverão cobrar a fatura social, em medidas governamentais, após o resultado eleitoral histórico em ter um dirigente indígena, no 2º turno.
O grande desafio deste segundo turno, para além da decisão do voto em si, é torná-lo referência para toda América Latina de que é possível derrotar eleitoralmente o conservadorismo, as oligarquias, o grande capital e os projetos de mineração predatória sem respeito ao meio ambiente como passo importante para construir um novo modelo de desenvolvimento que não seja centrado no rentismo do capital financeiro e no capitalismo selvagem dos modelos dependentes centrados na exportação de produtos primários.
Neste caminho, é possível defender os direitos das mulheres, dos povos ancestrais, das raças e etnias do continente se houver unidade de todos os setores oprimidos com a classe trabalhadora e seus diversos partidos e organizações numa ampla defesa da soberania nacional e dos direitos democráticos. Para tanto, as organizações dos movimentos sociais e dos trabalhadores, independente de quem vença o pleito, deverão pautar suas demandas, a começar por uma nova auditoria da dívida pública, em defesa dos direitos sociais e do trabalho, o que exigirá a revogação de todas as reformas neoliberais aprovadas por Moreno, começando com nacionalização da Consulta popular que saiu vitoriosa em Cuenca para todas as Províncias. Por isso, diminuir a rivalidade entre os dois concorrentes do 2º turno seria um grande passo. Vejamos se as lideranças de Pachakutik e Revolução Cidadã terão sentido estratégico de unidade neste importante momento de celebração.
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