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MUNDO

Imperialismo imunológico: o capitalismo demonstra novamente sua face mais cruel

Sobre a revoltante desigualdade entre países no acesso as vacinas contra a Covid-19

André Freire, Lisboa (Portugal)

Publicado originalmente em: https://semearofuturo.com/2021/02/02/imperialismo-imunologico-o-capitalismo-demonstra-novamente-sua-face-mais-cruel/

O ano de 2020 acabou com um certo ar de otimismo sobre a superação da Pandemia, principalmente com o início da vacinação no Reino Unido e nos EUA, comemorada pela comunicação social. Enfim, será que poderíamos começar a olhar a Covid-19 pelo “espelho retrovisor”?

Entretanto, infelizmente, bastou passarmos pelo primeiro mês do novo ano, para levarmos um brutal choque de realidade, frustrando as espectativas dos mais otimistas. Neste momento, vivemos uma situação de grande intensificação desta terrível Pandemia, que já ceifou mais de duas milhões de vidas, em todo o mundo. Uma segunda ou terceira ondas, a depender do lugar analisado e dos critérios de diferentes analistas.

Novamente no triste topo do número de novos infectados e mortos se destacam países como EUA, Brasil, Reino Unido, Índia e vários países da União Europeia. Até Portugal, que tinha tido um cenário relativamente mais controlado no primeiro semestre de 2020, viu a realidade se alterar violenta e rapidamente, indo ao topo do sinistro ranking mundial de novos doentes, ultrapassando dia a dia os recordes do número de mortes diárias.

Nos grandes sites da comunicação social já não vemos, com tanta frequência, manchetes com mensagens otimistas sobre uma possível vacinação em massa da população mundial. Ao invés disso, o que vemos são notícias sobre a significativa alta de novos casos e mortes, o atraso da produção e distribuição das vacinas até agora aprovadas (dos laboratórios transnacionais Pfizer e BioNtech) e a disseminação de novas cepas do vírus (atribuídos ao Reino Unido, África do Sul e a cidade brasileira de Manaus) que, entre outras questões, já questionam a eficácia total das vacinas atuais.

Mas, sem dúvida, entre as notícias dos últimos dias, nenhuma causa mais revolta do que a verdadeira guerra comercial que se instalou entre as principais potências econômicas, para compra grandes quantidades de lotes das vacinas, disponíveis hoje no mercado.

No início do ano passado, já tínhamos assistido estarrecidos a guerra comercial entre os governos das maiores economias mundiais em torno da compra de respiradores e EPI’s. Um verdadeiro vale tudo, onde o poder econômico se sobrepôs a qualquer critério humanitário e sanitário.

Agora, este mesmo cenário se repete, de forma ainda mais cruel, gerando um atraso nos calendários de vacinação e ameaçando principalmente a possibilidade de que a maioria da população mundial seja vacinada ainda este ano.

Quem mais perde?

Nos últimos dias, cresceram muito as tensões entre as principais potências mundiais sobre o acesso as lotes de vacina. Autoridades da União Europeia chegaram a levantar suspeitas sobre os motivos do atraso na entrega dos laboratórios que produzem as duas vacinas já liberadas. Eles poderiam estar renegociando com EUA e Reino Unido lotes de vacinas que já eram para ser destinadas ao bloco europeu, inclusive com preços mais altos.

Mas, o mais grave da atual guerra comercial das grandes potências capitalistas pelo acesso as vacinas, é o fato que os países mais pobres serão gravemente afetados, afastando a possibilidade de uma imunização efetiva de suas populações ainda em tempo de evitar uma tragédia ainda maior.

Segundo um estudo do Global Health Innovation Center da Duke University, recentemente publicado, os países mais ricos estão comprando lotes de vacinas em número muito superior a sua própria população. Ou seja, além de começarem a vacinar primeiro, querem garantir estoques reservas em detrimento de uma distribuição mais equitativa entre os países, sobretudo garantido acesso a imunização as populações mais vulneráveis dos países mais pobres.

Os dados falam por si. O Canadá já adquiriu um número de vacinas 7X superior a sua população; os EUA e o Reino Unido 6X superior; e a União Europeia mais de 4X superior.

Segundo o mesmo estudo, a situação colocada hoje é a seguinte: nos países ricos, o planejamento é ter 3,4 vacinas por habitante; sendo que nos países mais pobres o máximo será 1 dose de vacina a cada 2 habitantes (e ainda pode ser pior, será ajuda anunciada pela OMS fracassar). Pode demorar até 4 anos para uma efetiva imunizacão das populações dos países mais pobres  Tudo isso a que preço? Da perda de outras milhões de vidas? É a expressão mais cruel da terrível desigualdade e da hierarquia econômica entre as nações.

Já no ano passado, a Organização Mundial de Saúde (OMS) criou um programa denominado Covax, que visa garantir uma mínima imunização coletiva no conjunto dos países, atingindo uma média de 20% nas populações mais vulneráveis. Uma política bem mínima mesmo, mas que nem assim está sendo garantida. Afinal, até o final de 2020, eles só garantiram 10% do necessário para atingir este objetivo, que já é muito baixo.

Isto acontece, principalmente, porque as grandes potenciais capitalistas priorizam, de fato, suas negociações unilaterais com os grandes laboratórios transnacionais. Em detrimento de uma política solidária de vacinação. É o que podemos chamar, sem medo de errar, de um famigerado e lastimável “imperialismo imunológico”.

Quebrar as patentes das vacinas

Uma reflexão se torna mais que necessária e urgente. O controle privado sobre a produção e comercialização das vacinas gera uma total inversão de valores humanitários. Não há regulação possível, o que vem presidindo este jogo comercial é a busca do lucro pelos grandes laboratórios. Eles praticam a seguinte regra: tem a vacina, e num tempo mais curto, quem mais pode pagar, ou seja, as grandes economias capitalistas.

O mínimo que se deve exigir é a imediata quebra das patentes da vacinas. Que as fórmulas para a produção das vacinas sejam uma propriedade do conjunto da humanidade, que luta a mais de um ano contra uma terrível doença. Uma Pandemia que na verdade se explica, em última instância, pela destruição da natureza gerada por uma produção capitalista desenfreada, sem o mínimo controle.

Se especula que o preço cobrado pelos grandes laboratórios varia entre 20 e 40 dólares por habitantes (duas doses). Ou seja, se os grandes laboratórios transnacionais podem produzir e vender, inclusive a preços altos, a única ferramenta disponível atualmente para o combate a este terrível vírus, que o mesmo direito seja dados aos laboratórios ligados as Universidades e Centros de Pesquisas públicos, especialmente nos países mais pobres.

Uma política emergencial, mas justa e necessária, que vise pelo menos tentar minorar a grande desigualdade no acesso as vacinas que assistimos atualmente.