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CULTURA

No caminho da luz todo mundo é preto (Amarelo é o brilho do ouro da história preta)

Brenda Marques, de Teresina, PI e Gabriel Santos, de Maceió, AL
Reprodução

No dia 8 de dezembro, mesmo dia em que se completou 1000 dias sem respostas sobre o assassinato da vereadora negra Marielle Franco, estreou na Netflix o documentário AmarElo “É tudo para ontem”, feito a partir do desdobramento do CD de 2019 AmarElo, do Rapper Emicida. Centrado no ditado em iorubá que diz “Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje”, o documentário, ao mesmo tempo que lembra que nossos passos vêm de longe, nos encoraja a seguirmos na luta do povo preto.

A frase “é tudo pra ontem” de imediato remete a uma cobrança, a algo que é preciso fazer com urgência, que se encontra em atraso e precisamos fazer o quanto antes. Afinal, era para ontem. O documentário AmarElo parte de uma outra lógica temporal, banhada por tradições africanas, como o já citado ditado iorubá, termina por romper com a concepção de tempo no qual estamos inseridos, pois no tempo que o ditado dialoga o ontem não é lugar de atraso e sim de referência, o ontem aqui é também a continuidade do agora, pois se somos hoje, é porque já fomos algo anteriormente, e entender isto é fundamental para aquilo que podemos vir a ser. É a dialética entre o ontem, o hoje e o amanhã. Esse ontem também é uma pausa para reconhecer o que já foi feito. E o documentário AmarElo é sobretudo um convite para que nesta pausa, nós possamos realizar um longo e demorado respiro.

O ato de respirar é também voltar para dentro de si. Em AmarElo essa respiração é um convite para voltarmos a olhar para nós mesmos, conhecer nossa cultura e trajetória. Tudo isto se reflete na forma que o álbum é feito. Na era do rap rápido, das batidas firmes e fortes, dos bpms acelerados, Emicida traz rimas cadenciadas. Os beats têm menos eletrônicos e mais instrumentos de percussão. A capa do álbum e sua tipografia, são influência do grupo norte americano De la Soul. Os feats e participações no álbum são justamente uma caminhada pela história da cultura negra em nosso país. Grandes nomes como Dona Onete, Zeca Pagadinho, e nomes mais atuais como Mc Tha, Drik Barbosa, Jê Santiago, Maju se misturam em músicas que transitam entre o trap, o funk, elementos de samba, traços de jazz com os metais, e cordas de violão e baixo que se incorporam ao beat, porém sempre marcado por cadência e críticas sociais.

O documentário se torna uma marco quando em uma plataforma famosa de streaming vem exaltar o samba e o rap nacional, que tanto fizeram para construção da identidade negra brasileira, afinal o rap não é só uma música é a vocalização de fatos sobre vidas e comunidades de forma ritmada e rimada na marcação dos compassos. O rap, além de uma forma de auto organização, é o ato de contar algo, passar e transmitir uma ideia, afinal “Negro Drama” do grupo Racionais é um hino nacional que por anos uniu e uni diversas gerações. O samba aqui vem como aquele ancestral que abriu as portas e que precisa ser reverenciado por sua qualidade musical e sua importância na história da cultura brasileira.

Emicida mais que um rapper, atua com um verdadeiro MC no palco do Teatro Municipal, no show que aparece no documentário. Este cenário não foi escolhido de forma aleatória, foi pensado para demarcar as diversas construções importantes feitas por mãos negras, mas

quase nunca ocupadas por seus corpos. Nesses lugares só chegamos muitas vezes até a porta com nossos gritos de indignação, como é o caso do Teatro Municipal, lugar onde em 07 de julho de 1978 suas escadarias foram ocupadas por lutadores negros pedindo o fim da desigualdade social e em que entidades do movimento negro se unirão pela criação do Movimento Negro Unificado, para desmarcarar o racismo velado da sociedade nacional, e ser um marco na resistência contra a Ditadura Militar. Agora não mais na porta, Emicida nos convida a entrar e tomar na mão o que é nosso.

A construção da memória de um povo é um dos princípios para a construção do indivíduo. Olhar para trás enquanto aqueles que foram raptados do seu território, vivenciando formas violentas e desumanas de dominação, em que seu trabalho escravo foi o ouro na mão do branco e até hoje miséria na sua mão, sem dúvida é um processo doloroso de auto reconhecido e revolta. Mas se atentarmos bem nosso olhar, veremos por trás das narrativas que só evidenciam a dor, as tentativas de esconder, que enquanto há opressão também há luta, e o fruto dessas lutas é o que deve nos fazer andar de cabeça erguida com orgulho de nossa história.

Esse é um dos sentimentos que o documentário nos causa, o orgulho, que também pode ser expresso pela palavra africana UBUNTU, que entre seus significados está o “Sou o que sou pelo que nós somos” e com ela celebramos a coletividade pois “Tudo que nos tem é nós” e “Quem tem um amigo tem tudo”. Esse elo que nos liga é também aquele que nos mantém fortes. É o que faz Francisco José do Nascimento, “o dragão do mar”, na década de 80 em Fortaleza sob o slogan de “no Ceará não se embarcam escravos”, liderar seus jangadeiros, impedir o embarque de cativos, bloquear o porto. Sem alternativa, os senhores de escravos acabaram concordando com a liberdade dos cativos, uma vitória que nos mostra :”Triunfo se não for coletivo é do sistema”.

Essa é a resistência negra que os livros de história insistem em reduzir a apenas uma página. Construir memórias é mostrar que a dimensão da pessoa negra é muito maior. É feita de lembranças, cultura e, acima de tudo, humanidade. E para que isso aconteça é necessário o rompimento do silêncio, para que o ser negro não se consolide sobre nós, apenas com uma sentença e como Emicida traz em sua música, que nossas vozes ecoem além das nossas cicatrizes.

Assim seguiremos na luta para que as nossas vozes, sempre no plural, se constituam em instrumentos para reescrevermos a história de nosso país. Reescrever, aqui conjugada como ato presente, para mudar o que nos foi contado, mas também para mudar o futuro que nos dá a possibilidade de construir novas narrativas. E que Oxum, orixá que celebramos a existência no dia 08 de dezembro, mesmo dia do lançamento do documentário, nos guie com o seu amor, e o Amarelo que brilha no Ouro da História preta.

Axé

Marcado como:
EMICIDA / Racismo