No dia 28 de junho de 2020, comemoramos 51 anos da Revolta de Stonewall, considerada um marco para a organização do movimento LGBTI no ocidente. Stonewall Inn era um “bar gay”, em Nova York, em uma época na qual ser LGBTI era proibido por lei nos EUA e em boa parte do mundo. Esse tipo de bar era constantemente sujeitado a batidas policiais que verificavam possíveis comportamentos homossexuais. Vestir três, ou mais peças de roupa “inadequadas ao seu gênero” era crime no estado de Nova York. No dia 28 de junho de 1969, as LGBTIs reagiram. Durante uma batida policial que levou algumas pessoas presas, uma multidão se formou em frente ao bar e começou a arremessar coisas nos policiais. Protestos ocorreram nas ruas nos dias seguintes, muitas vezes com enfrentamentos contra a polícia. Tendo Marsha P. Johnson e Sylvia Rivera como duas figuras de referência, a Revolta de Stonewall foi fundamentalmente liderada por travestis e lésbicas negras, fato que acaba sendo secundarizado, ou até apagado.
A Revolta de Stonewall em 1969 foi um novo florescer do movimento LGBTI, que teve impacto internacional. Aqui no Brasil, tivemos a primeira manifestação pública por direitos homossexuais registrada em 1977. No contexto e no espírito da resistência à ditadura militar, em 1978 tivemos o surgimento do Somos: Grupo de Afirmação Homossexual e do jornal Lampião da Esquina. O Lampião desafiava a censura, apoiava os movimentos de minorias por direitos civis. O Somos apoiou diversas lutas e protagonizou aquela contra as prisões arbitrárias de travestis no centro de São Paulo e contra a censura ao Lampião da Esquina. Um setor egresso do Somos chegou a apoiar manifestações operárias no ABC, após um processo de ruptura do grupo.
Nos dias de hoje, no marco dos 51 anos de Stonewall e dos 42 anos do grupo Somos e do Lampião da Esquina, o que podemos dizer sobre a situação das LGBTIs e da nossa luta?
Tivemos inúmeras conquistas importantes: a descriminalização da homossexualidade e acesso a direitos civis, como o casamento, em diversos países. Por outro lado, a desigualdade, em especial nos países da periferia do capitalismo, ainda é muito grande. A homossexualidade ainda é considerada crime em 75 países, podendo ser punida com pena de morte em oito deles. O Brasil é o país que mais mata LGBTIs no mundo, uma a cada 23 horas. Entre as pessoas trans os números do Brasil são ainda mais alarmantes: 90% das mulheres trans trabalham na prostituição; a expectativa de vida é de 35 anos, enquanto a média nacional é 75 anos; estima-se que 13 anos é a idade média na qual as trans são expulsas de casa. Apenas 0,02% estão na universidade, 72% não possuem ensino médio e 56% não possuem ensino fundamental. O recorte de raça também é essencial para entender os números da transfobia: em 82% dos casos registrados as vítimas foram identificadas como negras ou pardas, que são maioria na prostituição de rua. Os crimes de ódio são corriqueiros: como esquecer da travesti Quelly que teve seu coração arrancado em Campinas? Ou de Dandara, que teve sua tortura registrada em vídeo antes de ser executada a tiros em Fortaleza?
Nossa luta, em geral, tem girado em torno da batalha contra a violência e por igualdade formal, acesso a direitos civis, como é o caso da luta elementar das pessoas trans por ter documentos com nossos nomes. Foi possível conquistar um nível mínimo de igualdade formal em diversos países imperialistas, mas aqui, na periferia do capitalismo, esta é uma luta bastante dura. Além do interesse óbvio do capital em manter largos setores da classe trabalhadora sob um regime de superexploração e em se utilizar da opressão para este fim, existem algumas razões mais profundas pelas quais ele não prescinde da regulação de nossas identidades e da repressão sexual. A importância da família nuclear burguesa para a chamada reprodução social no capitalismo certamente tem uma grande responsabilidade nessa dinâmica, ainda com a sua importância ampliada diante do desmonte global do sistema de garantias sociais no marco da política neoliberal de aprofundamento dos patamares de exploração adotada no último período.
A situação fica ainda mais difícil com a ofensiva da extrema-direita que chegou ao poder em diversos países (Brasil, EUA, Polônia, Reino Unido) e elegeu as LGBTIs como um de seus inimigos prioritários, aprofundando o costumeiro medo por nossas vidas. O setor que Nancy Fraser chama de “neoliberalismo progressivo”, a direita mais tradicional que governou os EUA no período anterior e ainda governa parte importante da Europa, também conta com a família como ponto de apoio para viabilizar sua política econômica e a reprodução social, mas acaba sendo mais permeável com os modelos de família que abrange – especialmente em países imperialistas. O que ocorre hoje, de acordo com Cinzia Arruzza, é a competição entre duas formas de regular culturalmente a família e seu papel social. Essa nova direita conservadora busca um modelo de regulação diferente, pautado por valores tradicionais, defendendo o papel da família hetero-cisnormativa para a garantia das condições de vida sob o neoliberalismo, diante do desmonte dos serviços públicos e garantia sociais. Combinada com uma política de pânico moral e sexual para a mobilização de suas bases contra um inimigo comum, está dada a receita da extrema-direita para a perseguição das LGBTIs.
É preciso compreender a dinâmica do processo para entender a melhor forma de resistir. Em primeiro lugar, entender-nos como parte da maioria explorada e oprimida que sofre com as consequências da ofensiva sobre nossos direitos sociais, a qual está necessariamente articulada com uma ofensiva ideológica e física contra as LGBTIs. Não é possível nos defender por fora de uma ampla unidade com o conjunto dos explorados e oprimidos e de um programa intransigente de defesa dos direitos dos 99% contra o 1% mais rico! Por outro lado, as organizações da esquerda precisam compreender que não é possível vencer a ofensiva de classe sem enfrentar a LGBTIfobia da extrema-direita e apresentar um programa de ampla defesa das LGBTIs e seus direitos. É preciso ganhar o debate na sociedade e isso passa necessariamente por um duro enfrentamento político e ideológico.
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