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Colunas

A encruzilhada da Educação e a batalha das ideias

Tubarões da Educação

A coluna publica textos sobre a atuação da classe dominante na educação, tendo por referência os estudos marxistas e gramscianos produzidos no Laboratório de Investigação em Estado, Poder e Educação (LIEPE), da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Coordenação do professor Rodrigo Lamosa.

Por: Rodrigo Lamosa

Este é o primeiro artigo de uma série de trabalhos que serão publicados semanalmente na coluna “Tubarões da Educação”. Como um texto inaugural pretendemos com ele saudar a parceria do Laboratório de Investigação Estado, Poder e Educação (LIEPE) com o Esquerda On Line (EOL) e apresentar as linhas gerais das reflexões que serão publicadas aqui. A proposta de organizar a coluna “Tubarões da Educação” é um desdobramento das lutas travadas neste período por este conjunto de pesquisadores que diante da ascensão neofascista se mobilizam para travar a batalha das ideias.

O LIEPE se caracteriza, desde a sua fundação, pelas pesquisas sobre a atuação dos “Tubarões da Educação” que atualmente se desdobram num conjunto de trabalhos que, a partir do referencial marxista e gramsciano, tem analisado a dominação burguesa no Brasil. Mas, enfim, quem são os tubarões da educação? Os tubarões são as organizações da classe dominante que atuam sobre a educação definindo as políticas educacionais, desde a gestão das escolas, até os currículos, avaliações e produzem e difundem formas diversas de controle sobre as instituições de ensino e sobre os trabalhadores da educação.

O interesse deste grupo de pesquisa tem sido compreender, portanto, a dominação burguesa, suas estratégias, frentes de ação, projetos, como se organizam, como formam seus intelectuais e as diversas camadas de intelectuais, como subordinam e atraem trabalhadores e suas organizações pra dentro de um tanque em que a única opção é a subsunção do trabalho e da formação dos trabalhadores aos ditames do capital. A encruzilhada expressa atualmente na educação pela dualidade “retorno ao ensino presencial” ou “aceitação dos projetos de Educação à Distância (EaD)” é o próprio tanque onde a burguesia tenta afogar os trabalhadores da educação e os filhos da classe trabalhadora sob a insígnia do “novo normal”.

A proposta de organizar uma coluna no EOL resulta da compreensão do grupo de que a conjuntura tem nos exigido respostas cada vez mais rápidas e que o trabalho coletivo de pesquisa, embora deva manter o rigor teórico-metodológico, deve se desdobrar nos mais diversos formatos de comunicação. Foi neste sentido que o grupo vem realizando as lives pelo canal LIEPE, mais recentemente elaborou a proposta de curso em parceria com o Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação (SEPE-RJ) e agora abre esta frente de trabalho com o desafio que me cabe de organizar a coluna Tubarões da Educação. A coluna vai se constituir numa espécie de boletim que atualiza os debates conjunturais sobre a atuação dos dominantes, suas estratégias de dominação e os desdobramentos nas políticas de formação dos trabalhadores. A escolha pelo EOL como parceiro desta empreitada é neste mesmo sentido um desdobramento do reconhecimento pelo trabalho realizado pelas companheiras e companheiros nos últimos cinco anos, além da identificação da necessidade de dialogar com um público cada vez maior.

Desde o início do período de isolamento social o grupo decidiu coletivamente que deveríamos reorientar as pesquisas para compreender a atuação dos intelectuais coletivos e individuais da classe dominante na educação durante a pandemia. Esta reorientação se desdobrou na produção de um conjunto de artigos que serão publicados na coluna nos próximos meses junto com artigos de outros coletivos de pesquisa que, assim como o LIEPE, vêm investigando a atuação das organizações da classe dominante e a repercussão desta sobre a educação no Brasil e no mundo.

A conjuntura atual tem sido marcada por um fortíssimo ataque à educação pública e, consequentemente, às escolas, universidades públicas e ao trabalho realizado nestas instituições. Esta ofensiva tem produzido uma renovação dos processos de privatização da educação pública e dos instrumentos de subsunção do trabalho escolar aos interesses dominantes. A realização dos interesses dominantes na educação brasileira, longe de ser algo novo, é parte muito fundamental de toda a estratégia de dominação produzida e difundida historicamente pela burguesia no Brasil e no mundo. O elemento novo está nas estratégias de difusão e penetração destes interesses que atravessa todo o processo educacional, desde a formulação das políticas, em todos os âmbitos (internacional, nacional, regional e local), até a própria realização no interior das escolas.

No período da pandemia temos analisado a difusão de uma política elaborada pelos organismos da classe dominante que temos pesquisado e que vem definindo a reorganização escolar frente ao fechamento das escolas. Esta política tem sido produzida no interior da Coalizão Global da Educação, liderada pelos organismos internacionais em parceria com as grandes corporações que dominam a tecnologia de armazenamento de dados. Esta coalizão tem sido o núcleo a partir do qual tem se elaborado diretrizes internacionais com fortes impactos nacionais a partir da organização de comitês também liderados por movimentos empresariais. Aqui no Brasil a coordenação está sendo realizada pelo movimento empresarial Todos Pela Educação que tem atuado como “Estado Maior” do capital na educação brasileira com o papel de definir normativas e oferecer as diretrizes adotadas pelo Ministério da Educação, pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) e pelas secretarias municipais e estaduais de educação, representadas pela União dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME) e pelo Conselho Nacional dos Dirigentes da Educação (Consed).

Esta coalizão vem definindo as normativas e diretrizes educacionais no período da pandemia. Foi a partir de dois eventos organizados pelo movimento Todos Pela Educação, em parceria com a UNDIME, Consed e organismos internacionais, realizados no mês de abril que esta política foi definida. Em meio a uma conjuntura de esvaziamento do Ministério da Educação foi a coalizão empresarial que definiu a política educacional do período marcado pela impossibilidade do trabalho escolar presencial. Esta política que definiu o “Ensino Remoto Emergencial” como solução educacional para o período unificou as estratégias da classe dominante na educação brasileira mobilizando organizações e intelectuais que, inclusive, estiveram em frentes de ação diferentes e que protagonizaram algumas tensões no período recente.

O LIEPE tem identificado por meio das pesquisas produzidas nos âmbitos da graduação e da pós-graduação que a atuação da classe dominante na atual conjuntura tem mobilizado um universo muito expressivo de organizações com atuação destacada na educação. Estas organizações têm sido responsáveis por difundir projetos, ações e um enorme variação de iniciativas dirigidas a educação brasileira, expressando nestas uma concepção de mundo e um projeto formativo para a classe trabalhadora, mas sua atuação também produz tensões intraclasse burguesa verificadas na formação de duas frentes de ação na educação brasileira: a frente socialiberal, dirigida pelo Todos Pela Educação, e uma frente liberal ultraconservadora que tem no Escola Sem Partido uma ideologia que unifica esta frente.

Na frente social-liberal identificamos as grandes corporações que expressam a unidade do grande capital reunido numa espécie de partido, a partir do qual vem definindo nos últimos quinze anos a agenda educacional brasileira. Esta frente tem constituído um amplo arco de alianças transnacional expresso na Rede de Organizações da Sociedade Civil pela Educação na América Latina e Caribe (REDUCA) que integra movimentos empresariais de quinze países na região. A REDUCA atua em parceria com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e com a União Européia que financiam a rede numa orquestração que objetiva incidir sobre a atuação dos movimentos que atuam nos países e na definição das políticas nacionais de educação. A empreitada tem disseminado conferências, projetos e convênios como no “Projeto de Cooperação Conjunta”, assinado com a União Europeia e organizado em três linhas estratégias: 1) Gestão, governo e posicionamento da rede; 2) Comunicação e Mobilização; e 3) Incidência e acompanhamento das políticas educacionais nacionais. O desenvolvimento deste projeto, entre 2013 e 2016, se desdobrou em uma série de iniciativas: realização de seminários internacionais, “mesas de trabalho” locais e a criação do ‘Observatório Educativo’ por meio do qual a REDUCA publica boletins sobre as iniciativas de seus membros e monitora os indicadores educacionais nacionais da região. Este monitoramento e a pressão realizada pelos membros das redes em cada país é peça fundamental para adequação da educação às necessidades de formação da força de trabalho na região.

A frente liberal ultraconservadora organiza uma outra fração da classe que reúne os setores que formam atualmente o “bolsonarismo”: militares, a lumpemburguesia e setores religiosos ligados a teologia da prosperidade, tanto entre as igrejas evangélicas, quanto entre setores ultraconservadores da Igreja Católica. Esta frente também possui um arco de alianças transnacional com parcerias com organizações como Student for Liberty e vem promovendo uma série de iniciativas com uma série de ações que vão desde a formação com jovens estudantes das universidades, até a eleição de membros nas câmaras e assembleias legislativas. Parte importante das organizações desta frente estão articuladas na Rede Liberdade que organiza algumas dezenas de movimentos no país, parte considerável surgida na conjuntura de ascensão ultraconservadora, como as organizações Estudantes Pela Liberdade, formada em 2012, e Movimento Brasil Livre (MBL), lançado em 2013.

A atuação política desta frente possui uma base econômica expressa no conjunto de empresários reunidos no Instituo Brasil 200. Estes empresários foram os responsáveis pelo financiamento da campanha que elegeu Bolsonaro em 2018 e são uma importante força política que em tempos de epidemia tem defendido o fim do isolamento social, a despeito da tragédia humanitária que tem assolado o país. Diferente da base social da frente social-liberal organizada pelo Todos Pela Educação que reúne os maiores bancos, indústrias, incluindo a agro-indústria e as grandes corporações, a Frente liberal ultraconservadora reúne um conjunto de empresários do ramo de serviços como Rubem Menin, cofundador da Construtora MRV e um dos donos da CNN Brasil, Winston  Ling, presidente do Conselho de Administração da Petropar e fundador do Instituto Liberdade, Junior Dursk, proprietário da Madero, Alexandre Guerra sócio proprietário da rede Giraffas, Luciano Hang, dono da rede varejista Havan, Roberto Justus, proprietário do Grupo Newcomm, dentre outros.

Esta frente se caracteriza também por muitas tensões internas e tem se unificado a partir do “bloco no poder” conduzido ao governo federal, como numa espécie de cezarismo brasileiro, a partir da eleição de uma liderança que expressa muitos dos anseios desta base social forjada no ultraconservadorismo. A atuação da frente liberal ultraconservadora tem se desdobrado numa série de iniciativas. Estas iniciativas se desdobraram desde a difusão de uma série de projetos de lei nas assembleias legislativas do país, mobilizados pelo movimento Escola Sem Partido, criado em 2004, até a elaboração da Frente Parlamentar em Defesa do Homesschooling, criada em 2019 no dia em que o governo eleito completava seu cem primeiros dias de mandato.

Outra ação defendida pelas organizações liberais ultraconservadoras com enorme crescimento no país é a militarização das escolas públicas, realizada inicialmente nos estados por meio da celebração de convênios entre as secretarias de educação e secretarias de segurança. Este processo está presente atualmente em todos os estados do país, sendo amplamente defendido por organizações como MBL que em seu congresso, em 2015, defendeu a militarização das escolas em “áreas de risco” ou em regiões que não houver interesse da iniciativa privada. A militarização das escolas em nada se confunde com as escolas militares que existem no país. Este processo foi federalizado por meio do decreto Nº 10.004 que instituiu o Programa Nacional das Escolas Cívico Militares e tem imposto às comunidades escolares um padrão ético, estético e moral ultraconservador justificado pelos valores “disciplina e respeito” que estariam garantidos pelos códigos militares que passam a reger as instituições educacionais.

A frente liberal-ultraconservadora tem se notabilizado por divergências com o Todos Pela Educação em pautas como a militarização das escolas, a defesa do projeto Escola sem Partido ou as denúncias a “ideologia de gênero”, mamadeira de piroca e outras que fazem parte das estratégias ultraconservadoras no contexto da “guerra cutural”, mas também tem se aproximado do TPE na defesa de um currículo tecnicista, na elaboração e difusão de formas e instrumentos de controle do trabalho realizado nas escolas e na agenda que resultou na aprovação da Base Nacional Curricular Comum (BNCC) e na contrarreforma do Ensino Médio, ambas iniciadas no contexto pré golpe e acelerada na conjuntura de contrarreformas que caracterizam o período pós golpe e a aprovação da contrarreforma trabalhista e previdenciária.

Compreendemos que a pedagogia da hegemonia burguesa expressas em ambas as frentes de ação se realiza nos limites da autocracia que é a forma pela qual a classe dominante realiza uma ampliação seletiva do Estado e da própria socialização da política na periferia do capitalismo. O golpe desferido em 2016 foi a porta para a realização do mais amplo conjunto de contrarreformas na educação no últimos anos, desde o estrangulamento orçamentário, até as mudanças produzidas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação brasileira. O golpe foi para a educação, portanto, a estratégia nos marcos da autocracia burguesa e na conjuntura de ascensão fascista para recalibrar a formação dos trabalhadores, ajustando esta formação aos processos de uberização do trabalho que exigem: conformismo, adaptabilidade, empatia, cooperação e um conjunto de competências socioemocionais que devem ser a base da elaboração de um trabalhador despossuído de tudo, inclusive de sua consciência de classe.

As escolas, de acordo com a contrarreforma do Ensino Médio, devem passar a adotar um trabalho voltado para a construção do “projeto de vida” dos alunos e para a formação nos aspectos físicos, cognitivos e socioemocionais (lei 13.416/17. art. 35-A. parágrafo 7o, grifos nossos). A ênfase dada às competências socioemocionais presente em todos os documentos das políticas educacionais recentes expressa o desejo empresarial de definir um tipo de trabalhador adaptado às exigências dos atuais padrões de reprodução do capital. De acordo com o Instituto Ayrton Senna e seus parceiros, o “desenvolvimento socioemocional tem relação direta com a concretização de projetos de vida respeitando a diversidade, a singularidade e a heterogeneidade entre as pessoas”. A educação pública prevista por esta contrarreforma deve garantir que este “projeto de vida” esteja adequado às exigências do “mercado de trabalho” ou, em outras palavras, às exigências postas pelo sociometabolismo do capital.

As bases de referência desta contrarreforma estão no relatório The Changing Nature of Work (WORLD BANK, 2019a). Por meio deste relatório o Banco Mundial apresenta o diagnóstico de que há uma “crise de aprendizagem” expressa numa defasagem entre os anos que as crianças passam nas escolas e aquilo que elas aprendem. Este diagnóstico fundamenta todo a iniciativa do Human Capital Project, iniciativa empreendida pelo banco para pressionar governos nacionais a adotarem seu receituário. Ainda de acordo com o relatório, os governos nacionais devem ofertar um mínimo de educação que garanta a adaptação dos estudantes frentes a nova morfologia do mundo do trabalho.

Os trabalhos de pesquisa realizados sobre as duas frentes de ação da classe dominante têm identificado, portanto, que a relação entre elas tem se caracterizado pelas tensões e divergências expostas em pronunciamentos oficiais, mas também por uma série de elementos que as aproxima. Esta contrarreforma educacional, iniciada antes do golpe e acelerada após o golpe, é parte de uma ofensiva de novo tipo sobre a educação pública que se investe de um caráter reformista para reafirmar as formas novas de espoliação do capital. É mais uma vez, parafraseando Bertold Brecht, o velho travestido de novo.

No período da pandemia este transformismo se materializou nas propostas de Educação à Distância (EaD) e seus neologismos: ensino remoto emergencial, educação o line, estudos continuados, ensino híbrido, dentre outros. Esta tendência segue um projeto que está colocado pelo menos desde os anos 1990, quando a modalidade cresceu enormemente e, embora tenha sido freada pelas lutas nas universidades públicas, encontrou nas universidades privadas um enorme terreno para sua expansão numa proposta de ensino minimalista, aligeirado, barato e destino aos setores mais pauperizados da classe trabalhadora. Atualmente, segundo o Centro de Inovação para a Educação Brasileira (CIEB), existem atualmente cerca de mil startups edtechs no país produzindo produtos e serviços educacionais para serem vendidos em escolas e universidades que devem realizar a transição para uma educação digital.

Por outro lado, esta tendência concilia de uma vez os interesses de ambas as frentes de ação burguesa na educação: repolitiza a educação escolar, intensifica os instrumentos de controle sobre o trabalho escolar e reduz a formação dos trabalhadores às competências socioemocionais. Os trabalhadores da educação estão diante de uma falsa encruzilhada colocada pelos empresários e seus prepostos: retomar o ensino presencial ou adotar as formas mais precárias de EaD. Estas propostas são apresentadas como se fossem as únicas possibilidades e qualquer resistência a esta escolha de sofia é rechaçada das mesas de negociação. Assim vem ocorrendo nos grupos de trabalho nas prefeituras e nos estados, bem como nas universidades, que já dão como certa a transição para um ensino híbrido em que coexistam ensino presencial e educação on line.

Por certo estamos diante de uma conjuntura política e uma correlação de forças na educação brasileira muito desfavorável para os trabalhadores da educação. Ainda assim temos acompanhado muito de perto movimentos que, mesmo com muitas dificuldades e debilidades, vêm tentando não sucumbir a escolha de sofia imposta pelos “tubarões da educação”. Estas iniciativas, como a greve que vem sendo construída neste momento no Rio de Janeiro, apontam para a necessidade de lutar pela vida sem esquecer que a vida nos exige muito mais do que os limites da nossa reprodução. Devemos fazer e travar a luta pela vida, mas considerando que a luta pela vida não cabe numa tela de computador e é inconciliável com os interesses da classe dominante.

Convidamos a todas e todos a acompanhar a coluna “Tubarões da Educação” e o lançamento semanal de artigos que devem atualizar as análise sobre a ofensiva do capital sobre a formação dos trabalhadores.

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