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BRASIL

Luiz Antonio Simas, sobre a retomada do campeonato: “Estamos assistindo ao assassinato da cultura do futebol”

Após a retomada dos jogos no Maracanã, historiador escreve sequência no Twitter, sobre a mercantilização do futebol e a “arenização do cotidiano”

Luiz Antonio Simas | @simas_luiz
Reprodução / twitter

O sinistro Flamengo X Bangu de ontem me faz retomar algumas coisas que andei escrevendo sobre futebol. Vou contextualizar. No dia 15/4/1989, 96 torcedores morreram e 766 ficaram feridos durante o jogo entre Liverpool e Nothingan Forest, pelas semifinais da Copa da Inglaterra.

A catástrofe estimulou o governo da Primeira-Ministra Margareth Thatcher a atacar o “hooliganismo”. Um primeiro relatório do governo sobre o “desastre de Hillsborough=”. atribuiu a culpa aos torcedores do Liverpool, que abusaram do álcool e da violência.

Investigações posteriores desmentiram o primeiro relatório, que teria sido adulterado pelo governo, e comprovaram que a tragédia ocorreu em virtude da superlotação, das condições do estádio e de erros dos responsáveis pela segurança da partida.

Os seguranças abriram uma entrada durante o jogo com acesso a setores que já estavam superlotados, causando o esmagamento e o sufocamento de centenas de pessoas.

A Inglaterra vinha em um processo em que ir a um jogo era correr o risco de não voltar para a casa. Não há como negar isso. No dia 29/5/1985, por exemplo, aconteceu a “tragédia de Heysel”, antes do início do Liverpool X Juventus, partida final da Copa dos Campeões da Europa.

Poucos dias antes da “tragédia de Heysel”, no dia 11 de maio de 1985, ocorreu um incêndio de grandes proporções na arquibancada do estádio do Bradford City, durante um jogo entre o time local e o Lincoln City. O saldo final foi de 56 mortos e 265 feridos.

Naqueles tempo, o governo Thatcher vinha tentando desmontar o estado de bem-estar social, em guerra aberta contra os sindicatos. Vários desses sindicatos tinham ligações com torcidas de futebol, desde as origens do jogo na Grã-Bretanha.

No discurso do governo, praticamente todos os torcedores de futebol foram genericamente definidos como hooligans. O discurso de combate a violência ensejou, então, diversas mudanças no futebol da Inglaterra e na própria cultura do torcedor.

Exigências passaram a ser feitas para melhorar o funcionamento dos estádios, da obrigatoriedade de lugares marcados para torcedores sentados à melhoria do acesso. O preço dos ingressos aumentou de forma significativa, afastando o torcedor de baixa renda das novas arenas.

Ao mesmo tempo em que o processo de assepsia ganhava terreno, os principais clubes do país romperam com a Football League e criaram a Premier League, buscando de imediato autonomia para negociar a transmissão de jogos para a televisão e os contratos de patrocínio.

A cereja do bolo foi o acordo com o magnata das telecomunicações Rupert Murdoch e o contrato para que a Sky TV assumisse a transmissão dos jogos. O espetáculo televisivo passou a ser mais importante que o jogo no campo.

O dinheiro do contrato trouxe recursos inimagináveis para os clubes. Por outro lado, veio acompanhado de estratégias ancoradas em um princípio: o futebol deve ser cada vez mais moldado à lógica da tv, inclusive em relação às características do jogo.

A cobertura da Sky veio com ângulos de câmera inusitados, repetição constante de jogadas, exploração de imagens ressaltando o contato físico entre os jogadores e redução do tamanho do campo para reforçar esse contato.

Passam a ocorrer jogos praticamente todos os dias para atingir a demanda dos assinantes. Tudo isso escancara a estratégia que norteia a nova era: a assepsia dos estádios, transformados em arenas multiuso, restringe o público presente a uma parcela com poder aquisitivo maior.

Ao mesmo tempo, se popularizam as transmissões televisivas, retirando dos estádios torcedores com um perfil mais popular. O torcedor deve estar na frente da televisão.Dentro das arenas devem estar os consumidores do produto futebol, conforme o jargão empresarial.

Isso foi ideal para um Thatcher, que queria sufocar a resistência ao desmonte do estado de bem-estar social, criminalizando qualquer tipo de organização capaz de ensejar laços de sociabilidade, se apropriar de espaços públicos e construir redes de proteção entre os pobres.

O processo de aburguesamento do futebol não é um fenômeno isolado de dimensões mais amplas e está diretamente ligado a processos de disputas, tensionamentos e confrontos típicos de cidades capitalistas. Sobre isso, procurem os textos do professor Gilmar Mascarenhas.

Penso nisso e no que o futebol brasileiro está se transformando: um jogo elitizado, em estádios/arenas mcdonaldizados, priorizando o pay-per-view, as redes sociais, a infantilização da crônica esportiva, o culto às celebridades de ocasião, os almofadinhas do mercado.

Esse é um processo mais amplo de “arenização” do cotidiano e afastamento das camadas populares dos elementos lúdicos que permitiram a apropriação da cidade pelos subalternizados que, nas gerais e arquibancadas, construíram formas de encantar, no precário, a vida.

Nós estamos assistindo ao assassinato da cultura do futebol brasileiro, ao esfarelamento das ligações afetivas entre clube e torcedor, com a entrega do jogo ao falcões do mercado, que mensuram o futebol apenas a partir de cifrões e engenharias financeiras.

O projeto é esse. Que morram clubes menores, que se esfacelem laços de sociabilidade que o futebol gera. Em maior amplitude, temos um sintoma da precarização absoluta da vida. O Flamengo X Bangu de ontem foi um empreendimento do mercado às custas da naturalização da morte.

 

Veja a sequência original aqui