“Eu não consigo respirar”
(Eric Garner)
“Hoje à noite os distúrbios começam. Nos fundos das ruas da América, eles matam o sonho americano”
(Tracy Chapman, Across the lines)
Michael Brown, Amarildo Dias de Souza, Trayvon Martin, Cláudia Silva Ferreira, Freddie Gray, Sandra Bland, Marcos Vínicius da Silva, Atatiana Jefferson, Breona Taylor, Agatha Félix, Joel Conceição Castro, Philando Castile, Walter Scot, Evaldo Rosa dos Santos, João Pedro e George Floyd. Missouri, Flórida, Carolina do Sul, Nova York, Maryland, Texas, Kentuchy, Califórnia, Bahia, Rio de Janeiro e Minessota. São muitos nomes e sobrenomes vindos de lugares diferentes. São filhos, filhas, pais, mães, irmãos e irmãs, amores interrompidos pela violência policial no Brasil ou nos Estados Unidos. Se quase falta fôlego ao lê-los em voz alta, sobra dor e indignação com cada uma dessas histórias. Seja nos morros ou favelas do Brasil, seja no Harlem ou nos guetos dos EUA, a violência racista está sempre a nossa espreita, nas esquinas perigosas da nossa História.
Essa semana Minneapolis está ardendo em chamas. Como na letra da canção da cantora Tracy Chapman, os distúrbios começaram porque mais uma vez “no fundo das ruas da América” eles mataram o sonho americano. Foi o próprio prefeito da cidade, Jacob Frey, quem reconheceu que “George Floyd estaria vivo se fosse branco” e que a onda de protestos são “um reflexo da raiva da comunidade negra por 400 anos de desigualdade”. Ainda que involuntariamente, o prefeito que é do partido democrata, reconheceu que o bárbaro assassinato de Floyd vai além de uma ação isolada de policiais racistas, justificativa costumeiramente usada nesses casos. Frey confessa, portanto, ao falar dos “400 anos de desigualdade”, provavelmente sem mensurar o significado profundo das suas palavras, que a engrenagem que levou ao assassinato de George Floyd é o racismo estrutural, um problema sistêmico.
O racismo não é uma anomalia do sistema, uma mancha ou um borrão que pode ser limpo da fachada do edifício do capitalismo. Seja no passado com a invasão da África e sequestro de africanos, com os navios negreiros e o trabalho escravo nos grandes latifúndios; seja hoje com os subempregos, a violência policial, o genocídio e hiper encarceramento; o racismo é um elemento estruturante da sociedade. Mais do que uma mancha ou anomalia, ele é um pilar sobre o qual toda a sociedade está alicerçada, está impregnado no sistema até a sua medula, e sem ele o capitalismo não pode sobreviver. Escravidão e racismo foram fundamentais para o acúmulo de riquezas das nações, pré-condição fundamental na marcha de desenvolvimento do capital e do modo de produção capitalista como sistema de dominação global. E hoje, distante de ser uma relíquia de museu, segue sendo o racismo um mecanismo essencial para reprodução do capital combinando exploração e opressão para negar identidades, subjugar pessoas, povos e até mesmo nações inteiras.
É de todo esse acúmulo histórico que transborda a indignação que serve de combustível nos protestos de Minneapolis. O Estado e a cobertura da mídia empresarial mais uma vez subestimam a multidão que queima lojas, depósitos, prédios e marcharia – se não fosse a fortíssima repressão policial – decididamente sobre a delegacia onde atuavam os policiais envolvidos no assassinato. Taxam, esses “donos do poder”, essas manifestações como passionais, irracionais, desordenadas ou, nas palavras do presidente Donald Trump, fruto “da ação de bandidos”. Não entendem, ou melhor, fingem hipocritamente não entender, que o que as ruas de Minneapolis estão expressando é uma visão histórica e estrutural do problema.
Enquanto o establishment busca colocar no mesmo saco a reação dos oprimidos e a violência do opressor, as ruas de Minneapolis estão dizendo basta! O julgamento e condenação dos assassinos é uma obrigação, não um favor. As chamas dos manifestantes são dirigidas para os policiais racistas que assassinaram George Floyd apenas e exclusivamente por ser negro. Mas, o seu fogo também se dirige para violência policial sistemática, e para o próprio sistema que depende da reprodução cotidiana do racismo para sobreviver. Há, portanto, um programa na ação consciente dos manifestantes de Minneapolis. Mais do que subir hashtags, aqueles que tem compromisso com o protesto negro no século XXI, devem ouvir atentamente o que as vozes desses homens e mulheres estão dizendo.
“Nunca se esquecem as lições aprendidas na dor”
Provérbio popular africano.
Comentários