Mário Pedrosa escreveu na década de 60 um texto intitulado “Mundo em crise, homem em crise, arte em crise”. Esse texto iniciava-se afirmando que “a extrema complexidade da civilização moderna não permite a nenhuma atividade de ordem científica, cultural ou estética desenrolar-se no isolamento”. Isso nos parece bastante razoável, e acredito ser difícil construir argumentos que busquem provar o contrário. Pedrosa discute o papel da tecnologia nesse processo de compartilhamento de informação muito antes que a realidade das redes sociais, trazida com o advento da internet, fosse concebível: “A tecnologia que é condutora de todas as atividades e experiências operacionais é também a socializadora, por excelência, dessas atividades.”.
O que nos faz concluir que a arte se relaciona e se integra no seu meio social por intermédio do próprio desenvolvimento da tecnologia disponível para sua realização, bem como para ser desfrutada como objeto artístico.
Quando compreendi isso pela primeira vez, o raciocínio me pareceu bastante claro e lógico, embora chegar a compreender tenha me obrigado a superar preconceitos de caráter romântico tardio sobre o processo de criação artística, o que foi, de fato, difícil.
O desenvolvimento da criação de imagens pictóricas, para não usar o termo pintura, está fundido com o desenvolvimento das técnicas e desenvolvimento de tecnologias associadas a essa necessidade: Da utilização de sangue, saliva e cera de abelha, como meio para criação de imagens, até computadores e softwares com alta capacidade de processamento, passando pela revolução que a criação de pigmentos pela indústria química propiciou, cada etapa do desenvolvimento do mundo concreto alterou a forma de pensar e agir com finalidade estética. Cada etapa do desenvolvimento das forças produtivas propiciou ressignificações acerca do modo de agir próprio do artista, bem como o ato artístico em si.
Nesse texto, não me preocupa a motivação individual da criação, se uma necessidade religiosa, se uma necessidade de comunicar um conceito, se necessidade de expressar a habilidade no manuseio do material original etc. O que me interessa, por hora, é que, independente do que motivou um artista ou comunidade de artífices a criar uma obra de arte, os limitantes de suas criações eram os meios tecnológicos disponíveis.
O estágio de desenvolvimento das forças produtivas vigentes afeta o nível de consciência do artista sobre a própria obra. O mundo concreto objetivo limita a materialização da obra desde sua concepção até a sua concretização. Não postulo com isso nenhum determinismo. O artista, dentro da realidade dada, tanto mais criativo será quanto melhor souber jogar com as limitações impostas por seu tempo histórico.
Um ponto fundamental de como esse aspecto pode alterar a forma e a capacidade que uma obra tem de se integrar no seu complexo social é o fato de que com o advento e a popularização do cinema, rádio e televisão, os homens e mulheres são “alcançados pelas mensagens fílmicas antes mesmo de saberem ler ou escrever”. O “discurso lógico, abstrato, lido” é substituído, ou foi substituído, pouco a pouco, por uma “cacofonia de imagens plurissensoriais”.
Consequentemente, a contemporaneidade configura um momento específico do desenvolvimento da arte: A superação da crise dispersiva dos gêneros. Os gêneros de arte se ampliaram, o conjunto denominado escultura é muito mais amplo hoje do que poderia imaginar um escultor grego ou egípcio da antiguidade, a pintura se expande em possibilidades técnicas e o quadro parece ser um suporte limitado, a música se vale da eletrônica e não mais somente da acústica, disso deriva a dificuldade de separar o que são, efetivamente, obras de arte de simples objetos.
A escola relativista da filosofia do final do século XX e início no século XXI contribuiu, e muito, para lançar areia nos olhos de quem quer que seja que buscasse, e ainda hoje busque, compreender o fenômeno artístico com clareza. Misturam categorias e se valem de Einstein para afirmar a relativização de todo e qualquer conceito, o que expressa que não compreenderam nem arte e, ainda menos, a Teoria da Relatividade. Retomam motes românticos e procuram, a todo custo, inseri-los no mundo contemporâneo, o que acentua o caráter anacrônico do seu discurso. O real problema dessa linha é que ela nos torna incapaz de reconhecer arte quando ela se apresentar, além de ser um discurso altamente reacionário com aparência de revolucionário.
Mas qual a relação de tudo isso com o que o título do texto sugere?
Vou retomar a citação de Pedrosa: “A tecnologia que é condutora de todas as atividades e experiências operacionais é também a socializadora, por excelência, dessas atividades”. O que me interessa aqui é a potência socializadora que a tecnologia possui. A potência socializadora que a internet e redes sociais possuem. A potência socializadora do Facebook e do Instagram.
A primeira coisa a ser considerada é o fato de que nenhuma dessas redes sociais é gratuita. Fazer uma conta e expor sua vida particular é permitido sem custos (sequer isso é verdade, pois é necessário arcar com custos de energia elétrica, operadora telefônica ou internet) assim como caminhar no shopping center aos domingos é permitido, mas tente anunciar um produto dentro de um shopping center sem pagar a seu proprietário os seus direitos de locação, ou tente pegar algo e sair sem trocar por um valor em dinheiro e irá perceber que essas são maneiras infrutíferas tanto de oferecer produtos e serviços quanto de obter produtos e serviços.
Agora pensemos no fator multiplicador: as redes sociais te conhecem de uma forma que nenhuma rede de mercados ou loja de shopping center poderá imaginar te conhecer um dia. O Grande Irmão do Orwell não está na televisão, em frente a você, ele está no seu bolso. Você não tem uma relação de estranhamento para com ele, você o veste em capinhas graciosas e o trata como um amigo. Todo seu histórico de navegação, seus interesses gerais e até sua posição no espaço são oferecidos às redes sociais a todo tempo, muitas vezes em troca de um aplicativo divertido. Isso permite que as redes sociais te conheçam e personalizem a experiência de navegação para você. Ela te aprisiona no universo criado por você mesmo.
O Instagram para mim é completamente diferente do que o Instagram é para você. O Facebook que eu acessei há vinte minutos é completamente diferente do Facebook que você acessou há vinte minutos. Isso não se refere a categorias subjetivas. É concreto. As propagandas, os perfis, os conteúdos de um modo geral são sugeridos pelo meu histórico de navegação. Seria como ir a um mercado e ter lá dentro somente os produtos que já consumi, ou produtos com grande probabilidade de me agradar, partindo de compras passadas. Não há nisso nenhuma liberdade. O instrumento tecnológico com o potencial de me mostrar o mundo me oferece eu mesmo em pequenas pílulas espelhadas.
Seria como se, ao caminharmos por uma grande metrópole, algumas ruas e monumentos históricos simplesmente não se mostrassem para nós. Fossem invisíveis. Paris apenas com Torre Eiffel, Roma apenas com Coliseu, Rio de Janeiro apenas com Cristo Redentor etc. O que veríamos nessa grande cidade prenhe de toda descoberta, ao menos no potencial, seria um espelho de nós mesmos. Não nos seria permitido o espanto de nos depararmos com o desconhecido.
Seria, por fim, a grande cidade narcísica em vícios e virtudes. Está realmente tudo lá, mas não para todos. Nem tudo é visível para todos. A cidade narcísica é um mero reflexo da vida concreta do indivíduo, de modo que a pouca instrução, a pouca liberdade, o pouco conhecimento objetivo, se refletem no interior do mundo mágico-virtual. Isso equivale a dizer que é o extremo oposto de qualquer biblioteca de bairro, em que a única restrição é a ordem alfabética e o tempo de vida disponível de uma pessoa para conhecer toda a coleção. Mas uma coisa é o indivíduo ter condições de decidir o que vale uma vida de leituras para e por si, e outra seria se o bibliotecário decidisse o que ele deveria ler com base em dois ou três livros anteriores.
Quais consequências dessa organização social virtual para a arte? Diz-se, muito recorrentemente, que hoje todo artista tem como sociabilizar seu trabalho, e que todo e qualquer indivíduo pode descobrir maravilhas artísticas nas redes sociais. Isso é verdade no “potencial de”. Na prática não.
Obviamente que não vou atacar as redes sociais como se elas fossem o mal da civilização, são fantásticas nas suas possibilidades, mas estão muito aquém do que os seus entusiastas afirmam em suas propagandas e anúncios.
Elas foram forjadas para um mundo específico, e na realidade bastaria uma pequena mudança no algoritmo de todas essas plataformas para que, de fato, tivéssemos a materialização dessa potência democrática ao acesso e à diversidade artística, mas a pequena mudança nessa linha da programação significaria uma grande mudança nas relações de poder aqui fora, no mundo concreto.
Retomamos a mesma citação de Pedrosa: “a extrema complexidade da civilização moderna não permite a nenhuma atividade de ordem científica, cultural ou estética desenrolar-se no isolamento”.
O mundo virtual é o mundo do isolamento ensimesmado. Cria, na melhor das hipóteses, ilhas digitais de interesse comum, que estão muito suscetíveis ao que é apresentado nos veículos tradicionais, ou ao que possuir investidores com grande potencial de investimento. O alcance é proporcional ao investimento, isso é visível nas páginas de construção de anúncios do Facebook/Instagram e/ou Google/Youtube, sendo assim, qual é a real mudança no mudo contemporâneo em relação ao passado no que diz respeito à democratização ao acesso à arte que se produz hoje?
* Poeta e compositor, bem como professor de física no município de Guarulhos – sua cidade natal.
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