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CULTURA

Instagram e Facebook: Arte para todos?

Guilherme Vazquez*, de Guarulhos, SP
Anthony Quintano/Creative Commons

Mark Zukenberg na F8 2019, conferência anual promovida para desenvolvedores do Facebook.

Mário Pedrosa escreveu na década de 60 um texto intitulado “Mundo em crise, homem em crise, arte em crise”. Esse texto iniciava-se afirmando que “a extrema complexidade da civilização moderna não permite a nenhuma atividade de ordem científica, cultural ou estética desenrolar-se no isolamento”.  Isso nos parece bastante razoável, e acredito ser difícil construir argumentos que busquem provar o contrário. Pedrosa discute o papel da tecnologia nesse processo de compartilhamento de informação muito antes que a realidade das redes sociais, trazida com o advento da internet, fosse concebível: “A tecnologia que é condutora de todas as atividades e experiências operacionais é também a socializadora, por excelência, dessas atividades.”.

O que nos faz concluir que a arte se relaciona e se integra no seu meio social por intermédio do próprio desenvolvimento da tecnologia disponível para sua realização, bem como para ser desfrutada como objeto artístico.

Quando compreendi isso pela primeira vez, o raciocínio me pareceu bastante claro e lógico, embora chegar a compreender tenha me obrigado a superar preconceitos de caráter romântico tardio sobre o processo de criação artística, o que foi, de fato, difícil.

O desenvolvimento da criação de imagens pictóricas, para não usar o termo pintura, está fundido com o desenvolvimento das técnicas e desenvolvimento de tecnologias associadas a essa necessidade: Da utilização de sangue, saliva e cera de abelha, como meio para criação de imagens, até computadores e softwares com alta capacidade de processamento, passando pela revolução que a criação de pigmentos pela indústria química propiciou, cada etapa do desenvolvimento do mundo concreto alterou a forma de pensar e agir com finalidade estética. Cada etapa do desenvolvimento das forças produtivas propiciou ressignificações acerca do modo de agir próprio do artista, bem como o ato artístico em si.

Nesse texto, não me preocupa a motivação individual da criação, se uma necessidade religiosa, se uma necessidade de comunicar um conceito, se necessidade de expressar a habilidade no manuseio do material original etc. O que me interessa, por hora, é que, independente do que motivou um artista ou comunidade de artífices a criar uma obra de arte, os limitantes de suas criações eram os meios tecnológicos disponíveis.

O estágio de desenvolvimento das forças produtivas vigentes afeta o nível de consciência do artista sobre a própria obra. O mundo concreto objetivo limita a materialização da obra desde sua concepção até a sua concretização. Não postulo com isso nenhum determinismo. O artista, dentro da realidade dada, tanto mais criativo será quanto melhor souber jogar com as limitações impostas por seu tempo histórico.

Um ponto fundamental de como esse aspecto pode alterar a forma e a capacidade que uma obra tem de se integrar no seu complexo social é o fato de que com o advento e a popularização do cinema, rádio e televisão, os homens e mulheres são “alcançados pelas mensagens fílmicas antes mesmo de saberem ler ou escrever”. O “discurso lógico, abstrato, lido” é substituído, ou foi substituído, pouco a pouco, por uma “cacofonia de imagens plurissensoriais”.

Consequentemente, a contemporaneidade configura um momento específico do desenvolvimento da arte: A superação da crise dispersiva dos gêneros. Os gêneros de arte se ampliaram, o conjunto denominado escultura é muito mais amplo hoje do que poderia imaginar um escultor grego ou egípcio da antiguidade, a pintura se expande em possibilidades técnicas e o quadro parece ser um suporte limitado, a música se vale da eletrônica e não mais somente da acústica, disso deriva a dificuldade de separar o que são, efetivamente, obras de arte de simples objetos.

A escola relativista da filosofia do final do século XX e início no século XXI contribuiu, e muito, para lançar areia nos olhos de quem quer que seja que buscasse, e ainda hoje busque, compreender o fenômeno artístico com clareza. Misturam categorias e se valem de Einstein para afirmar a relativização de todo e qualquer conceito, o que expressa que não compreenderam nem arte e, ainda menos, a Teoria da Relatividade. Retomam motes românticos e procuram, a todo custo, inseri-los no mundo contemporâneo, o que acentua o caráter anacrônico do seu discurso. O real problema dessa linha é que ela nos torna incapaz de reconhecer arte quando ela se apresentar, além de ser um discurso altamente reacionário com aparência de revolucionário.

Mas qual a relação de tudo isso com o que o título do texto sugere?

Vou retomar a citação de Pedrosa: “A tecnologia que é condutora de todas as atividades e experiências operacionais é também a socializadora, por excelência, dessas atividades”. O que me interessa aqui é a potência socializadora que a tecnologia possui. A potência socializadora que a internet e redes sociais possuem. A potência socializadora do Facebook e do Instagram.

A primeira coisa a ser considerada é o fato de que nenhuma dessas redes sociais é gratuita. Fazer uma conta e expor sua vida particular é permitido sem custos (sequer isso é verdade, pois é necessário arcar com custos de energia elétrica, operadora telefônica ou internet) assim como caminhar no shopping center aos domingos é permitido, mas tente anunciar um produto dentro de um shopping center sem pagar a seu proprietário os seus direitos de locação, ou tente pegar algo e sair sem trocar por um valor em dinheiro e irá perceber que essas são maneiras infrutíferas tanto de oferecer produtos e serviços quanto de obter produtos e serviços.

Agora pensemos no fator multiplicador: as redes sociais te conhecem de uma forma que nenhuma rede de mercados ou loja de shopping center poderá imaginar te conhecer um dia. O Grande Irmão do Orwell não está na televisão, em frente a você, ele está no seu bolso. Você não tem uma relação de estranhamento para com ele, você o veste em capinhas graciosas e o trata como um amigo. Todo seu histórico de navegação, seus interesses gerais e até sua posição no espaço são oferecidos às redes sociais a todo tempo, muitas vezes em troca de um aplicativo divertido. Isso permite que as redes sociais te conheçam e personalizem a experiência de navegação para você. Ela te aprisiona no universo criado por você mesmo.

O Instagram para mim é completamente diferente do que o Instagram é para você. O Facebook que eu acessei há vinte minutos é completamente diferente do Facebook que você acessou há vinte minutos. Isso não se refere a categorias subjetivas. É concreto. As propagandas, os perfis, os conteúdos de um modo geral são sugeridos pelo meu histórico de navegação. Seria como ir a um mercado e ter lá dentro somente os produtos que já consumi, ou produtos com grande probabilidade de me agradar, partindo de compras passadas. Não há nisso nenhuma liberdade. O instrumento tecnológico com o potencial de me mostrar o mundo me oferece eu mesmo em pequenas pílulas espelhadas.

Seria como se, ao caminharmos por uma grande metrópole, algumas ruas e monumentos históricos simplesmente não se mostrassem para nós. Fossem invisíveis. Paris apenas com Torre Eiffel, Roma apenas com Coliseu, Rio de Janeiro apenas com Cristo Redentor etc. O que veríamos nessa grande cidade prenhe de toda descoberta, ao menos no potencial, seria um espelho de nós mesmos. Não nos seria permitido o espanto de nos depararmos com o desconhecido.

Seria, por fim, a grande cidade narcísica em vícios e virtudes. Está realmente tudo lá, mas não para todos. Nem tudo é visível para todos. A cidade narcísica é um mero reflexo da vida concreta do indivíduo, de modo que a pouca instrução, a pouca liberdade, o pouco conhecimento objetivo, se refletem no interior do mundo mágico-virtual. Isso equivale a dizer que é o extremo oposto de qualquer biblioteca de bairro, em que a única restrição é a ordem alfabética e o tempo de vida disponível de uma pessoa para conhecer toda a coleção. Mas uma coisa é o indivíduo ter condições de decidir o que vale uma vida de leituras para e por si, e outra seria se o bibliotecário decidisse o que ele deveria ler com base em dois ou três livros anteriores.

Quais consequências dessa organização social virtual para a arte? Diz-se, muito recorrentemente, que hoje todo artista tem como sociabilizar seu trabalho, e que todo e qualquer indivíduo pode descobrir maravilhas artísticas nas redes sociais. Isso é verdade no “potencial de”. Na prática não.

Obviamente que não vou atacar as redes sociais como se elas fossem o mal da civilização, são fantásticas nas suas possibilidades, mas estão muito aquém do que os seus entusiastas afirmam em suas propagandas e anúncios.

Elas foram forjadas para um mundo específico, e na realidade bastaria uma pequena mudança no algoritmo de todas essas plataformas para que, de fato, tivéssemos a materialização dessa potência democrática ao acesso e à diversidade artística, mas a pequena mudança nessa linha da programação significaria uma grande mudança nas relações de poder aqui fora, no mundo concreto.

Retomamos a mesma citação de Pedrosa: “a extrema complexidade da civilização moderna não permite a nenhuma atividade de ordem científica, cultural ou estética desenrolar-se no isolamento”.

O mundo virtual é o mundo do isolamento ensimesmado. Cria, na melhor das hipóteses, ilhas digitais de interesse comum, que estão muito suscetíveis ao que é apresentado nos veículos tradicionais, ou ao que possuir investidores com grande potencial de investimento. O alcance é proporcional ao investimento, isso é visível nas páginas de construção de anúncios do Facebook/Instagram e/ou Google/Youtube, sendo assim, qual é a real mudança no mudo contemporâneo em relação ao passado no que diz respeito à democratização ao acesso à arte que se produz hoje?

 

* Poeta e compositor, bem como professor de física no município de Guarulhos – sua cidade natal.