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Onde você vai estar quando isso passar?

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

“Me explica a grande fúria do mundo (…) O que você vai ser quando você crescer?”
(Renato Russo, em “Pais e filhos”)

Como tentei assinalar no pequeno artigo “A dialética das panelas”, o nosso apartamento social, a nossa obrigatória separação atual, produziu, curiosamente, mais união, mais senso de coletividade e mais consciência política universal. Salvar as vidas ou os lucros, este é o dilema que o país vive, e que muitos, antes absorvidos pelo ramerrão da vida e politicamente inertes, decidiram responder. Há uma luta de ideias em curso, uma luta pelas consciências, uma luta de vida ou morte, e muitos nela tomam parte, tomam partido, pois está ficando cada vez mais claro para os citadinos de todas as pólis que a política de Estado sob o capitalismo contemporâneo pode levar não só à morte dos outros, não só a dos atuais escravos, mas também às nossas e a dos nossos amigos, parentes e queridos cidadãos. As mortes que antes estavam, para muitos, apenas nas favelas, agora, sem delas saírem, invadem ou ameaçam invadir também nossas janelas.

Muitos estão decidindo se engajar de forma mais efetiva, mais ativa, mais decisiva na luta política. As campanhas de solidariedade são fundamentais, as vaquinhas online, essenciais, as conversas com amigos e conhecidos, imprescindíveis no tempo presente. No entanto, está cada vez mais evidente que a pandemia apenas agudizou nossa agonia, e que ela não vai cessar enquanto houver neofascismo e neoliberalismo. Estes vieram ao mundo para lucrar e matar, e colocaram em risco o próprio mundo. Nossa tarefa é, nada mais nada menos, a de salvá-lo. Seguirmos depois da pandemia como antes, seguirmos nas nossas questões comezinhas no reino de Abrantes, seguirmos com nossas ambições profissionais como se estas fossem vitais, será apenas uma forma de deixá-lo morrer pelas mãos dos outros, e as lamentações críticas não servirão senão para amainar a nossa culpa na hora de dormir. O mundo será outro depois da pandemia, é certo, mas depende de nós que novo mundo ele será, se melhor ou ainda pior do que o atual.

Causada por um vírus, a interrupção nas engrenagens da máquina fez cair o véu da naturalidade do seu funcionamento, mostrando que ela, a máquina, a sociabilidade burguesa, a submissão da vida à acumulação capitalista, é movida à política, e que é só pela política, portanto, que ela pode ser parada. Se a política sempre esteve, como lembrou um dramaturgo alemão de outrora, no preço do pão e do leite, agora ela está também no número de mortos que uma mutação viral nas recônditas cavernas florestais pode causar nos grandes centros urbanos do mundo. A rejeição da política nos levou, no Brasil e alhures, ao dramático momento atual, e ela está cobrando um alto preço letal, calculado em caixões e em pás de cal. Não adianta só “votar certo”, não basta “fazer a sua parte” sozinho. Manifestações e atuações coletivas são indispensáveis. Uma ciência humanitária será fundamental, e uma teoria social crítica, essencial. Uma arte coletiva que reflita as contradições de um mundo à beira do caos é e será, sem dúvida, uma arma importante na luta pela sua salvação.

Contudo, as vidas e a dignidade de milhões não serão preservadas, queiramos ou não, apenas por posts de esquerda, por votos corretos a cada dois anos, por peças de teatro comprometidas, pelo humor crítico, por grupos acadêmicos de estudos, por campanhas salariais e por teses de doutorado marxistas, embora não as possam ser sem todos estes. Somente uma organização política coletiva, capaz de sintetizar o melhor da produção cultural e científica universal, tornando-as efetivamente um instrumento para ação de milhões de trabalhadores e oprimidos pode proteger a humanidade dos seus próprios perigos, pode livrar-nos a todos dos pecados do mundo, e dar-nos, um dia, a paz. Se hoje alguns poucos vivem para militar, depois da pandemia, milhares terão que militar para que milhões possam viver. Onde você vai estar quando isso passar?

 

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