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MOVIMENTO

Dicas para uma militância longa e saudável: não é coach

Por Marcos Cesar, do Rio de Janeiro (RJ)

Escrevo essas linhas para consideração de toda militância da Resistência e também das pessoas que lêem o Esquerda Online.

Convenciono chamar de projeto isto que pretende ser uma série de textos publicados nesse importante veículo digital, com o objetivo de dividir experiências e aprendizados práticos ao longo de quase 20 anos ininterruptos de organização e militância política. Tal projeto não pretende ser a revelação de verdades ou obra solitária, cabendo sempre o questionamento das observações apontadas e a colaboração de pessoas que queiram aderir ao projeto.

Feitas as devidas apresentações iniciais, convido todas as pessoas que não se cansaram pelo formalismo das letras que se mantenham presentes, pois aqui deixo a primeira contribuição para o que acredito ser importante observar para uma militância longa e saudável.

Do autocuidado

Autocuidado, como o próprio nome traduz, é cuidar de si mesmo. Na militância popular, progressista, de esquerda ou revolucionária, estamos geralmente em espaço coletivos, em contato e ação com o outro, podendo sermos ou não também afetados diretamente pelo fenômeno sobre o qual nos dispomos a enfrentar.

Ao sermos parte diretamente interessada na questão, podemos podemos entender o espaço coletivos também como uma ação de autocuidado, quando não é o caso tal relação não é tão evidente. Porém, seja como parte interessada ou como parte solidária, é importante entender que essa luta em específico não abarca todas complexidade de uma vida humana. Atravessada por experiências de toda ordem, na família, trabalho, educação, espiritualidade, saúde, lazer e tantas outras categorias também estão acontecendo concomitante com a luta ou as lutas que abraçamos, a experiência de viver exige de nós atenção e consciência sobre todos os aspectos manifestos, sobre pena de ao não estarmos presentes em algum deles reproduzirmos automaticamente comportamentos que mantém a estrutura do mundo como é, no lugar de autonomamente produzirmos o mundo do por vir. Com essas palavras quero dizer que não podemos fazer da luta o resumo de nossa vida, pois ainda que ocupe nosso maior tempo, como em uma ocupação de moradia, um assentamento, ou que seja nosso trabalho como profissional, não ocupa a totalidade do nosso tempo, mas se você tem essa sensação talvez seja momento de repensar.

Autocuidado passa pelo reconhecimento de nossas necessidades, no geral colocadas físicas, mentais e emocionais, não sei se essas três categorias dão conta de organizar todas as nossas necessidades, suspeito que não, mas se observamos a princípio essas três já teremos avançado bastante na garantia de uma militância longa e saudável, porém não poderia deixar de incluir ao menos uma quarta que me atravessa como pessoa negra quilombola que é a espiritualidade.

O reconhecimento dessas necessidades é o começo para entrar em um campo epistemológico si, é produzir conhecimento sobre o eu, tomar conhecimento do seu corpo e de sua saúde, perceber-se como sujeito no mundo dotado de história e fruto de um processo histórico coletivo, é iniciar um processo de autoconhecimento. Aqui não objetivo cair na retórica dos coaches de que você é a única pessoa responsável pela sua vitória ou fracasso, nem pretendo trabalhar com tais categorias, aqui pretendo apontar o caráter alienante do capital, que reduz a complexidade de nossa existência a de força de trabalho, a ação passivadora dos mecanismos de reprodução social que nos condicionam a heteronomia e pretendo defender aqui que o autocuidado e o autoconhecimento são essenciais à autonomia e a ruptura com a lógica capitalista.

Autocuidado não é sinônimo de egoísmo. É observar os cuidados básicos necessários à vida e desenvolver autoestima. Mesma autoestima atacada todos os dias pelos aparelhos ideológicos do capital que nos impõem padrões inatingíveis para atingir um ideal de felicidade alheio.

Enquanto o capital terceiriza o cuidado ao trabalho invisível, cabe a nós romper com essa prática, tomando para nós a responsabilidade pelo próprio cuidado e criando redes de cuidado mútuo, pois não há vida humana fora da vida social, cuidar de nós mesmos e cuidar do outro é diferente de transferir ao outro essa responsabilidade.

Sei que inserir a prática do autocuidado pode parecer uma tarefa impossível diante do roubo contínuo do nosso tempo. Porém, principalmente as companheiras mulheres têm esse tempo roubado cuidando de tudo e de todos, e imagino que para elas o chamado a cuidar de si é até imoral, mas qual a justificativa dos companheiros homens? Muito “ocupados com as grandes tarefas revolucionárias” não vão a um médico se não for a companheira que marque a consulta.

Assumir na nossa rotina a responsabilidade do cuidado não se trata de grandes planejamentos, mas sim organização e disposição tal qual a militância, porém em atenção às próprias necessidades.

Nós não nascemos sabendo práticas de autocuidado, porém sempre podemos aprender.

Como sugestão, deixo uma tarefa provocativa como primeira experiência ativa de autocuidado, pesquise por práticas de autocuidado na rede mundial de computadores, e fazendo leitura crítica e não reacionária, acolha atitudes sugeridas e coloque no seu dia a dia.

Um abraço camarada e até o próximo texto.

Marcos é membro do Núcleo de Negros e Negras da Resistência/PSOL, aluno da Faculdade Nacional de Direito/UFRJ e militante do Sepe e do Quilombo Maria Conga