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BRASIL

Para além de loucuras e mentiras: Notas de um 1º de Abril de 2020

Isabel Mansur*, do RIo de Janeiro, RJ

A imagem que revela o “rei nu” está na capa da Folha de S. Paulo de 1º de Abril de 2020. Nela, vários corpos carregados em caixões exigem sepultadores protegidos por roupas que cobrem seus corpos dos pés à cabeça. Como naquele 1º de abril de 56 anos atrás não se trata de um dia da mentira. Se trata de mais um dia de verdade, no qual projetos fascistas se apresentam sem máscaras: eles matam ou deixam morrer. 

Desdizer a OMS, o Ministério da Saúde, os dados e os fatos, não faz de Bolsonaro menos sério em seu projeto. Já disse Demier, “Bolsonaro sempre jogou limpo o seu jogo sujo”, frase que talvez explique de forma didática sua postura sui generis, pela qual a falsa e mórbida comédia assume o lugar da real tragédia. 

Ao contrário de “fraco” e “sem noção”, Bolsonaro deixa evidente a força de sua política de morte. Apresentou, na primeira chance, a proposta de liberação das armas, o endurecimento das leis penais, efetivou a reforma da previdência da não-aposentadoria e a reforma trabalhista do desemprego. Tudo em pouco mais de um ano. Para seu projeto, mais valem trabalhadores mortos do que lucros minimizados. Aliás, trata-se de uma velha e conhecida fórmula do capital-imperialista quando lida com superpopulação relativa à escala global, que dirá em um país de economia subordinada e dependente como o Brasil. 

De sua gaveta saltavam, ainda, diversos pacotes de necropolítica econômica, quando a COVID-19 se tornou uma realidade. Se hoje a tragédia vem à tona, não foi Bolsonaro que mudou. O que mudou foi o contexto. E é do novo contexto que surgiram as razões para seu desgaste. É por isso que, agora, o “rei está nu”.

Em pouco menos de um mês, o “fanfarrão”, o “lunático”, o “capitão corona” precisarão ser inevitavelmente abandonados, pois não estaremos diante de um “fora de órbita”. As palavras não são simples palavras, já dizia Florestan Fernandes. É preciso nomear, urgentemente, o compromisso e o projeto político que ameaça o país: Bolsonaro é um neofacista, um genocida. Afinal, aquilo que não é nomeado é imediatamente apropriado por seu avesso, e a inversão dos fatos é um passo largo para seu não reconhecimento. Em nome dos milhões de brasileiros que podem morrer de fome ou de COVID-19, Bolsonaro precisa ser urgentemente chamado pelo que ele é. 

Hoje, quase um mês após o início da quarentena, o governo dedicou bilhões para salvar os empregadores e nenhum real para os trabalhadores, os informais, as mães de família. Até mesmo a sanção da renda básica o governo se nega a efetivar. Se demorar mais, Bolsonaro efetivamente inviabilizará o isolamento social, e as pessoas estarão diante de um letal paradoxo: morrer de fome ou de COVID? Bolsonaro ainda ameaça o país com a PEC 95, como se agora fosse a melhor oportunidade para rebaixar salários e flexibilizar ainda mais as relações trabalhistas.

Neste sentido, mesmo as previsões mais pessimistas não chegam a alcançar o real e mortífero conteúdo do fenômeno bolsonarista. Agambem falou em Estado de exceção permanente e vida nu, Mbembe em necropolítica como unidade entre biopoder, soberania e Estado de exceção, ambos como condição inumana advinda da subtração do Estado de direito de forma permanente. Na base hegeliana desta filosofia, a “vida” e a soberania política não pressupõe medo da morte, mas a própria morte. Diz Mbembe citando Hegel: “A política é, portanto, a morte que vive uma vida humana”. Mesmo estes sofisticados autores, que tangenciam o conteúdo real do absurdo absoluto do poder de matar, não permitem entender o embróglio bolsonarista em toda sua complexidade. 

É preciso ir à raiz do problema. E esta raiz, demonstrou Marx, é o homem socialmente determinado, envolto em relações materiais de produção da vida social. Tecendo esse fio é que poderemos, talvez, deslindar o sentido da funesta farsa bolsonarista, percebendo como, nela, não se trata abstratamente da vida e da morte, mas da vida e da morte em condições materiais determinadas, da vida e da morte na relação capitalista.  

Vejamos. Sendo o trabalho um ato criativo e inovador, criador de meios de vida e de experiências de sobrevivência, é ele que precisa agora, em condições críticas, e disso os Paulos Guedes bem o sabem, seguir sendo apropriado privadamente na reprodução social do Capital. O Estado e toda forma jurídico-política e repressiva vem ao apuro de proteger esta acumulação, e não o viver enquanto produção e reprodução de existência. Essa é a base mais sólida do neofascismo bolsonarista. Um Estado capaz de matar para manter a acumulação, um Estado que aproveita a crise para afirmar o lucro acima da vida, e não o contrário. 

Que a defesa do capitalismo, quando colocadas em xeque suas condições de reprodução, tenha resultado em guerra, ditaduras, fascismo e barbárie não é novidade. No atual momento, centralizado e mundializado o capital, estamos diante de uma oposição cada vez mais visceral: vida humana ou barbárie. Esta é a realidade subjacente a todas as supostas loucuras e mentiras palacianas.

Essa disjuntiva, que acelera a necessidade de reação, não permite vacilo nem ilusões. Não haverá saída a frio, seja por um acordo de palácio, ingênuos pedidos de renúncia, ou pedidos formais de impedimento. Haverá, sem dúvida, uma evolução do desgaste do presidente em meio à crise econômica e humanitária, e a situação pode evoluir muito rapidamente para uma crise política com saídas diversas, inclusive à esquerda. 

Diante de muitos que perderão suas vidas na tragédia bolsonarista, salvar vidas tornou-se a tarefa mais imediata. A unidade de ação em torno deste compromisso é expressão mais urgente da luta contra o projeto econômico e social de Bolsonaro: isto é, a luta da vida contra a morte, a luta da existência contra o Capital.

 

*Isabel Mansur é socióloga e doutora em Serviço Social.