Tudo começou com as cadeiras. Era o início dos anos 2000 quando iniciaram a instalação delas nas arquibancadas dos principais estádios brasileiros. A justificativa era a segurança: “Aumentar o controle e combater os marginais das Torcidas Organizadas!”. As Torcidas Organizadas, aliás, eram apontadas como as grandes vilãs do nosso futebol. Bem ao gosto da cartilha neoliberal, que tem ojeriza a movimentos populares e organizações coletivas, a grande mídia defendia (e segue defendendo!) o seu fim.
Acontece que, não por acaso, manter os torcedores “desorganizados” e sentados também era bom para os negócios. Sozinho e acomodado em sua cadeira o torcedor tende a preencher seu tempo com um cachorro quente, uma bebida, enfim, consumindo. E assim, a massa festiva e ruidosa das arquibancadas foi aos poucos dando lugar a consumidores solitários e quietos.
Em seguida, para atender às exigências da “Dona FIFA”, e fazer a alegria de empreiteiras, cartolas e de uns tantos políticos, só cadeiras e lanches não bastavam. Era necessário reformular completamente os estádios. Foi o fim dos setores populares, como a “geral” do Maracanã e do Mineirão, a “coréia” do Beira-Rio, e similares. A diminuição da capacidade de público após as reformas, o desejo de atrair um público consumidor de maior poder aquisitivo, e até o preconceito que sempre localiza a origem da violência entre os mais pobres, serviram de argumentos para o aumento expressivo no preço dos ingressos. As “novas arenas” eram só para gente “diferenciada”.
Para garantir o “clima de teatro” no estádio, e o conforto e a visibilidade do torcedor-consumidor-diferenciado, outras medidas seguem sendo paulatinamente implementadas. Proíbem bandeirões, bandeiras, papel picado, pó de arroz, faixas, papel higiênico, sinalizadores, bateria… reprimem até comemoração de gol. Inviabilizam a festa das torcidas, excluem os mais pobres, e privam os torcedores de um dos poucos espaços de lazer e manifestação coletiva.
Apesar de tudo isso, quase que por milagre, o futebol resiste despertando paixões e embalando sonhos… Sonhos que levam crianças, por exemplo, a saírem de casa, do convívio de sua família, para morar em outra cidade ou estado, tentando se tornar jogador em um grande clube. Há um ano, 10 desses meninos tiveram seus sonhos interrompidos por um incêndio, enquanto dormiam em alojamentos improvisados em containers nas dependências do Flamengo, o clube de maior torcida (e de maior receita) do Brasil.
Desde então a diretoria do Flamengo, constantemente apontada pela mídia esportiva como referência de “gestão moderna”, vem aplicando todo seu conhecimento técnico e empresarial nas tratativas com as famílias. Primeiro, ao invés de negociar coletivamente as indenizações, buscou as famílias individualmente, numa clássica tática de divisão, que busca se aproveitar da fragilidade e desespero de uns para pagar valores menores. A revelação recente de que o clube impôs às famílias sigilo sobre os detalhes dos acordos já firmados não deixa dúvidas sobre essa intenção.
Porém, o mais cruel talvez tenha sido as recentes declarações dadas na mídia do próprio clube. Tratando do tema como se tratasse de uma mera contratação de um novo volante ou lateral direito para composição do elenco, os principais dirigentes do Flamengo, que recorreram recentemente da decisão cautelar da Justiça do Rio que obrigava o clube a pagar 10 mil reais mensais a cada família, fazem um verdadeiro ultimato às famílias, afirmando que os valores oferecidos já são “satisfatórios”, e que o clube não aumentará a proposta. Para justificar essa postura, chegam a comentar que, pelas estatísticas, esses meninos dificilmente seriam titulares do time profissional. Está dada aí a segunda morte dos meninos. Não bastasse a morte física, dolorosa para os amantes do futebol e certamente insuperável para os familiares, agora se descobre que eles morreram em vão, já que seus sonhos pouco valem nas planilhas e projetos que fazem parte da “gestão moderna”.
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