Não sou escravo de ninguém
Ninguém senhor do meu domínio
Sei o que devo defender
E por valor eu tenho
E temo o que agora se desfaz
Viajamos sete léguas
Por entre abismos e florestas
Por Deus nunca me vi tão só
É a própria fé o que destrói
Estes são dias desleais
[…]
É a verdade o que assombra
O descaso o que condena
A estupidez o que destrói
Eu vejo tudo que se foi
E o que não existe mais
Tenho os sentidos já dormentes
O corpo quer, a alma entende
Esta é a terra de ninguém
E sei que devo resistir
Eu tenho a espada em minhas mãos
[…]
Não me entrego sem lutar
Tenho ainda coração
Não aprendi a me render
Que caia o inimigo então
Tudo passa, tudo passará
E nossa história não estará pelo avesso
Assim, sem final feliz
(Renato Russo, em Metal contra as nuvens)
Em tempos de crise, não há nada mais a pactuar com os de baixo, pois o pacto já não é possível para os de cima. Se, no início, sob as democracias blindadas neoliberais, os oprimidos recebiam do Estado pouco mais do que palavras, pouco mais do que o verbo, agora, sob o neofascismo ultraneoliberal, a palavra só pode existir se for para verbalizar precisamente o ódio às vítimas das opressões.
Agora, cabem aos negros receber pouco e não reclamar, pois a universidade não é e nem nunca deveria ter sido aberta a eles. Agora, cabem às mulheres apanhar caladas, pois sua submissão ao marido é natural, e não há nada que possa ou deva mudar isso. Agora, os homossexuais devem voltar para o armário, pois os neofascistas saíram dele tão afobadamente que deixaram cair os esqueletos que, há décadas, guardavam nem tão secretamente. Já os transsexuais devem optar entre ficar em casa, ou serem linchados na rua, e os quilombolas, entre se esconder ou morrer.
Uma vez tornados símbolos da nacionalidade brasileira pela pena de escritores românticos do século XIX, os indígenas, por sua vez, convertem-se, sob o “nacionalismo” neofascista de Bolsonaro, em verdadeiros párias nacionais. Eles devem ser todos mortos e suas almas sequer poderão ser vendidas em um leilão, tal qual sugere ironicamente a canção, simplesmente porque, para os bolsonaristas, mais afeitos a Sepúlveda do que a Las Casas, elas sequer existem. Nos quadros de um capitalismo incendiário, os ambientalistas, incluindo aí os servidores públicos de órgãos como o Ibama, caso não entendam que o meio ambiente deve ser destruído para que em seu lugar possa florescer o tal ambiente de negócios, devem ser trancafiados em celas escuras ou enviados para “a ponta da praia”, segundo as palavras presidenciais. Resta-lhes, também, o destino de Chico Mendes, cujo espectro, junto ao de Paulo Freire, Mariguella e Marielle, assombram as noites da nossa ignorante lumpemburguesia no poder.
Concomitantemente à ofensiva contra os direitos exigida pelo capital e executada pelo governo, as ideologias do racismo, do machismo e da homofobia assumem dimensões pletóricas em nosso tecido social em vias de desagregação. O crescimento vertiginoso tanto de um neopentecostalismo individualista e preconceituoso, quanto da repulsa à ciência, ao conhecimento, às universidades, à diversidade e à igualdade – mesmo que à liberal “igualdade de oportunidades” –, completam o quadro ideológico do nosso tempo presente. O tratamento secundário e muitas vezes apenas humorístico dado a essa cultura do ódio por parte dos grandes meios de comunicação do capital evidencia o fato de que o conteúdo neofascista de Bolsonaro e suas pretensões bonapartistas, ainda que não sejam parte de um projeto propriamente orgânico da burguesia brasileira, podem se constituir, talvez, na única maneira de atender objetivamente aos interesses desta daqui para a frente.
Assim, em seu ápice, em sua forma mais desenvolvida e moderna, o capitalismo neoliberal na periferia do sistema parece, assim, ter que se livrar de quaisquer valores desenvolvidos e modernos, mesmo que os de cunho meramente democrático-liberal. Convertido em ultraneoliberalismo, o capitalismo neoliberal, em sua sanha de tudo retirar, já não tem nada a oferecer em troca. Agora, a “contrapartida” oferecida ao pauperismo é mais pauperismo. Agora, a “contrapartida” oferecida aos grupos historicamente excluídos e desfavorecidos é mais exclusão e mais desfavorecimento. Agora, a “contrapartida” oferecida ao fim prático dos direitos humanos é de mais humanos negros e pobres mortos. Agora, a desigualdade é um valor, a irrazão substitui a razão, e o preconceito, o Conceito (Hegel). Agora, a burguesia brasileira, que nunca se deu muito bem com a igualdade, a liberdade e a fraternidade, adota como adágio definitivo nada menos do que “Infantaria, Cavalaria [e] Artilharia!”.1
Agora, portanto, os movimentos contra as opressões adquirem ainda mais importância e potencial disruptivo do que antes, e não é por acaso que o movimento feminista, desde o #Elenão!, quando apresentou uma pauta que combinava a luta contra o machismo à luta contra a retirada de direitos, tem desempenhado o papel de vanguarda na resistência ao neofascismo brasileiro. Ao lado do feminismo classista, a resistência de indígenas e ambientalistas ao ferro e fogo oferecidos pelo governo, e o enfrentamento, na maioria das vezes ainda inorgânico e espontâneo, da juventude negra das periferias e comunidades contra a violência policial podem ser vistos como os possíveis germes de uma futura rebelião popular, que hoje ainda parece distante. Tal distância, entretanto, mais do que um objeto de lamento, deve ser vista como a possibilidade que ainda existe para que a esquerda socialista finque suas raízes em tais movimentos, unifique-os, eduque-os, e, quando for o momento certo, possa conduzi-los, finalmente, à vitória contra o neofascismo e o ultraneoliberalismo no Brasil. O mundo começa agora, apenas começamos.
1 O 18 brumário de Luís Bonaparte [e Cartas a Kugelman]. Tradução de Leandro Konder e Renato Guimarães. 4ª edição. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1978, p. 57.
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