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OPRESSÕES

Negros escravizando negros, como pode isso?

Renato da Silva Vicentini

“Negros sempre escravizaram negros. Escravizam até hoje na África. Quer reparação histórica? Vá cobrar no Congo! Boa sorte!” – Palavras de Sérgio Nascimento de Camargo, Presidente da Fundação Palmares.

Este argumento, utilizado pelo mais novo jagunço de Bolsonaro, é o argumento mais canalha dentre todos os utilizados para se combater as políticas de reparação aos negros brasileiros.

Para início de conversa, nem existiam “negros” na África (subsaariana) antes do século XV.

Parece absurdo o que estou dizendo, mas antes do século XV também não existiam “brancos” na Europa, “índios” na América ou “amarelos” na Ásia. Essas categorias só se tornam possíveis de serem pensadas após a expansão marítima europeia.

Para os povos africanos, que passaram grande parte da sua existência sem ver ou ouvir falar de pessoas “brancas”, a categoria “negro” não poderia ser pensada, menos ainda ser utilizada como elemento de união entre grupos rivais.

Afinal de contas, qual era a cor dos escravos no Oriente Médio, na Grécia, em Roma e em toda Europa antes da Modernidade? Sim, eram brancos!

Ao longo do período medieval, em maior ou menor intensidade, dependendo do local e da época, cristãos e muçulmanos se escravizaram mutuamente em decorrência de suas guerras religiosas e territoriais. Houve, inclusive, um grande fluxo de europeus (portugueses, italianos, franceses, islandeses e britânicos) capturados por corsários árabes para serem escravizados no Norte da África – Marrocos, Argélia, Tunísia, etc. –  entre os séculos XV e XVIII.

O exemplo mais marcante talvez seja o dos antigos povos eslavos – que deram origem aos atuais russos, sérvios, poloneses, ucranianos, etc., dentre outros povos loiros da Europa Oriental – que foram escravizados em massa na Alta Idade Média por povos germânicos, árabes, bizantinos, etc. Tanto que a palavra eslavo deriva da palavra latina slavus ou ainda, sclavus que pode ser livremente traduzida como escravo. No grego bizantino há também o termo sklábos, que também pode ser traduzida como escravo. Esta relação ficou ainda mais preservada na língua inglesa, onde slav (eslavo) pouco se diferencia de slave (escravo).

Isso porque a escravidão era fruto do confronto entre povos inimigos, que se diferenciavam pelo idioma, pela religião e demais aspectos culturais e não pela cor da pele. O escravo era o prisioneiro de guerra.

Com a escravidão atlântica não foi diferente, não se pensava racialmente, o que havia era uma política entre Reinos! Reis africanos, financiados por reis europeus, faziam guerras para escravizar povos de outros reinos e tribos dentro África. O racismo só veio a surgir séculos depois!

Contudo, a presença europeia na África mudou toda a dinâmica da escravidão por lá: se antes ela era consequências de guerras, agora ela se tornou a causa, pois o escravo virou mercadoria valiosa. O fluxo de pessoas escravizadas para serem enviadas para América é algo que não teve precedentes na história da humanidade.

Todos lucraram (chefes africanos, comerciantes portugueses, fazendeiros brasileiros), menos os povos escravizados! Ninguém se torna menos vítima porque um de seus algozes tem a sua cor. Ninguém ousa dizer que os judeus não mereciam reparação pelos crimes cometidos pelos nazistas, tendo em vista que judeus e alemães tinham a mesma cor.

Descendemos das vítimas que nunca foram indenizadas e quando falamos de racismo, estamos falando do presente, não do passado. Respeite a população negra do Brasil, Bolsonaro! Tire seus capitães-do-mato do nosso encalço!

 

Bibliografia de referência

Cardoso, Ciro Flamarion, Marcelo Rede, and Sônia Regina Rebel de Araújo. “Escravidão antiga e moderna.” Revista Tempo 3.6 (1998): 9-15.

Da Costa, Alberto. Um rio chamado Atlântico: a África no Brasil e o Brasil na África. Nova Fronteira, 2003.

Davis, Robert C. “Muslim Masters: White Slavery in the Mediterranean, the Barbary Coast, and Italy, 1500-1800.”Hampshire: Palgrave Macmillan (2003).

El Fasi, Mohammed, and Ivan Hrbek. História Geral da África–Vol. III–África do século VII ao XI. Vol. 1. UNESCO, 2010.

 

Marcado como:
escravidão / Racismo