Não pode haver dúvida de que houve um golpe contra o governo de Evo Morales. A arquitetura dele foi complexa, mas o desfecho é bastante conhecido na América Latina: os militares dando a ordem de renúncia, com o patrocínio do imperialismo norte-americano.
A direita boliviana representada, principalmente, por Carlos Mesa, a extrema-direita liderada por Luis Fernando Camacho (empresário e presidente do Comitê Cívico de Santa Cruz) e os militares bolivianos derrubaram um presidente eleito.
Estes três atores políticos representam os interesses da burguesia boliviana, historicamente conhecida pelo seu caráter conservador, oligárquico e racista. Mesmo Evo tendo garantido estabilidade econômica ao longo de treze anos de governo, essa classe dominante não hesitou em derrubá-lo violentamente quando a oportunidade apareceu.
A burguesia tentou impor a queda do governo de Evo Morales várias vezes: referendo em julho de 2008; golpe cívico em setembro de 2008; plebiscito de aprovação da Nova Constituição em janeiro de 2009; eleições presidenciais de 2009 e 2014; referendo de fevereiro de 2016; e, por último, nas recentes eleições presidenciais de 20 outubro de 2019.
Se apoiando na força popular despertada pelo processos revolucionários no início do século, que derrotaram nas ruas diversos governos neoliberais, Evo venceu a direita com ampla margem de vantagem em quase todas disputas eleitorais. Mas quando a classe dominante viu a possibilidade de derrubá-lo, não titubeou. Foi implacável.
O golpe contra Evo avançou, entre outros motivos, porque sua popularidade junto à classe trabalhadora e aos movimentos sociais já não era a mesma de antes. A correlação de forças favorável havia mudado. Morales fez tantas concessões à burguesia ao longo de seus governos, anestesiou tanto a esquerda boliviana e as direções dos principais movimentos da classe trabalhadora, que, quando a elite deu o xeque-mate, a Central Operária Boliviana (COB), acostumada a derrubar governos e enfrentar os militares, se juntou ao pedido de renúncia de Evo, encabeçado pelo super-reacionário Comitê Cívico de Santa Cruz e pelo general chefe das Forças Armadas. A posição da COB e de outras organizações operárias reflete o desgaste de Morales em muitas entidades sindicais e movimentos sociais.
O papel do imperialismo, a resistência e o xeque-mate
Já antes das eleições, os Comitês Cívicos aprovaram desconhecer o resultado eleitoral caso não houvesse segundo turno. O resultado apertado (47,07% para Evo e 36,52% para Mesa), indicando não haver segundo turno, desencadeou a batalha nas ruas.
Foram vinte dias de confrontos entre, de um lado, mineiros da COB e camponeses defendendo reconhecer o resultado eleitoral e, de outro, a oposição de direita e extrema-direita exigindo segundo turno e, rapidamente, evoluindo para renúncia do governo.
Os presidentes do Brasil e da Argentina, Jair Bolsonaro e Maurício Macri, não reconheceram o resultado eleitoral e o jornal boliviano El Periódico revelou áudios da visita do presidente do Comitê Cívico de Santa Cruz ao Ministro das Relações Exteriores do governo brasileiro, Ernesto Araújo, ainda em maio. Por sua vez, a OEA, comandada pelos Estados Unidos, sugeriu um segundo turno, ainda que tenha aceitado fazer auditoria.
Enquanto a auditoria se desenvolvia e Evo chamava o diálogo com os opositores, a resistência nas ruas enfrentava o braço fascista do comitê cívico e a omissão da polícia. O racismo e o ódio afloraram na mesma velocidade que o terrorismo das ações da extrema direita.
As 72 horas que antecederam a renúncia foram a demonstração de um plano elaborado e articulado com os militares, contando também com o apoio decisivo de Trump e Bolsonaro. Nos últimos dias, os motins policiais se alastraram rapidamente. Os meios de comunicação transmitiam, ao vivo, franco-atiradores que disparavam contra mobilizações, afirmando, de forma mentirosa, serem cubanos e venezuelanos trazidos pelo governo. As casas das lideranças do MAS e da irmã de Evo foram queimadas e familiares sequestrados até renunciarem. A tudo isso somou-se a exigência de Camacho da renúncia de todos — do governo, da Assembleia Legislativa e dos membros do TSE —, menos da cúpula das Forças Armadas.
O xeque-mate era questão de horas. Após dezessete autoridades do governo renunciarem e a COB pedir a Evo que evitasse banho de sangue renunciando, encurralado pelo comitê cívico e o comando militar, o governo já estava por um fio.
O chefe das Forças Armadas mostrou a cara e deu a ordem: “Evo, renuncie”! Quem tanto havia feito pela burguesia e deseducado os movimentos sociais, optou por não chamar a resistência nas ruas.
O golpe foi tão profundo que o Comitê Cívico, com os militares ao seu lado, afirma que é preciso manter 48 horas de vigília nas ruas até que uma junta governamental seja instituída. A ruptura da ordem institucional pelas mãos dos militares e do imperialismo é tão evidente que agora eles debatem a formação de um governo provisório, que supostamente convocaria novas eleições.
O processo em marcha na Bolívia revela que as classes dominantes latino-americanas e o imperialismo norte-americano estão dispostos a recorrer aos golpes, inclusive aos diretamente militares. Após a eclosão das revoltas sociais no Equador e no Chile e da derrota eleitoral da direita neoliberal na Argentina, a extrema direita latino-americana e o Estados Unidos buscam uma contraofensiva, começando pela Bolívia.
Comentários