“(…) Tem 12 dias hoje que eu espero por um resultado, de encontrar meu filho. Ninguém da Vale veio me procurar para falar: “Olha, o seu filho está aqui”. Quando conversa comigo é vir procurar se eu estou bem. Como é que eu vou estar bem se eu perdi meu filho?”
Enterraram ele na lama, tá lá. Ninguém me da notícia, ele veio para cá para trabalhar, não foi pra morrer não. Que ele tem poucos dias que foi casado, tem… tinha a esposa dele, tinha a casa dele, e eles tiraram tudo isso dele. Para completar, estão tirando ele de mim. É vir para cá, todo o santo dia e esperar um resultado e ver se alguém vem me confortar, para falar comigo: “olha, encontraram seu filho”, nem que seja um pedaço dele, eu quero ele de volta. Eu quero enterrar o meu filho.
Tudo por causa da ganância, do infeliz que não soube ter controle do que ele estava fazendo, ele só queria dinheiro e mais nada, só dólar que ele queria. Ele não estava se importando com o tanto de vida que ia perder não, cadê que ele não veio aqui pegar na minha mão pra procurar o que é que eu estou passando, o que é que aconteceu com o meu filho. Ele não vem, eu não conheço ele. Eu só sei a fama, que ele destruiu meu filho, e destruiu vários filhos ai, é muita mãe chorando, é muito pai chorando, é muito irmão chorando.”
Wilson Francelino Caetano – morador do Pará de Minas
Quem foi que matou o filho de seu Wilson?
Há exatos três meses atrás presenciamos o segundo maior desastre socioambiental, causado por barragens de mineração, da história da humanidade. Hoje, os números oficiais são de 229 mortos e 48 desaparecidos. Dentre eles, está o filho de seu Wilson. O capitalismo predatório e as chamadas sociedades anônimas operam tal forma que é cada vez mais difícil saber quem manda nas grandes corporações. Um patrão sem rosto, uma tragédia aparentemente sem responsáveis. A resposta para quem é o responsável pelo assassinato de, ao menos, 229 pessoas é complexa. Não é possível apontar um único culpado. Nesse pequeno artigo, queremos buscar pistas a respeito dos responsáveis pelo crime.
Começando do começo: A mineração no contexto da formação social do Brasil
“Se vamos à essência da nossa formação, veremos como que na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde ouro e diamante; depois algodão, e em seguida café, para o comércio europeu. Nada mais que isto. É com tal objetivo, objetivo exterior, voltado para fora do país e sem atenção a considerações que não fossem o interesse daquele comércio, que se organizarão a sociedade e a economia brasileiras. Tudo se disporá naquele sentido: a estrutura social, bem como as atividades do país. Virá o branco europeu para especular, realizar um negócio; inverterá seus cabedais e recrutará a mão-de-obra de que precisa: indígenas ou negros importados. Com tais elementos, articulados numa organização puramente produtora, mercantil, constituir-se-á a colônia brasileira”.
No início do século XVIII são feitas as primeiras grandes descobertas de jazidas auríferas no Brasil. Com isso, a atenção da coroa se volta ao centro da colônia. Com a atenção, vieram as primeiras regulações: a exploração do ouro era livre, mas a coroa ficava com 20% do material extraído.
Essa lógica se estendeu por séculos, sendo alterada somente com a proclamação da República, quando foi substituída pelo regime fundiário na Constituição de 1891. Tal regime garantia ao dono da terra o direito não somente ao solo, mas também a qualquer riqueza encontrada em seu subsolo. Á partir de 1910, tornaram-se internacionalmente conhecidos estudos a respeito da abundância de recursos minerais no Brasil, fato que gerou um verdadeiro boom de compras de terras brasileiras nas regiões mineralizadas por parte de empresas estrangeiras.
Esse cenário é alterado com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder. Nas constituições de 1934 e suas subsequentes, é revogado o regime fundiário. A partir daí, os bens minerais encontrados em uma parcela de terra, estando eles no subsolo ou não, passam a ser propriedade do Estado Brasileiro.
Essa propriedade de forma alguma significou uma mudança na lógica de funcionamento da extração de minério do Brasil. Ainda que, na década de 1940, tenham sido criadas a Vale e a Companhia Siderúrgica Nacional, o sentido da exploração dos recursos mineiras do país continuou o mesmo: a extração de minério bruto para a venda ao grande comprador estrangeiro de turno.
A Ditadura Militar entendeu a mineração como um dos setores estratégicos para a economia nacional. Mas isso, de forma nenhuma, significou uma mudança na lógica de funcionamento do setor. A fase ditatorial militar significou o aperfeiçoamento do mecanismo público (Estado brasileiro) – privado (grandes multinacionais), com o objetivo de construir a infraestrutura para a mineração, especialmente em Eldorado dos Carajás, região riquíssima em minério de ferro de excelente qualidade.
A limitada, mas importante, redemocratização no Brasil coincidiu com uma grande onda neoliberal no mundo todo. À frente do Poder Executivo, Fernando Henrique Cardoso foi o coordenador desse processo no país. Nesse momento da história do país, foram privatizadas inúmeras empresas e serviços. Dentro desse processo ocorreu a controversa privatização da Vale do Rio Doce.
Privatização da Vale
O processo de privatização de uma gigante como a Companhia Vale do Rio Doce foi, como se pode imaginar: longo, cheio de controvérsias, obscuro e truculento. A melhor forma de iniciar essa discussão é apresentando o valor pelo qual foi arrematada a empresa, sua infraestrutura – linhas férreas, portos, maquinário e etc. – e, pasmem, as suas reservas naturais: 3,338 bilhões de dólares. Ainda que se argumente corretamente que a compra foi realizada em 1997, não há como argumentar que esse negócio foi lucrativo. Não fosse isso suficiente, quem financiou os compradores do patrimônio nacional, foi o próprio BNDES. Só para se ter uma ideia, o lucro da Vale no ano seguinte à sua privatização foi de 851,3 bilhões de dólares.
Dessa forma, os tucanos entregaram a maior produtora de minério de ferro do mundo para o controle de grandes conglomerados internacionais que, por sua natureza, não se preocupam nem com o patrimônio, com os trabalhadores e com o povo em geral de nossa nação. O principal objetivo da gigante multinacional deixou de ser o interesse do Brasil, passando a ter como foco a distribuição de lucros e dividendos para acionistas sem rosto no mundo todo.
Mariana
Como se sabe, Brumadinho não foi o primeiro desastre ambiental cometido pela Vale nos últimos anos. Em 2015, camuflada com o nome de Samarco, a mineradora protagonizou o desastre de Mariana, que derramou 62 milhões de metros cúbicos de lama e rejeitos. O impacto ambiental desse crime ainda está sendo estudado, já que a lama chegou a bacia do Rio Doce, que abrange nada menos do que 230 municípios e tem uma área de 86 mil quilômetros quadrados.
Tipos de barragens e os impactos ambientais dos rompimentos
Existem diferentes tipos de barragens voltadas à mineração. Uma delas é a barragem de alteamento a montante. Esse tipo de barragem é cada vez menos utilizada no mundo todo, por ser instável e mais sujeita a acidentes. Além de perigosa, a técnica também é mais barata do que as outras. Não por acaso, as barragens do fundão e do córrego do feijão, que romperam respectivamente em Mariana em 2015 e em Brumadinho em 2019, foram construídas com essa técnica.
A escolha da empresa em utilizar esse tipo de técnica, é parte do crime de janeiro.
Mas quem é o responsável pela tragédia?
A barragem do Córrego do Feijão não recebia rejeitos há três anos. Ela passou a ser novamente utilizada e, pouco mais de um mês depois, rompe matando no mínimo 229 pessoas. Como relata o MAB:
“Desde o ano de 2015 a barragem que se rompeu não recebia mais rejeitos de mineração. No dia 5 de dezembro de 2018, após solicitação da Vale de uma Licença de Operação, a Câmara de Atividades Minerárias do Conselho Ambiental de Minas Gerais concedeu uma licença para a empresa “recuperar o minério de ferro” disposto entre os rejeitos da Barragem I, além de uma série de estruturas de logística interna.
Com essa alternativa, as minas Jangada e Córrego do Feijão, que possuíam capacidade de 10,6 milhões de toneladas/ano passariam para 17 milhões de toneladas/ano e a vida útil do empreendimento seria prolongada até 2032 (SUPRI/SEMAD 2018). Em síntese, a propostas da Vale era “reminerar” os rejeitos contidos na Barragem I e depositar as sobras na própria cava da mina Córrego do Feijão, num contexto em que os preços do minério de ferro vendidos pela Vale começaram a subir acima dos 90 dólares por tonelada.”
É nítido que parte dos responsáveis pelo desastre estavam presentes nessa reunião em dezembro. Mas essa resposta é fácil e incompleta. Uma Empresa Alemã, a Tüv Süd Bureau Projetos e Consultoria, afirmou ter sido coagida por altos funcionários da Vale para dar parecer favorável à nova empreitada da mineradora. Encontramos ai, também, responsáveis pela tragédia. Os dirigentes da Vale e seu Presidente ou foram os mandantes ou foram coniventes ou foram negligentes com a tragédia. Também são responsáveis pelas mortes.
A verdade, no entanto, é que os desastres de Brumadinho e Mariana não são responsabilidade de um ou de alguns indivíduos. Ainda que as “peças chaves” do processo devam sim ser responsabilizadas com rigor, precisamos identificar qual o mecanismo que permitiu que dois desastres como esse ocorressem separados apenas por 4 anos.
Três meses após o crime, foi instalada a CPI (Comissão de Inquérito Parlamentar) de Brumadinho, que investigará as causas e responsáveis pelo crime. Áurea Carolina, Deputada Federal pelo PSOL, faz parte da comissão e será, com toda certeza, um ponto de apoio fundamental para que a sociedade civil tenha voz dentro da Comissão, além de ser uma grande aliada na luta para que a CPI cumpra o seu papel.
Arrisco dizer que a combinação dos seguintes fatores, foram determinantes para o ocorrido: o modelo de capitalismo selvagem, orientado diretamente pelo capital especulativo das bolsas de valores; um poder público frágil, subserviente e corrupto; o poderoso lobby anti-ambiental que toma contornos ainda mais dramáticos com o atual governo; e a flexibilização de leis trabalhistas que a décadas é imposta no Brasil.
Mas e agora?
É necessário que tenhamos políticas para o momento presente e para o futuro. A luta por compreender o conjunto do processo precisa ser permanente. Deve se desenvolver no âmbito parlamentar e institucional, mas principalmente do ponto de vista das organizações da sociedade civil e dos movimentos sociais. Exemplo disso é o destacado papel que o MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens) vem cumprindo e a legítima autoridade que tem, por inclusive ter alertado, avisado e se manifestado quanto aos riscos das barragens em geral, mas também especificamente quanto a barragem do Córrego do Feijão. Por isso é importante apoiar e fortalecer o movimento por sua incansável luta contra as agressões sociais e ambientais causadas por barragens.
O foco da atuação dos movimentos sociais e da esquerda deve ser, em primeiro lugar, a exigência da garantia de todas as devidas indenizações e reparações aos familiares das pessoas vitimadas no desastre. As promessas da Vale já não foram cumpridas em relação às indenizações das vítimas do rompimento da barragem em Mariana, por isso não podemos nos dar o luxo de baixar a guarda a esse respeito. Lutamos por justiça.
A defesa de uma rigorosa apuração, fiscalização e levantamento de dados a respeito dos impactos socioambientais desencadeados pelo rompimento da barragem, além da responsabilizar a Vale pela recuperação ambiental do Rio Paraopeba e da região atingida, que foi duramente impactado pelo crime ambiental.
A denúncia do modelo de capitalismo predatório adotado pela Vale em particular e na exploração mineral brasileira em geral deve estar no centro de nossas discussões. A defesa da reestatização da Vale, uma vez que a empresa já provou duas vezes, as custas de mais de 250 vidas brasileiras, não tem nenhuma responsabilidade ou condição de gerir uma empresa nacional dessa magnitude.
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