Por: Henrique Canary, colunista do Esquerda Online
Morei na Rússia entre 1996 e 2003, o que corresponde ao segundo mandato de Yeltsin e ao primeiro mandato de Putin. Sob Yeltsin, vivíamos uma democracia bastante recortada, mas ainda havia certas liberdades políticas e uma relativa tolerância religiosa e nos costumes. O segundo governo Yeltsin foi curto. Acabou de fato em 1998, quando a crise econômica asiática chegou à Rússia, provocando um enorme ascenso das lutas operárias e derrubando totalmente sua popularidade.
Mas, o governo Yeltsin ainda viveu um ano de uma lenta agonia, em que a única coisa que fez foi preparar a sua própria sucessão. Putin chegou ao poder em 1999, como primeiro-ministro de Yeltsin, para depois vencer as eleições presidenciais em maio de 2000.
O primeiro mandato de Putin foi bastante conturbado. Ainda havia resquícios do grandioso ascenso operário de 1998 e a guerra contra a Chechênia foi retomada. Mas, o fundamental de seu mandato não foi isso.
Sendo uma figura pouco carismática e desconhecida, Putin decidiu angariar apoio na população promovendo uma gigantesca limpa nas estruturas empresariais e de poder do país. Na Rússia, a figura do ‘oligarca’ era odiada desde o início dos anos 1990. Todos sabiam que os oligarcas, ou seja, mega-empresários monopolistas em algum ramo da economia, haviam conquistado fortuna subornando, roubando, matando e enganando. Os oligarcas eram vistos como seres corruptos, entreguistas e que desprezavam o povo. Evidentemente, essa visão correspondia à realidade. Os oligarcas eram tudo isso e muito mais. Eram o que havia de pior na sociedade.
Os oligarcas, em geral, eram antigos membros do Partido Comunista da União Soviética, que enriqueceram do dia para a noite ainda sob o governo de Gorbachev, graças aos negócios ilegais que realizavam com a cobertura da estrutura do PCUS.
Putin, por sua vez, tinha sido membro da KGB e representava os interesses dos setores ligados aos aparelhos de repressão do Estado, FSB (antiga KGB), exército e polícia. Esses setores haviam ficado de fora da ‘partilha’ promovida por Gorbachev e continuada por Yeltsin. Por isso, viam com grande entusiamo o governo Putin. Era a chance de uma redistribuição da propriedade estatal roubada.
E foi isso que Putin fez. Ele decidiu que as privatizações feitas no final dos anos 1980 e início dos anos 1990 não tinham sido justas porque acabaram beneficiando somente um setor da antiga burocracia. Era preciso redistribuir pelo menos uma parte das empresas. Qual a melhor forma de fazê-lo? Colocando uma parte dos oligarcas na cadeia, para arrancar deles as empresas e obrigar os outros a negociar.
E assim foi feito. Não foi difícil para Putin prender os oligarcas, bastou abrir contra vários deles inquéritos por corrupção, enriquecimento ilícito, remessa ilegal de divisas e outros crimes comuns.
Mas, nada disso se fazia por justiça, ou por reparação à verdadeira pilhagem da riqueza pública que aqueles bandidos haviam protagonizado nos anos 1990. Putin tirava deles e entregava para os seus. A propriedade era redistribuída de várias formas, principalmente por meio do mercado de ações, a partir das falências das empresas que tinham seus presidentes e proprietários presos.
Tudo era feito ‘na forma da lei’. Aliás, Putin nem mesmo criou novas leis. Não houve um recrudescimento da legislação em si. Ele simplesmente aplicou as leis que já existiam.
Mikhail Khodorkovski, dono da Yukos, a maior e mais corrupta petroleira do país, foi preso e perdeu uma parte importante do patrimônio. Platon Lebedev, tesoureiro da empresa, respondeu por sonegação de impostos e teve o mesmo destino. Boris Berezovski, dono da companhia de aviação Aeroflot e do canal de televisão ORT, se exilou em Londres e foi assassinado alguns anos depois. Vladimir Gusinski, magnata da comunicação, fugiu para Israel, onde vive até hoje. Oleg Deripaska, bilionário da indústria do alumínio, também foi alvo de investigações por parte do poder judiciário, o que provocou enorme desvalorização de suas empresas e quase o levou à falência. Nikolai Gluchkov, Mikhail Friedman, Vladimir Potanin, Alexander Smolenski e Vladimir Vinogradov foram outros magnatas que, de alguma forma, tiveram os negócios gravemente afetados pelos inquéritos movidos durante o primeiro governo Putin.
Me lembro como era difícil discutir até mesmo com as pessoas de esquerda na época. Todos odiavam com razão os oligarcas e estavam felizes porque eles estavam sendo presos. Argumentavam que as medidas de Putin contra os oligarcas eram medidas progressivas, que Putin estava, de alguma forma, cumprindo aquilo que um genuíno governo dos trabalhadores deveria fazer. E se era Putin que estava fazendo, bem, que diferença fazia? O importante era que alguém estava fazendo. A sensação das pessoas era de que o país estava entrando nos trilhos. Finalmente, a bagunça e o desgoverno do período Yeltsin estavam chegando ao fim. As leis estavam começando a se cumprir. Os corruptos estavam indo para a cadeia. Que mal poderia haver nisso?
O pequeno grupo de esquerda ao qual eu pertencia na época tentava explicar para essas pessoas que não nos solidarizávamos nem um pouco com o sofrimento dos oligarcas, mas que o que Putin estava fazendo, no final das contas, ia contra os interesses da classe trabalhadora. Dizíamos que, depois de acertar as contas com os oligarcas, Putin viria atrás do movimento operário e das nacionalidades oprimidas. E então seria muito mais difícil combatê-lo, porque ele se apoiaria na enorme autoridade de quem supostamente ‘moralizou o país’, limpou a ‘Mãe Rússia’ da corrupção e do roubo.
Pouca gente nos ouviu naquele momento. Mas, infelizmente, estávamos certos.
Depois de se livrar de meia dúzia de oligarcas incômodos com grande estardalhaço, Putin começou a fazer aquilo que realmente importava, apertar a legislação referente às liberdades políticas. O movimento social foi derrotado e depois subjugado. Muitos líderes sindicais, deputados de esquerda e até prefeitos não alinhados enfrentaram duros processos na justiça. Os protestos foram tão regulamentados que hoje é praticamente impossível organizar uma simples passeata em Moscou. A parada gay não foi oficialmente proibida porque isso contradiria a Constituição, mas foi ‘suspensa’ por… 100 anos!
Quando finalmente se livrou do movimento de massas, Putin foi atrás da oposição liberal. A jornalista Anna Politkovskaia, crítica do regime, foi assassinada por envenenamento em 2006, enquanto mediava um conflito entre as tropas russas e rebeldes chechenos na cidade de Beslan, no sul da Rússia. Alexander Litvinenko, ex-agente da KGB, exilado em Londres, ligado aos oligarcas e que investigava a morte de Politkovskaia, também foi envenenado por polônio-210, um material radioativo, em 2006. Garry Kasparov, o ex-campeão mundial de xadrez, crítico liberal severo de Putin, foi preso diversas vezes por participar de protestos contra o governo. Boris Nemtsov, figura da direita tradicional, que ocupou vários cargos importantes no governo de Yeltsin e que fazia oposição a Putin, foi assassinado em 2015, enquanto atravessava com sua namorada uma das pontes sobre o rio Moscou. E por fim, talvez o caso mais conhecido. Em 2012, três integrantes do grupo de punk rock feminista ‘Pussy Riot’ foram presas e condenadas pelo crime de “vandalismo motivado por ódio religioso”, depois de uma performance não autorizada do grupo no interior da Catedral de Cristo Salvador, em Moscou.
Em todos os casos – oligarcas, movimento LGBT, movimentos sociais, oposição liberal, oposição de esquerda, oposição de direita e movimentos culturais – a perseguição ocorreu por dentro dos critérios estabelecidos pela lei. O poder judiciário na Rússia possui enorme autoridade, uma autoridade que cresceu muito desde que os primeiros oligarcas começaram a aparecer na TV com a cabeça raspada, sentados atrás das grades que são destinadas aos réus nos tribunais russos. Antes, só se viam nessa situação os russos pobres. Sob Putin, essa realidade começou a mudar e quase todo mundo sentia isso como uma mudança positiva.
A ofensiva judicial contra todos os opositores foi o detonador de um profundo deslocamento da consciência da população, que se tornou muito mais conservadora, e em certos aspectos totalmente reacionária, desde que Putin iniciou sua cruzada contra os oligarcas, há 15 anos. Desorientada e amedrontada diante do apoio popular que recebiam as medidas autoritárias de Putin, a esquerda se calou. Como consequência, quase desapareceu. Hoje, ela vive uma vida vegetativa e respira por aparelhos. Em compensação, florescem na Rússia os grupos neo-nazistas, paramilitares e monarquistas. As ‘Centúrias Negras’ dos tempos do czar ressurgiram das cinzas.A Igreja Ortodoxa assumiu o papel de Igreja oficial do Estado e regula os costumes da nação.
Essa experiência russa de progressivo cerceamento das liberdades democráticas, sempre através de processos ‘legais’, ‘inquestionáveis’, ‘isentos’, ‘por crimes comuns’, deveria nos fazer refletir sobre o atual fortalecimento do judiciário brasileiro e suas consequências.
Como tentei demonstrar, na Rússia, isso não acabou bem.
Foto: Vladimir Putin interroga o oligarca Mikhail Khodorkovski, antes de sua prisão/Wikipedia
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