As eleições ocorrem em uma conjuntura de grande acirramento das tensões sociais, que se expressa, também, em um crescimento da violência, notadamente nas grandes cidades. Nesse cenário, uma campanha ideológica movida pela extrema-direita colocou o tema da segurança pública no centro dos debates eleitorais. Essa força política, que tem o candidato à presidência Jair Bolsonaro (PSL) como sua principal figura pública, tem difundido incessantemente a ideia de que seria necessário endurecer o tratamento dispensado aos criminosos pelas forças policiais, pelo sistema judiciário e pela sociedade como um todo. Demonstrar os limites dessa posição e apresentar os fundamentos de uma política de segurança pública alternativa constituem o desafio fundamental da esquerda socialista nesse campo.
Brasil, um país leniente?
Em junho de 2016, o Brasil já contava com mais de 720 mil presidiários em um sistema superlotado que dispunha de “apenas” 368 mil vagas. Esses números correspondem à terceira maior população carcerária do mundo. Dentre esses encarcerados, cerca de 40% eram presos provisórios, isto é, ainda aguardavam julgamento.
Ainda mais grave é o fato de que um grande número de brasileiros sequer consegue ter a perspectiva de responder em juízo, na medida em que são mortos em intervenções policiais. Em 2015, foram mortas 3.320 pessoas. A taxa de 1,6 mortos por 100 mil habitantes já colocava o país no primeiro lugar do ranking mundial de letalidade policial. Nos anos seguintes, esse índice continuou subindo até alcançar os 5.012 mortos em 2017, resultando em uma taxa de 2,4 mortos por 100 mil habitantes.
Diante desses dados, fica evidente que, em relação a padrões internacionais, o Brasil possui índices altíssimos de encarceramento e letalidade policial. O discurso sobre a leniência cai inteiramente por terra.
A seletividade da política de segurança pública
A população carcerária é, fundamentalmente, jovem (55%), negra (64%), masculina (95%) e limitada em sua escolarização (75% dos detentos não chegou ao ensino médio). Trata-se de um perfil muito similar ao dos mortos em ações policiais. De acordo com dados do período 2010-2013, esses são jovens (75%), negros e pardos (79,1%) e homens (99,5%).
Em grande medida, esse conjunto de encarcerados e mortos em ações policiais é decorrência das prioridades estabelecidas para a segurança pública. Os delitos que originam a maior parcela das prisões são os relacionados ao tráfico de drogas, que respondem por cerca de 28% do total. O combate ao tráfico, por sua vez, é estruturado de forma a priorizar o confronto armado com os vendedores varejistas que operam nas favelas e periferias.
As consequências dessas escolhas são duas. Por um lado, não há um esforço efetivo para rastrear e bloquear as principais rotas do tráfico internacional que trazem para o Brasil drogas e armas de grosso calibre. Também ficam em segundo plano os canais de financiamento desse tráfico internacional. Com isso, permanecem ocultas as identidades os verdadeiros barões do tráfico, que frequentam as altas rodas do empresariado e dos políticos da ordem.
Por outro lado, há um reforço da associação entre pobreza e criminalidade. É essa associação que legitima, aos olhos de grande parcela da população, as grandes operações policiais nas favelas e periferias. Essas operações, longe de resolverem o problema da segurança, resultam em mortes de pequenos traficantes, inocentes e policiais, disseminando o terror no cotidiano dos moradores dessas regiões. Trata-se, portanto, de uma verdadeira guerra aos pobres (em especial, os jovens negros) disfarçada de guerra às drogas.
Outras consequências do atual modelo de segurança pública
Além de seletivo, o modelo vigente de segurança pública tem algumas importantes consequências que os seus defensores frequentemente omitem. A primeira delas é o imenso número de policiais (militares e civis) que morrem anualmente nos confrontos com traficantes. A insistência nas operações de enfrentamento armado direto, baseadas em escassa investigação e inteligência, coloca os policiais em situação de constante perigo, ameaçando, também, as vidas daqueles que a extrema-direita diz ser a grande defensora.
No que se refere ao encarceramento massivo praticado ao longo das últimas décadas, os resultados tampouco são animadores. Conforme já indicado por inúmeras investigações, as prisões se converteram no principal espaço de recrutamento para as maiores facções criminosas do país. Nos cárceres, pessoas condenadas por crimes leves, ou mesmo ainda aguardando julgamento, são inseridas em redes de proteção internas, cujo pagamento é cobrado sob a forma de lealdade no lado de fora.
A solução militar: não há nada que não possa piorar
Quando confrontado com todas esses evidências da falência do modelo de segurança pública baseado no confronto e no encarceramento, o discurso de extrema-direita recorre a uma última cartada: a ideia de que a atuação sistemática das forças armadas na segurança pública, poderia resolver os problemas, ao aumentar o poder de fogo do Estado no combate à criminalidade.
Desde os anos 1990, pelo menos, os militares já foram chamados inúmeras vezes para auxiliarem as forças de segurança pública em diversos estados da federação. Alguns dos casos mais emblemáticos são os do Rio de Janeiro (Eco-92, Jogos Pan-Americanos de 2007, Favela da Maré em 2014-2015 e Olimpíadas de 2016, dentre outros momentos), Espírito Santo (2017) e Rio Grande do Norte (2017-2018). Nesse ano de 2018, pela primeira vez desde a promulgação da Constituição de 1988, as forças armadas assumiram o total controle da política de segurança pública de um estado, com a intervenção no Rio de Janeiro.
Em todos esses momentos, a atuação dos militares tem reproduzido os mesmos padrões da política de segurança pública operada pelas polícias. O resultado fica estampado nos números da intervenção no Rio de Janeiro: apenas os índices de crimes contra o patrimônio tiveram alguma redução, ao passo que os tiroteios, homicídios e mortes decorrentes de ação policial aumentaram significativamente.
Além de tornar ainda mais letal o modelo de segurança pública baseado no confronto direto, a intervenção militar serviu também como palanque para iniciativas ainda mais reacionárias. Nesse sentido, o então ministro da Defesa, Raul Jungmann, defendeu os mandados de busca e apreensão coletivos, que conferem às forças policiais e militares a faculdade de invadirem as casas de quem bem entenderem. Indo além, o comandante do Exército, general Villas-Boas, afirmou que os militares envolvidos na intervenção precisariam ter a garantia de que não haveria uma nova Comissão da Verdade, o que significaria salvo conduto para cometerem todo tipo de crime, tal como faziam durante a ditadura de 1964.
Outra política de segurança pública
Em um país marcado por mais de três séculos de escravidão e uma sucessão de ditaduras, não é surpreendente que a violência (estatal e privada) seja um elemento estruturante das relações sociais. É por meio da violência que as classes dominantes reafirmam cotidianamente a defesa de suas riquezas, ao passo que fortalecem o controle sobre as classes subalternas.
Uma política de segurança pública socialista deve inverter radicalmente essas prioridades, colocando a garantia da vida acima da proteção ao patrimônio. O primeiro passo para essa mudança é a alteração no tratamento da questão das drogas. Defendemos a legalização das drogas, tornando-as uma questão de saúde pública, e não de segurança.
Uma política de transição pode ser iniciada com a maconha. Tal como em experiências já em curso em outros países, como Uruguai, EUA e Canadá, o Estado deve regular e taxar a sua produção e comercialização. Os recursos assim obtidos devem ser investidos em políticas de prevenção e assistência à saúde para os dependentes. Paralelamente, os encarcerados que tenham sido condenados unicamente por tráfico de pequenas quantidades de drogas devem ter as suas penas anuladas, recebendo apoio estatal para a reinserção do mercado de trabalho.
Também a lógica e a estrutura de funcionamento das forças policiais devem ser inteiramente reformuladas. Todas as polícias devem ser desmilitarizadas, garantindo o direito de livre organização sindical e manifestação para os policiais.
A prioridade das ações policiais deve ser a prevenção e a elucidação dos crimes contra a vida, aí incluído o tráfico de armas. Para isso, é fundamental apostar em investigação e inteligência, e não em confrontos armados nas favelas e periferias. Por fim, é preciso garantir um amplo processo de participação social popular na formulação e no controle das políticas de segurança pública.
LEIA MAIS – Coluna Silvia Ferraro
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