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Colunas

Alguns apontamentos sobre Segurança Pública

Pixabay/Reprodução

Gabriel Santos

Garbriel Santos é alagoano, estudante da UFRGS, militante da Resistência-PSOL (RS), vascaíno e filho de Oxóssi.

“Neguin em perigo
É como granada sem pino
A cara do esteriótipo
Nego, eu também sou um anjo”
– VND

Segurança Pública é um tema que entra ano, sai ano, continua sendo um dos mais comentados por governos locais, estaduais e federal. É um dos assuntos mais sentidos pelo conjunto da população, em todo território nacional. Tendo um peso fundamental no resultado das eleições.

O fato é que a sociedade brasileira tem em seu tecido social o marcador da violência. Nosso Estado, nossas leis, nossas relações, nossas classes sociais, foram instituídas a partir da violência. Por meio do sequestro de africanos, violação de seus corpos e trabalho forçado, por meio do roubo de terras indígenas e dizimação dos povos originários, se constitui e se construiu o Brasil, se apontou o lugar de cada grupo social em nosso país, se distribui e se acumulou riqueza. No princípio tudo era ferro e fogo. A violência é um marco presente em nossa história.

Por meio do sequestro de africanos, violação de seus corpos e trabalho forçado, por meio do roubo de terras indígenas e dizimação dos povos originários, se constitui e se construiu o Brasil, se apontou o lugar de cada grupo social em nosso país, se distribui e se acumulou riqueza

A relação de sociedades não brancas no período pré-colonização com a morte era totalmente diferente. Ela era vista como um processo natural, um rito de passagem para outro mundo, um marco da ação do tempo, uma ancestralização. A colonização, ou seja, a violência como forma de impor poder e hierarquias sociais entre os povos, modifica tudo. A relação com a morte se torna um fenômeno sintético, fruto da ação do homem, deixando de ser natural e sendo algo forçado. A morte morrida, se tornou morte matada. 

A morte matada é o espírito de nosso tempo, ela reina quase absoluta. Ela leva os nossos e se tornou algo cotidiano, comum, corriqueiro. De tanto corpos negros tombarem nesse chão, essa ação já não chama atenção. A morte matada é o número frio das estatísticas. A história de cada um que cai é só um número. A morte matada não choca, ela faz parte do dia a dia nesses trópicos. 

Se os europeus falavam que os africanos tinham a marca de Caim (a pele preta), foram eles que deram a nós o mesmo destino de Abel (a morte), introduzindo o assassinato como uma regra da convivência social em sociedades que foram colonizadas.

Nos dias atuais o Brasil vive em uma guerra. Silenciosa para os que moram em torres e áreas nobres das grandes cidades. Gritante e ensurdecedora, para os que vivem no meio dela, nas favelas e periferias de nossas cidades.

Jovens quase todos negros, contra outros jovens quase todos negros, contra o Estado, que combate esses jovens quase todos negros. A guerra às drogas, um nome bonito para uma política controle de territórios e de corpos periféricos, é uma das políticas do Estado brasileiro mais efetiva. Só acha que as guerras às drogas falha, quem acha que os inimigos são realmente as drogas. As “drogas” contra as quais estamos todos em guerra é de um tipo diferente. Mais negra e periférica que os quilos de cocaína traficadas nos aviões da Força Aérea e consumidas por senadores brancos. As “drogas” somos nós.

A política de ocupação de territórios negros, as favelas, e conflito bélico permanente contra o inimigo interno, facções criminosas, é até hoje, uma política de Estado, ou seja, independentemente do grupo social e partido que esteve no governo, desde a redemocratização e a Constituição de 1988, essa guerra às drogas e visão de Segurança Pública foi aplicada.

Em nosso país, a guerra civil que ecoa nas favelas tirou em dez anos, de 2011 a 2021, mais de 600 mil vidas de brasileiros, e destes foram 326 mil jovens de 15 a 29 anos. Números alarmantes que colocam o Brasil no topo dos países que mais comete homicídio no mundo.

A Nova Lei das Polícias Militares e a Garantia da Lei e de Ordem

Recentemente foi aprovado, sem muito alarde na mídia, a Lei Orgânica das Polícias Militares (LOPM). Proposta e herança do governo Bolsonaro, recebeu apoio do PT no Senado e o projeto sequer foi votado, já que teve aclamação de todos os líderes partidários da Casa, da extrema direita até a base do governo Federal. A lei também já foi sancionada pelo Presidente Lula. A Lei além de renovar os dispositivos que dão  poder e autonomia das Polícias Militares, mantém sua vinculação ao Exército. O projeto ainda amplia as atribuições da PM, permitindo “planejar, orientar, coordenar, supervisionar e executar ações de inteligência e contrainteligência” (artigo 5º, inciso XI do projeto de lei). Ou seja, permite à PM ter mecanismos legais para investigar ações, atuar no cotidiano de periferias sobre a desculpa de contrainteligência. Na prática, a Polícia Militar vai legalizar sua forma de atuação como um tribunal de ruas, julgando e aplicando as penas que ela acha necessárias no momento que achar necessário.

A LOPM vai na contramão da vontade e debates sobre antirracismo e importância da responsabilização das forças do Estado das violências cometidas por ela. Fortalecendo a ideia de militarização da sociedade e ações como as chacinas que marcaram a vida de diversas famílias e comunidades pobres, que terão seus nomes lembrados sempre que se falar a violência do Estado brasileiro.

A Constituição de 1988, teve seus limites e manteve instituições burocratizadas e repressivas que não combinavam com o nascer de uma sociedade que almejava ser democrática. As Policias Militares são exemplo dessas instituições.

A Constituição de 1988, teve seus limites e manteve instituições burocratizadas e repressivas que não combinavam com o nascer de uma sociedade que almejava ser democrática. As Policias Militares são exemplo dessas instituições.

Um outro erro estratégico do governo Lula no tema de Segurança Pública foi a utilização das Forças Armadas para as funções da GLO e do combate ao “inimigo interno”. Aqui estamos falando de erro estratégico, não examinando o sucesso da ação do Exército brasileiro atuando nos portos. 

As operações de GLO são de grande utilidade simbólica e política. Politicamente se forem bem sucedidas podem servir para conter a criminalidade e ter resultados concretos como apreensão de armas, drogas e etc. Porém, o que temos visto são ações de GLO como peças teatrais. Imagens de tanques invadindo favelas e depois armamento pesado apreendido, parece que mostram o resultado da operação, quando na verdade chega-se apenas na superfície do problema. Essas grandes e midiáticas operações garantem o militar exibir serviço e se mostrar como fator neutro da política. Faz o governo passar a falsa noção que se está reprimindo crimes, quando na verdade se tem apenas resultados no varejo, enquanto os grandes criminosos atuam no atacado.

O problema central é estratégico. O governo dá ainda mais autonomia para as forças policiais no mesmo tempo que faz o militar agir como policial. Alimentando uma crise de identidade entre os papéis dessas duas instituições. Além de alçar o militar como a figura de salvador da pátria em situações de desespero, passando a imagens de que eles podem combater o crime e trazer paz e tranquilidade. Algo que diante da atual correlação de forças e crise entre os poderes não parece ser uma boa escolha.

As medidas do governo terminam por fragilizar a ideia democrática de cidadania, e faz daquele que é infrator da lei, o criminoso, o traficante, um inimigo irreconciliável que precisa ser combatido, alimentando a roda da morte e a guerra sem fim em nossas periferias.

As medidas do governo terminam por fragilizar a ideia democrática de cidadania, e faz daquele que é infrator da lei, o criminoso, o traficante, um inimigo irreconciliável que precisa ser combatido, alimentando a roda da morte e a guerra sem fim em nossas periferias.

A noção do inimigo interno, do combate ao tráfico de drogas, é uma ideologia desenvolvidaa pelo governo dos Estados Unidos para países da América Latina durante os anos 70 e 80. Que no fim termina por ser mais uma das formas do imperialismo yankee ter tutela sobre os acontecimentos nacionais e fazer disputa ideológica em nossos militares e também forças de segurança. O tema da segurança pública e os erros cometidos pelo governo federal, também aprofundam nossa dependência do imperialismo.

Lembro de Frantz Fanon, quando o mesmo criticou partidos de esquerda e democratas francesas, pelos mesmos apoiarem ações militares na Argélia durante a colonização e a guerra de independência nacional. Fanon apontava que o discurso do governo e suas ações não geram somente uma intervenção militar na colônia, mas também gerava uma militarização no cotidiano da vida nas cidades francesas. Essa militarização gerava uma bola de neve, em que fortalecendo-se ideias de militarização, por consequente se teria mais repressão e assim sucessivamente. Fanon terminava por apontar que essa militarização do cotidiano na França, ver as ações e a presença militar na política como normal, termina por fortalecer discursos e ações de extrema direita. Fanon dizia que no fim, as ações militares na colônia chocavam o ovo do fascismo na França.

Olhando para a história recente de nosso país é possível dizer que o laboratório da história deu por corretas as teses do revolucionário negro. Acredito que a militarização da sociedade brasileira, o ultra encarceramento em massa, o crescimento da Força Nacional, as UPP´s, o exército agindo como polícia e a polícia militar agindo como o exército, a necessidade de segurança pública para proteger o produto adquirido com o crescimento da renda e do consumo, tudo isto tem relação com o fortalecimento da extrema direita. Os analistas de conjuntura profissionais que não entenderam isso, não entenderam nada.

Não é assumindo um discurso semelhante ao da extrema direita, porém com tons de vermelho, que o Presidente Lula conseguirá desbolsonarizar e combater as ideias bolsonaristas na sociedade.

Nesse novo governo, as medidas de Segurança Pública têm que ser estratégicas. Não é assumindo um discurso semelhante ao da extrema direita, porém com tons de vermelho, que o Presidente Lula conseguirá desbolsonarizar e combater as ideias bolsonaristas na sociedade. Muito pelo contrário, isso apenas joga mais lenha na fogueira. Não podemos errar onde erramos durante a primeira curta década deste século.

Por fim, a violência continua em nossas cidades. A morte matada continua sendo uma relação cotidiana com as comunidades negras e periféricas. O ônibus sai às seis da manhã levando pessoas ao centro. O mercado segue em alta na bolsa de valores. Frantz Fanon tem razão.