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TEORIA

Um golpe de estado à Maupassant

Diego Braga
Numa região periférica do capitalismo, uma burguesia tão frágil e pequena quanto servil e ridícula, gritando “liberdade” e “pátria” num falsete de intervenção militar, ensaia depor o governo ocupado pelo que se poderia considerar um traidor de ideais, leal servo do império por interesse. A pequena camada média da população local se reúne na praça, apoiando o bisonho golpe militar em nome da liberdade, sob uma espada enferrujada (há tempos não saem às ruas para agir politicamente). No coração do capitalismo, a grande burguesia, em crise e diante do ascenso da classe trabalhadora, ignora aquela disputazinha.

Felizmente, não estamos falando do Brasil no tétrico último dia 15 de março, mas da situação pintada por Guy de Maupassant no segundo conto de seu livro Clair de Lune, de 1883, intitulado Un Coup d’État (Um golpe de Estado). Na ficção há grandes diferenças em relação ao Brasil, é claro, e não apenas porque se situa histórica e geograficamente em outras paragens, na decadência do Segundo Império francês diante da vitória do Império Alemão, quando é proclamado também o primeiro governo operário da história, a Comuna de Paris. No conto, o pequeno burguês que lidera o golpe evoca a ala dita progressista, republicana, da burguesia francesa, enquanto seu adversário político, um vira-casaca, outro pequeno burguês republicano nomeado prefeito, alinhara-se com a ala conservadora da mesma burguesia, apoiadora do Império de Napoleão III.

Maupassant, filho de rica família e fiel à sua classe de origem, alistou-se para lutar pela burguesia francesa que capitularia ante a germânica, na Guerra Franco-Prussiana. Na abertura de Um golpe de Estado, pelo modo sarcástico como retrata a pequena burguesia francesa pegando em armas depois da derrota de Sedan e da proclamação da Comuna de Paris, deixa entrever o quanto enjeitava com escárnio a disposição das classes médias em se alinharem com as subalternas na vã pretensão dirigi-las ou de ocupar o terreno militar que a grande burguesia havia abandonado:

“Brincava-se de soldado de um canto a outro do país.

Chapeleiros tornavam-se coronéis, cumprindo funções de generais; revólveres e sabres eram exibidos ao redor de grandes e pacíficas barrigas cingidas por cinturões vermelhos; os pequeno-burgueses transformados em guerreiros de ocasião comandavam batalhões de voluntários briguentos e praguejavam como piratas para tentar conseguir alguma obediência.

O simples fato de ter armas, de empunhar fuzis, enlouquecia completamente aquela gente que não havia até então empunhado senão balanças, tornando-a temível – sem razão alguma – à primeira vista. Executaram inocentes para provar que sabiam matar; fuzilaram, em campos virgens distantes dos prussianos, cachorros que vagavam, vacas que ruminavam em paz e cavalos doentes que pastavam”[1].

O distanciamento do narrador e a composição lacônica das descrições têm um poder de diminuir e difamar o retratado ao selecionar como essencial o que ele tem de pior. Sem exagero ficcional, aqui, o narrador usa a técnica realista dos traços fundamentais para deteriorar a imagem do que nos apresenta com fidelidade. A precisão nem sempre é amiga da verdade, sobretudo em literatura. É neste tom de concisão a serviço de um sarcasmo convincente que a estória segue.

O vilarejo de Canneville ainda não recebera as notícias do desastre de Sedan e da Comuna de Paris. O pacato prefeito monarquista, Visconde de Varnetot, seguia governando, embora se acirrassem as tensões com o adversário, liderado pelo sanguíneo e republicano Dr. Massarel. Apesar de sua postura patriótica caricata, o doutor assolava o visconde, por evocar a memória da Revolução.   Os ideais de igualdade, liberdade e fraternidade – se levados ao pé da letra com anseio de se os universalizar – tornavam-se perigosos à classe que, outrora revolucionária, os proclamara para, estabelecida no poder, combatê-los como “ideologias”. São palavras de Bonaparte:

“É à ideologia – esta tenebrosa metafísica, que ao procurar com sutileza as causas primeiras, pretendendo fundar a lei dos povos sobre tais bases, em vez de adequar as leis ao conhecimento do coração humano e às lições da história – a quem devemos atribuir todos os males que assolaram nossa bela França. (…). Na verdade, quem proclamou o princípio da insurreição como um dever? Quem adulou o povo e o proclamou portador de uma soberania que ele seria incapaz de exercer?”[2]

Herdeiros do triunfo de Napoleão contra a universalização dos ideais da Revolução, os ideais do Dr. Massarel andavam de mãos dadas com a situação que se dava em seu consultório, onde os doentes mal podiam pagar pelo que seria um direito. É em defesa de tamanha “igualdade” e “fraternidade” que o médico, ao receber notícia do fim do Império pela derrota militar francesa, exalta-se na tentativa de um golpe de Estado à frente de sua meia dúzia de asseclas.

Paramentados qual o exército de Brancaleone, os “revolucionários” se reúnem em frente à prefeitura do lugarejo, para reencenarem a história como farsa, com seu líder imbuído de um patético messianismo. Seus lugares-tenentes recebem a tarefa de mobilizar o conjunto da população camponesa e trabalhadora sem a qual – destituídos da companhia dos tubarões – os peixes pequenos burgueses nada podem, politicamente.

Eis que o prefeito monarquista se encastela com três guardas no prédio da pequena prefeitura enquanto a população camponesa e trabalhadora, de modo geral, não parece inicialmente se convencer muito daquela farsa. Posteriormente, sequer é capaz de levá-la a sério, rindo-se das canhestras tentativas do Dr. Massarel de ocupar o lugar do seu rival, o Visconde Varnetot, proclamando ideais diferentes, mas basicamente apenas para tomar posse da administração da mesma ordem. Durante o sítio, nenhum de seus seguidores pequeno-burgueses quer arriscar a própria pele. Carecendo de feitos de coragem e sem o apoio da população, o golpe à Maupassant falha e cai no ridículo.

Nem à burguesia nem ao proletariado interessava aquele provincianíssimo teatro político de classe média. A verdadeira guerra era travada, naquele momento, entre o campo da classe trabalhadora, concretizado no primeiro governo operário da história, e uma das pontas de lança da burguesia, o Império Alemão, que ascendia vertiginosamente como potência capitalista.

Enquanto isso, na pequena Canneville, a passividade diante do golpe à Maupassant, obviamente, ridicularizou, por quixotesca, a figura do doutor pequeno-burguês. Valeu a piada. Porém, manteve no poder o legalista, fiel mantenedor da ordem que beneficia os patrões pela exploração e opressão dos trabalhadores, e que atacava a Comuna. Portanto, aqueles trabalhadores deveriam pegar as armas e marchar para Paris, para fortalecer o terceiro campo da disputa. Nem Império Alemão, nem Império Francês. Nem doutor, nem Visconde, mas um campo independente da classe trabalhadora, contra qualquer golpe, real ou fictício, pela via constitucional ou não.

A passividade é quase tão ruim quanto o apoio ao golpista, porque em política a indiferença é nada mais que a forma mais amena de se pôr de acordo. A história o mostra impiedosamente. A burguesia francesa, que tinha mais medo à classe operária de seu país que à burguesia alemã sitiando Paris, entregou a capital aos alemães e juntou-se ao inimigo militar no ataque ao inimigo de classe. Desde Versalhes, atacaram a Comuna. Os alemães, por sua vez, libertaram prisioneiros de guerra franceses para que os ajudassem no combate ao que era também seu inimigo de classe: a mesmíssima Comuna.

No Brasil, em coro com o imperialismo, a ala peso-pesado da burguesia não quer – por ora – um impeachment contra o partido que ela mesma, há pouquíssimos meses, colocou no poder ao custo de muitos milhões de financiamento oficial e outros tantos milhões de propinas extraoficiais. A mesma ala burguesa tem na oposição de direita tucana, que também defende o mesmíssimo regime político e modelo econômico, uma carta na manga para casos de agravamento da atual crise. Além disso, considera esta oposição como seu representante tradicional, enquanto o partido que hoje governa – e que há mais de doze anos vem depositando um vultoso sacrifício sangrento no altar, aos pés do bezerro de ouro do capital – traz na sua bagagem o fato de ter, há cerca de trina anos (lembram?), lutado no campo de classe adversário, antes de se vender como mercenário aos patrões no calor das batalhas contra o judas neoliberal dos anos 1090, que passou a bolsa de ouro para as mãos do zeloso, ainda que outrora zelote[3], Partido dos Trabalhadores. O sacrificado pelo governo atual, tal como pela oposição nos Estados em que esta governa, continua sendo a classe trabalhadora. Em 2015 – e com a seca de São Paulo – a sede de sangue operário do Leviatã burguês promete ser maior, mas cresce também a disposição de luta da classe explorada.

Um golpismo à Maupassant, desbancado pela passividade dos trabalhadores, não vai aplacar, contudo, a sede de sangue do capital, alimentada religiosamente pelo governo atual. O pior dos quadros seria a classe trabalhadora apoiar a oposição de direita, golpista ou não. Este quadro nem mesmo a imaginação sarcástica do reacionário escritor foi capaz de imaginar. Se acontecesse, a história correria para trás, transformando-se a farsa em tragédia.

Mas as possibilidades não se limitam a apoiar o PT ou os tucanos, que hoje arrastam as asas para a extrema direita. Há a possibilidade de uma política independente da classe trabalhadora, tal como em 18 de março de 1871, três dias depois deste dia 15, manchado pelas manifestações recentes, a classe trabalhadora, pela primeira vez na História, mostrou-se capaz de realizar seu projeto político próprio: dirigir a sociedade, contra o Império Alemão de um lado e o francês de outro. Não podemos, no Brasil de hoje, ainda, partir direto para a Comuna. Temos antes que dar um primeiro passo: construir uma Greve Geral contra os reajuste do governo e a oposição tucana.

Notas:

[1] Disponível em<http://bit.ly/1MYw26U>, p. 7, acesso em 20 mar. 2015 (tradução nossa).

[2] BONAPARTE, Napoléon. Oeuvres. Tome V, p. 94 disponível em<http://bit.ly/1G0hSjX> Acesso em 1 nov. 2014 (tradução nossa).

[3] Os zelotes foram uma seita do judaísmo cujos ideais tinham conotações políticas, pois, diferentemente dos fariseus ou saduceus, a quem consideravam dominados pelo dinheiro, defendiam que os israelitas não deveriam pagar tributos ao imperador romano, um pagão. Por analogia, o PT, antigamente, defendia o não pagamento da dívida aos banqueiros, mas hoje garante que cerca de metade das riquezas arrecadadas às custas do suor do trabalhador sejam entregues de bandeja aos bancos.