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TEORIA

Diário de Atenas – Da festa de vitória na Syntagma à ressaca no parlamento – 5 e 6 de Julho

Não tenho medo de parecer redundante. Sei que todos já sabem os resultados do referendo de ontem. Vou repeti-los mesmo assim, afinal, a sensação de prazer que isto gera é grande. Ontem, em Atenas, o “oxi” triunfou! Demos um pau na direita em escala continental. Não só ganhamos; ganhamos de lavada!

A campanha de terror organizada em escala internacional pelo chamado “eurogrupo”, uma espécie de fórum dos ministros das finanças dos países do Euro, parece ter saído pela culatra. É difícil saber exatamente se houve uma virada na opinião publica a partir do grande ato pelo “não” na Syntagma. Provavelmente, porém o “oxi” esteve bem à frente do campo pró-austeridade do começo ao fim da campanha. O que importa é que o “não” ganhou com ampla margem de diferença, levando absolutamente todos os distritos eleitorais do país.

fuck them!Em termos sociais, esta grande vitória baseou-se em dois setores: a juventude e a classe operária. No distrito eleitoral de Pireus 2, por exemplo, onde moram os trabalhadores dos estaleiros e do porto que abastece Atenas, o “oxi’ ganhou com mais de 72% dos votos. Já entre a juventude, estima-se que algo entre 80% a 90% dos jovens assinalaram em suas cédulas, de forma massiva, o “não”. Uma das estratégias do Syriza, inclusive, foi a de fortalecer institucionalmente o voto dos mais novos. Na eleição parlamentar do começo do ano, mais de 100 mil jovens que haviam acabado de completar 18 anos foram barrados das urnas por motivos puramente burocráticos. Não por acaso, logo ao entrar no governo, Tsipras se moveu rapidamente para resolver o problema.

Apesar da imprensa e das pesquisas de opinião terem insistido, nas vésperas da votação, que o “sim” estava na frente, na manhã de ontem elas já preparavam um recuo. Afinal, havia uma estranha sensação de otimismo no ar. Acordamos sabendo, em nosso inconsciente, que passaríamos a noite celebrando na Syntagma.

Rua em rua, bar em bar

Mesmo assim, ligar a TV às 19h e ver a boca de urna nos colocar, mesmo que por poucos pontos, na frente da direita, foi um daqueles maravilhosos momentos de rara repetição. A alegria, em escala global, se expressava nas redes sociais do velho continente, que voltavam seus comentários à Grécia. Caminhávamos para a maior vitória da esquerda europeia em pelo menos 25 anos.

Havia, na parte da tarde, combinado com uma companheira ateniense, que organiza o comitê de solidariedade à Grécia em Nova York, de acompanharmos juntos a apuração dos votos em um dos muitos bares de Exarcheia. Ao chegar lá, por volta das 20:30, já não havia mais oque acompanhar. Apurados 20% dos votos, estava claro nosso triunfo.

Bairro tradicional da extrema esquerda grega, Exarcheia estava eufórica. Seu envolvimento na campanha do “oxi” se expressava na harmonia caótica de suas paredes e colunas. Os cartazes, grafites e adesivos se sobrepunham competindo entre si para afirmar a maior rejeição possível às propostas de austeridade. O bar em que acompanhávamos à apuração havia produzido seu próprio material, na forma de panfletos e cartazes, reivindicando, além do “oxi”, o retorno ao Dracma e a estatização dos bancos.

Localizado entre a Universidade de Atenas e a Universidade Politécnica, foi aqui que ocorreu o levante estudantil que terminou massacrado pela junta militar que governou a Grécia entre 1967 e 1974. Conhecido por seu ódio à polícia, Exarcheia vive uma espécie de cerco permanente de baixa intensidade. As forças da repressão evitam passar por aqui para não serem apedrejadas, porém estão sempre bem posicionadas, militarmente, ao redor do bairro.

Foi em Exarchia que o jovem Alexandros Grigoropoulos, de 15 anos, foi assassinado pela polícia grega, gerando uma onda de rebelião estudantil e popular que culminou, em 2011, na famosa ocupação da praça Syntagma. De certa forma, o governo Syriza é uma expressão distorcida e institucionalizada das lutas que germinam por aqui.

É compreensível, portanto, que 15 minutos após chegar ao bar, todos já se preparavam para sair em ato pelo bairro rumo à Syntagma. Sob uma faixa convocando à luta anti-austeridade, marchamos de bar em bar, centramos nossa força em torno da simbólica praça auto-gestionada de Exarcheia. Fruto de uma violenta luta contra as forças do estado, que pretendiam tornar aquele tradicional ponto de encontro anti-capitalista em um estacionamento, a praça é hoje um dos principais centros culturais da cidade.

Ao deixarmos as ruas estreitas do bairro anti-capitalistagreeceoxiposter-main, tomamos as avenidas de Atenas rumo à porta do parlamento. Eis que expressou-se, fisicamente diante de meus olhos, a força do “oxi”. Não bastasse o crescimento exponencial de nossa manifestação boemia, consigo contar nos dedos das mãos a quantidade de carros que passaram por mim sem buzinar em jubilo. E não eram só as ruas que estavam tomadas. Ao chegarmos próximos à Tahrir grega, nossa coluna fundiu-se com outra atividade pública que ocorria em uma praça, localizada próxima à sede nacional do Syriza.

Cadeiras e um enorme telão transmitindo a apuração ocupavam o logradouro. Mas naquele momento, em que quase metade dos votos já estavam apurados, ninguém se importava mais com detalhes eleitorais. No lugar da voz dos comentaristas televisivos, as caixas de som transmitiam uma eclética seleção de músicas socialistas. Além de canções da resistência grega à ocupação nazista e à ditadura dos coronéis, o internacionalismo dava o tom da festa. Junto à italiana “Bella Ciao” e músicas de exaltação a Allende, uma versão lounge com sons digitais de “hasta siempre, comandante” bombava em nossos ouvidos. Imagino que Che pouco se entusiasmaria com aquele ruído de gosto estético duvidoso que o homenageava. Mas naquele momento, isto pouco importava, afinal, a classe trabalhadora europeia havia acabado de consolidar uma vitória monumental sobre o imperialismo alemão.

Tomada por bandeiras gregas, a Syntagma enchia-se rapidamente por todos os seus quatro cantos. Alguns chegavam sozinhos, outros em grupos. Na forma de ato, coube novamente ao Antarsya, cuja sigla em grego significa, literalmente, “Cooperação da Esquerda anti-capitalista pela Insurreição”, dar o exemplo. Marchando nessas colunas milimetricamente orquestradas, que tanto se contrastam às experiências tupiniquins, os militantes do Antarsya injetaram ainda mais energia a uma praça em êxtase. Sob a bandeira do “oxi”, a esquerda marxista avançava na Grécia.

A ressaca do dia seguinte

Acordei na manhã de hoje, como de se esperar, com uma dura ressaca de ouzo, bebida grega destilada de anis. Ela é apreciada não só pelos lutadores da classe trabalhadora daqui, mas também muito consumida entre os revolucionários sírios e egípcios com quem militei no Oriente Médio. No Cairo, era vendida de forma quase clandestina em um dos pontos favoritos dos jovens de esquerda, o “Clube Grego”, que ficava a poucos minutos a pé da Tahrir. Mas, muito mais perigosa que a ressaca do álcool, porém, tem sido a ressaca do governo frente à vitória, que parece estar empurrando o Syriza não à esquerda, mas sim, à direita.

As medidas tomadas hoje pelo governo representam, na prática, concessões inaceitáveis. A principal delas foi a assinatura de um “pacto nacional” com os três principais partidos burgueses do país afirmando que a votação de ontem retirava do governo qualquer legitimidade de ruptura com o Euro. Entre os partidos com representação parlamentar, ficaram do lado de fora do acordo apenas o KKE e os neo-nazistas do Aurora Dourada.

Ao mesmo tempo, o ministro/pop-star Yanis Varoufakis, até então responsável pela pasta de finanças do governo, pediu as contas. Odiado pelos negociadores alemães, Varoufakis, que sempre foi um conciliador, foi sacrificado, segundo ele próprio, para melhorar o clima das negociações com os credores. O ex-ministro será substituído pelo também acadêmico Euclid Tsakalotos, que representa, inclusive em termos partidários, o setor mais à direita do Syriza, à direita de Varoufakis.

As concessões de Tsipras, indubitavelmente, vão no sentido oposto ao sentimento da rua. O primeiro-ministro buscou, menos de 24 horas após a maior vitória do movimento anti-austeridade, conciliar-se com os representantes domésticos e internacionais da troika.

zvSe a estratégia do governo era reestabelecer as pontes com o grande capital europeu, a reação vinda de Bruxelas, e, principalmente, Berlim, foi nada calorosa. Desde as eleições do Syriza, os bancos gregos estão, na prática, vazios. Vivem de uma assistência emergencial do BCE, o Banco Central Europeu. Por via de um mecanismo conhecido como AEL (Assistência Emergencial de Liquidez) o BCE injeta euros no sistema bancário grego em troca de garantias de que se os bancos forem quebrar, o BCE tem como se ressarcir.

Como parte dos acordos da troika, o BCE dá uma colher de chá aos gregos, exigindo, na prática, garantias abaixo das do mercado. Desde o início da crise com o Syriza, porém, o BCE tem revisto, semanalmente, se estas garantias estão “boas o suficiente” para suas demandas. Em outras palavras, se o BCE quiser explodir o sistema financeiro grego, tudo que ele precisa fazer é exigir mais garantias dos bancos locais. Como os bancos gregos não têm como dar mais garantias, o BCE teria de interromper o fluxo de euros levando assim os bancos à falência.

Na tarde de hoje, o BCE elevou um pouco mais a temperatura contra Atenas. Exigiu um aumento maior das garantias dadas pelos gregos. Os detalhes específicos das demandas não são conhecidos, porém, segundo o Financial Times de hoje, os quatro principais bancos do país conseguiram cumprir a demanda, atingindo, ao mesmo tempo, o limite de seu limite. Com a decisão tomada pelo BCE, caso os bancos gregos sejam empurrados em mais um milímetro, quebram.

Tsipras, mesmo tendo ganho o referendo, tomou todas as medidas de quem está disposto a ceder às exigências de Merkel. O problema, ao mesmo tempo, é que o governo alemão parece estar disposto a empurrar Atenas para fora do Euro. Não vou me arriscar, com tantos elementos políticos em aberto, a uma previsão do que ocorrerá no futuro próximo. A única coisa que me parece claramente expressa no dia de hoje é a disposição da direção majoritária do Syriza em castrar a vitória do “oxi”, esvaziando-a de seu conteúdo radical.

Pretendo, amanhã, retornar à ativa junto à esquerda grega. Se tudo der certo, visitarei alguns órgãos de mídia independente por aqui. Manterei vocês informados de minhas próximas movimentações. Até lá!

Aldo Cordeiro Sauda

Errata:

Em meio à salada de nomes gregos, confundi Tsakalotos com Dragasakis (poderia se dizer que foi uma confusão e tanto, posto que os nomes são bastante distintos ortograficamente, mas com tantos nomes impronunciáveis na cabeça, dou me o direito de me confundir). Tsakalotos, ao contrário de Dragasakis, não está à direita de Varoufakis. Alguns afirmam, inclusive, que ele está um pouco à esquerda. Nada disto, porem, muda o centro de meu argumento; que a mudança do Ministro das Finanças busca avançar um projeto de austeridade similar ao rejeitado pelas urnas, e que ele simboliza, logo após a vitória do não, um recuo de Tsipras em busca de conciliação com o grande capital europeu.