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BRASIL

O papel do Estado nacional brasileiro deve ser outro no combate à economia política do genocídio

Jaime León*
Agência Brasil

Vista aérea da Esplanada dos Ministérios em Brasília, no Eixo Monumental

Com a pandemia da Covid-19, a correlação de forças da geopolítica mundial está em ebulição diante, por exemplo, da proximidade do pleito eleitoral nos EUA, a crescente disputa geopolítica entre EUA e China e a recente crise do petróleo (o barril passou a registrar preços negativos nos últimos dias). Assim, as políticas econômicas emergenciais são o melhor sinal que os Estados nacionais podem dar neste momento para a superação da crise. No cenário de crise estrutural do capital, simbolizada por mais uma crise no neoliberalismo e desemprego em massa, se debate bastante a reconfiguração da atuação dos Estados nacionais1 como atenuadores e possíveis instrumentos de solução à crise socioeconômica, geopolítica e sanitária mundial. É um momento extraordinário que vem demandando a alteração das políticas socioeconômicas nacionais, evidenciando a necessidade de medidas integradas a nível nacional e um decisivo posicionamento dos trabalhadores contra a política econômica da hecatombe de Bolsonaro. Analisaremos neste texto a atuação do governo e de seus gastos na área fiscal, sem com isso deixar de sinalizar a importância da unidade de ação com as áreas monetária e cambial e, principalmente, apontando que a necessidade de um debate sobre a perspectiva dos trabalhadores.

Há que se intensificar a denúncia que vem sendo feito há tempos por economistas críticos às reformas neoliberais. É necessário que se aumentem os gastos públicos, pois a atenuação da crise econômica é por atuação anticíclica. Neste sentido o projeto de Guedes ruiu de vez, pois a crise trouxe uma inflexão forçada. Após uma série de medidas que somente remanejavam recursos de uma área para a outra, o governo parece que percebeu que o problema demanda gastos novos e lutará até onde puder para manter sua agenda neoliberal.

No atual estado, o governo deve aumentar gastos e transferências de renda, repasses para os entes subnacionais que já passam por queda de arrecadação (uma forma de compensar a queda de ICMS e ISS), o governo também terá que rever o projeto de privatizações e de abertura comercial. Há, entretanto, uma tríade fiscal em que cada um dos elementos se sobrepõe e que impede qualquer tipo de ação intervencionista eficaz no combate à crise: a regra de ouro; a lei de responsabilidade fiscal (LRF) e o teto dos gastos. Esta tríade é associada a uma concepção errônea de que estamos sem dinheiro.

A regra de ouro ao diferenciar gastos correntes (saúde, educação, previdência social e despesas com a dívida pública) de gastos de capital (investimentos em infraestrutura, máquinas e equipamentos, por exemplo), demanda que a criação de novos gastos correntes seja sempre aprovada pelo congresso nacional. Tal regra foi inspirada pelas proposições keynesianas de uma economia que atua em condição de pleno emprego dos fatores de produção, algo totalmente incompatível com a realidade brasileira. Ocorre que as rubricas “saúde” e “ciência e tecnologia” (gastos que mais precisamos agora para ajudar que os profissionais de saúde tratem os pacientes e para evitar ao máximo novos casos) são gastos correntes e, por isso, qualquer aumento nelas devem ser aprovadas pelo congresso para que valham.

Daí vem o problema da segunda barreira fiscal, a lei de responsabilidade fiscal (LRF), que instrumentaliza a maior parte dos gastos públicos para a meta fiscal de superávit primário e impede que o orçamento corrente seja deficitário. A LRF (criada durante o governo FHC e endossada pelos governos que o sucederam) é, por definição, um instrumento pró-cíclico, o que quer dizer que tende a favorecer a arrecadação fiscal em momentos de bonança econômica e a restringir a arrecadação nos períodos de crise. Entretanto, especialistas afirmam2 que pela LRF ainda seria possível um reajuste da meta de superávit primário (o que liberaria recursos novos para a saúde), porém o terceiro elemento da tríade, o teto dos gastos, impede o aumento dos gastos públicos por 20 anos, em termos reais. Além de impedir o crescimento, o teto dos gastos cortou, em relação ao PIB cerca de 5% dos gastos, tal limite já teria “retirado” da saúde R$ 22,5 bilhões entre 2018, 2019 e 2020. Vale o apontamento de que estamos diante de um cenário em que, mais que nunca, é necessária a discussão de transformações na sociedade brasileira via tributação de grandes fortunas e heranças.

Diante da percepção que será impossível manter a meta de superávit primário em 2020, o governo decretou, no dia 20 de março, o Estado de calamidade pública em nível federal até 31 de dezembro para poder atuar contra a crise. O conjunto de medidas anunciadas, entretanto, sequer era anticíclico. Daí surgiu, na Câmara dos Deputados, uma Proposta de Emenda Constitucional (a PEC 10) que trata de um orçamento de guerra (como dissemos, estamos numa situação extraordinária) que trata de separar os gastos realizados no combate à pandemia do orçamento geral da União e suspende a restrição da “regra de ouro”. Esta proposta, que, em 04 de maio, estava em rodada de avaliação na Câmara dos Deputados, permitiria ao Banco Central (BACEN) aumentar a liquidez da economia comprando títulos no mercado secundário (o BACEN atualmente só pode comprar títulos de bancos comerciais, o que é uma restrição para influenciar a liquidez da economia).

É necessário frisar que a atuação inicial do BACEN, de passar recursos para os bancos sem contrapartidas, não garante que os recursos chegarão na esfera produtiva. Neste momento uma ação conjunta dos principais bancos públicos como a Caixa Econômica Federal (CEF), o Banco do Brasil (BB) e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) seria fundamental para uma atuação anticíclica. Estes agentes poderiam garantir crédito barato à população e às empresas e redefinir os prazos de pagamentos de empréstimos. A CEF já está atuando como o operador do auxílio emergencial, mas o que se mostra cada vez mais urgente se trata de, seguindo o exemplo de países como França e Espanha, o governo suspender a cobrança de serviços públicos essenciais como água e eletricidade e estatizar hospitais privados para que a renda das famílias mais vulneráveis seja mais resguardada.

O que não pode passar despercebido, porém, é o fato de que o Projeto de Lei Complementar (PLP) 39/2020, aprovado pelo senado no dia 02 de maio, ao se disfarçar de ajuda a estados e municípios durante a pandemia acaba atuando como mais um ataque do governo aos trabalhadores, em especial, os do setor público. Ao oferecer uma “ajuda” no combate à pandemia, o governo impõe uma série de contrapartidas como o congelamento dos salários do funcionalismo público em todos os níveis até dezembro de 2021. Mesmo que haja deflação e eventual ganho real de salários muitos servidores, como os professores da rede municipal e estadual de ensino, já têm salários muito aquém do digno e reivindicam reajustes e aumentos há tempos. Além do congelamento de salários, a PLP prevê o comprometimento das finanças dos entes subnacionais por meio da securitização dos créditos, que cria mecanismos de refinanciamento por fora dos mecanismos regulares de orçamento.

A proposta aprovada no Senado, sob relatoria do presidente Davi Alcolumbre, estabelece que a União repasse, a título de combate à pandemia, R$ 60 bilhões, sendo R$ 10 bilhões destinados para ações contra a Covid-19 nas áreas de saúde e assistência social e R$ 50 bilhões para amenizar a queda de arrecadação de estados e municípios. O texto também prevê o perdão de supostas dívidas dos entes subnacionais com bancos públicos durante o restante de 2020 (que dariam uma economia de R$ 49 bilhões) e uma economia de R$ 10,6 bilhões referentes à renegociação de dívidas contratuais com organismos financeiros internacionais, as quais a União é garantidora.

A contrapartida é o congelamento de salários do funcionalismo público, com exceção dos profissionais de saúde na linha de frente e militares, além do compromisso de não oferecer reajustes de progressões e não realizar concursos para novas vagas até 31 de dezembro de 2021. Para piorar, o alívio fiscal para os entes subnacionais serão revertidos em arrocho fiscal para 2021.

Desde 2016, vivemos uma crise política e socioeconômica sem precedentes que representou uma destruição institucional enorme, agravando o cenário dos trabalhadores. As mudanças vistas desde o impeachment de Dilma representam uma mudança qualitativa no sentido de alteração no regime de acumulação vigente no país. Pouco podemos falar, em termos técnicos, do programa apresentado pelo ministro da casa civil Braga Netto em 22 de abril, o PRÓBRASIL, apresentado com um conjunto muito pouco esclarecedor de sete “slides” como um programa de gastos do governo de forma sustentada e garantidora do emprego e da renda dos trabalhadores.

Mas sim podemos dizer que há a sinalização de uma possível ruptura dentro da ala do governo constituída pelos militares “nacionalistas”, como Braga Netto, e a equipe econômica de Paulo Guedes, que representa o neoliberalismo a qualquer custo. Isto não implica que o governo sinaliza para algo extemporâneo como um “desenvolvimentismo militar”, muito pelo contrário, não há condições históricas e objetivas para tal. O PRÓBRASIL não será um novo New Deal, tampouco será um novo Plano Marshall. O Brasil não é os EUA, não tem o seu poder de injetar U$ 2 trilhões na economia como fez Trump.

o padrão de dominação burguês por mais que esteja em disputa fratricida ainda segue antinacional, antissocial e antidemocrático

De outro lado, está claro também pelas disputas pessoais entre Bolsonaro e o ex-ministro Sérgio Moro que houve uma nova rodada de cisão interna do governo que parece pender para o setor mais ideologicamente extremista, não por acaso o presidente citou o ministro Weintraub como exemplo no discurso após a demissão de Moro. A atual crise estrutural do capital, cada vez mais, evidenciará as contradições e os limites da acumulação neoliberal, porém o padrão de dominação burguês por mais que esteja em disputa fratricida ainda segue antinacional, antissocial e antidemocrático. É hora de lutar para rever a atuação do Estado brasileiro a fim de que atenda a maioria da população, a classe trabalhadora, de acordo com os interesses destas pessoas.

 

*Jaime León é pesquisador do Laboratório de Estudos Marxistas do Instituto de Economia da UFRJ. Atualmente professor substituto da Universidade Federal de Alfenas.

 

 

NOTAS


1  Após uma reação retardatária, os E.U.A. têm atuado de forma massiva no combate à pandemia. Vale dizer que em 23 de abril, a União Europeia também discutia uma grande intervenção econômico do bloco. A Alemanha está reticente, pois como economia mais forte do continente, entende que, para ela, as condições pedidas seriam desvantajosas.
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2  Para mais, ver o debate dos especialistas do Instituto de Economia da UFRJ disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=09oM2qqjaUY.

 

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