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TEORIA

“A polícia trata a gente que é pobre quem nem lixo”: Reflexões sobre o filme Trash

Jean Montezuma

A frase que dá título a essa breve resenha poderia ter saído da boca de qualquer morador da periferia de Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo ou outra grande cidade do Brasil. Essa constatação grave e de profundo significado é um reflexo da realidade brasileira atravessada e marcada historicamente pelo racismo e por uma profunda desigualdade econômica e social.

No Brasil, de acordo com o último censo, mais de 11 milhões de pessoas (6% da população) vivem em favelas ou localidades carentes de infraestrutura digna e 40 milhões não tem acesso a água tratada e a rede de esgoto¹.Os negros e negras são a maioria nessas condições e também são as maiores vítimas da violência. Em 10 anos o percentual de negros entre as vítimas de assassinato aumentou de 63% em 2001 para 76% em 2011, ao passo que as vítimas brancas tiveram uma redução de 36% para 22% no mesmo período². Um jovem negro tem 3,5 vezes mais chances de ser morto que um jovem branco.

Diante dessa afirmação: “a policia trata a gente que é pobre que nem lixo”, governadores, prefeitos, juízes, secretários de segurança, comandantes militares e legisladores não tem o mínimo direito de se sentirem ofendidos ou contrariados. Afinal, os dados apresentados acima, extraídos do mapa da violência e dos próprios órgãos estatais, dão conta dessa realidade e não lhes permite negar. No entanto, essa frase carregada de significado pelo seu realismo, não vem das folhas de jornais e revistas, é na verdade uma das primeiras mensagens passadas por Rafael, uma das personagens do filme Trash, a esperança vem do lixo.

O filme Trash, lançado em outubro de 2014 baseado no romance de mesmo nome publlicado em 2010 por Andy Mulligan, foi produzido e dirigido pelos cineastas britânicos Stephen Daldry e Richard Curtis e conta no seu elenco com figuras carimbadas do cinema brasileiro como Selton Melo, Wagner Moura , Leandro Firmino, Stepan Nercessian, Nelson Xavier e dois artistas americanos, Rooney Mara (no papel da professora Olívia) e Martin Sheen (Padre Julliard). A ideia de um filme que retrate a realidade brasileira baseado no tripé pobreza-corrupção-violência racista da polícia não é nova. Já tivemos obras clássicas como Pixote, a lei dos mais fraco (1980) de Hector Babenco, Cidade de Deus (2002) de Fernando Meireles e grandes sucessos de bilheteria como Tropa de Elite (2007) e Tropa de Elite 2: O inimigo agora é outro (2010) ambos de autoria de José Padilha.

No entanto, o fato de partir de uma temática já abordada em outras obras não fez de Trash um mais do mesmo. A começar pelo fato que tais temáticas, pobreza-corrupção-violência racista da polícia, não se esgotam ao serem abordadas em uma, ou até mesmo dúzias de obras cinematográficas. Debater esses temas, encará-los como são e com a importância que possuem na formação do atual quadro da realidade brasileira é uma necessidade que se renova a cada dia, a cada nova manifestação do racismo, a cada jovem que tomba na periferia vítima da violência muitas vezes vinda diretamente do aparato policial.

Trash também possui uma virtude que o diferencia, por exemplo, dos recentes Tropa de Elite 1 e 2. Ao contrário dos dois últimos, o roteiro de Trash se desenvolve a partir daquilo que os historiadores chamariam de “a visão dos debaixo”, ou seja, o filme nos é apresentado desde o ponto de vista dos três jovens negros Gardo, Rafael e Gabriel que após encontrarem uma carteira de um desconhecido no lixão de onde tentam retirar o sustento para viver, ou melhor dizendo, sobreviver, , são arrastados para o centro de uma trama de corrupção tornando-se alvos dos agentes da policia. Com essa abordagem o diretor inglês Stephen Daldry, ao mesmo tempo que retrata cruamente o processo de desumanização e brutalização ao qual esses jovens estão expostos, proporciona aos mesmos “voz”. Uma voz que, via de regra, não é dada aos oprimidos, seja nos livros, na TV e também nas telas de cinema.

A narrativa dá voz a esses jovens fazendo, inclusive, os mesmos se dirigirem diretamente a quem assiste o filme através de pequenos trechos de um vídeo onde as personagens dão seus depoimentos sobre sua história, sobre o que pensaram e sentiram em cada momento da trama que o roteiro desenvolve. Tal recurso proporciona uma relação mais direta de quem assiste com as personagens do filme. Somos provocados a viver experiência de não apenas assistir o filme, mas de refletir sobre os desenlaces que a trama vai nos apresentando sempre na perspectiva dos garotos. É uma provocação feita para nos tirar de nossa zona de conforto. Trash não se propõe a ser um filme apenas assistido, mas também pensado e criticado a luz das reflexões que levanta.

Uma trama de tirar o fôlego.

José Angelo arquiteta um plano para desmascarar um esquema de corrupção que envolvia Santos, deputado poderoso e pré-candidato a prefeitura do Rio de Janeiro. No passado Santos havia sido um dos responsáveis por um esquema que pôs injustamente na cadeia João Clemente, um advogado e ativista dos movimentos sociais.

No entanto, José Angelo acaba capturado, torturado e morto pela policia. Porém, como parte do seu plano, José Angelo havia criado um código que se decifrado poderia levar a conclusão do seu plano mesmo na ocasião dele próprio não poder levá-lo até o fim. Os códigos foram colocados por ele na sua carteira, a mesma que ele atirou na caçamba de um caminhão do lixo quando encurralado pelos PM’s.

No lixão, foi o garoto Rafael quem achou a carteira e logo despertou interesse sobre o desconhecido José Angelo, dono daquela misteriosa carteira, e convenceu seus amigos Gardo e Gabriel (apelidado de “Rato”) a ajudá-lo na empreitada de desvendar esse mistério. O interesse da policia na carteira misteriosa só atiçou a curiosidade de Rafael pela história de José Angelo, mas, a certeza de que havia algo de muito sério só vem quando o próprio Rafael é sequestrado, torturado e por muito pouco escapa de ser, como fora José Angelo, assassinado pelos policiais.

Ao passo em que se desenvolve, a trama de Trash nos tira o fôlego com a verdadeira caçada da policia aos garotos. Essas cenas, por sinal, retratam um pouco das ações policiais nas favelas e nas periferias do Brasil marcadas por abuso de poder, violência, criminalização da pobreza e do povo negro. Combinado a isso, ao passo que o mistério de José Angelo vai sendo revelado pelos garotos, vamos tomando parte da sua verdadeira motivação. Nunca se tratou de uma mera vingança ou uma questão pessoal, seu objetivo era político, escancarar todo um esquema de corrupção que, segundo o que acreditava José Angelo, se desse certo, derrubaria não apenas o Deputado Santos, mas faria desmoronar todo o sistema que retroalimentava a corrupção no Brasil.

Desconstruindo a desumanização.

É muito comum os filmes que tratam do problema da pobreza e da violência no Brasil abordarem a questão da desumanização que é parte da ideologia racista. Aliás, este é sem dúvida um dos aspectos mais atrozes do racismo. Negros e negras, ao longo da história do Brasil, foram costumeiramente identificados pela “inteligentsia racista” como, no mínimo, seres humanos de segunda categoria. No auge do racismo dito cientifico, que se baseava nas teses eugênicas³, alguns autores chegavam ao ponto de dizer que uma mulher negra não deveria se envergonhar se a ela fosse oferecida a oportunidade de casar-se com um chimpanzé, tal era o grau de animalização com que estes pseudo-cientistas racistas se referiam ao povo negro.

Nos dias de hoje, mesmo uma década após a chegada do PT ao palácio do planalto, o que se vê é a perpetuação dessa pratica de desumanização dos negros e negras. Por isso a chacina do Cabula ocorrida em Salvador ou os 19 mortos de Osasco chocam muito menos a opinião pública e ocupam menor espaço na mídia do que o caso da violência nas ciclovias das orlas cariocas. Tão pouco a policia não agiu com os empreiteiros da Lava-jato acusados de desviar bilhões da mesma forma que atua todos os dias na periferia invadindo as casas dos moradores das favelas e bairros pobres, humilhando e agredindo das mais variadas formas quem encontra pela frente. A desumanização, essa cruel faceta do racismo, serve para fortalecer uma ideia que nasce na classe dominante e é irradiada na sociedade tomando conta da consciência da opinião pública, em especial dos setores médios; é a ideia que diz que vidas negras não importam e, justamente por isso, são descartáveis como lixo.

No entanto, ao contrário de outros filmes nacionais que abordam a temática da desumanização Trash possui uma virtude que o diferencia. Em Trash não se apresenta a desumanização apenas como um “espetáculo” para chocar quem assiste. Em Trash vemos essa desumanização sendo representada e ao mesmo tempo dialeticamente desconstruída, isto é, desnaturalizada. Essa desnaturalização ganha contornos vivos com a relação de solidariedade entre os garotos Rafael, Gardo e Gabriel. Nesse quesito, uma vez mais a opção do diretor em narrar a história desde o ponto de vista dos garotos mostrou toda sua validade. Rafael, Gardo e Gabriel que no Brasil real e seguindo os padrões do “status quo” racista seriam criminalizados por sua raça e sua classe, animalizados e considerados como a personificação do inimigo a ser combatido, através da história narrada pelo filme ganham voz, sentimento, identidade, em suma, reconquistam sua humanidade.

Uma mensagem potencialmente revolucionária: O povo na rua tem o poder de mudar as coisas.

Sim, Trash fala de política. A essa altura desta resenha falar disso parece uma obviedade. No entanto, também nesse quesito este é um filme que desperta reflexões e aponta saídas que merecem destaque.

O problema da corrupção vai se desenvolvendo ao longo da trama e se materializa de várias formas, sendo possível identificá-la no agente penitenciário que pede suborno, no diretor da cadeia que faz o mesmo para permitir uma visita, na relação espúria entre a policia e o deputado Santos que utiliza do aparato repressor do Estado para perseguir, torturar e matar quem atravessasse seu caminho e, entre o mesmo político Santos e os seus “finaciadores” de campanha, as empresas listadas em seu valioso livro-caixa. Nesse ponto especifico qualquer semelhança com o escândalo da Lava-jato, ou o escândalo do metrô de São Paulo e uma longa lista de exemplos não é mera coincidência.

Entretanto, sou obrigado a problematizar uma das certezas que levou José Angelo a montar todo o plano que serve de estopim para trama. Seria o problema da corrupção, ou melhor dizendo, seria a tarefa de pôr fim a corrupção a saída para pôr abaixo as profundas desigualdades da nossa sociedade, dentre elas o racismo em todas as suas cruéis faces? Do que nos foi permitido através do filme conhecer do pensamento de José Angelo e João Clemente a resposta de ambos seria um sim retumbante.

Questionando ambos, diriam que isso é uma meia verdade, pois, por um lado sim, a corrupção é uma chaga, uma doença grave que causa enorme mal a sociedade brasileira. Todos os anos bilhões deixam de ser investidos nos serviços públicos por causa da corrupção. Um relatório da FIESP baseado em dados referentes a 2008 apontou que o volume perdido com a corrupção variou entre 1,38% e 2,3% do PIB, ou seja, entre 41 e 69 bilhões de reais! Não é nenhum exagero dizer que a corrupção é institucionalizada e abrigada pelo regime político brasileiro, a começar pelas eleições e o toma lá da cá do financiamento privado. Portanto sim, a corrupção deve ser combatida e não pode haver ideal de mudança social sem que o combate a corrupção se faça presente.

Por outro lado, e por isso é uma meia verdade, a corrupção, com toda a sua importância, é apenas uma manifestação, é algo que só se alimenta e encontra as condições para se reproduzir a partir de algo mais profundo, algo que esta na essência da desigualdade que existe na sociedade: a propriedade privada dos meios de produção e a apropriação privada dos frutos do trabalho social. Enquanto houver uma minoria cada vez mais privilegiada que vive do fruto da apropriação do trabalho da imensa maioria do povo, enquanto essa minoria tiver sobre seu controle instituições forjadas a sua imagem e semelhança que servem para perpetuar sua dominação política, não será possível por um fim na corrupção e menos ainda dizer que se combate seriamente a desigualdade social.

Contudo, em que pese essa diferença, entre o autor dessas linhas e o filme que é objeto dessa resenha há uma convergência de grande valor traduzida pela mensagem que nos é passada diretamente pelo jovem Rafael: “No dia que o povo descer pra rua, pode ter certeza, pode levar fé, não vai ter pra ninguém”. Embora seja curta e simples, a mensagem é carregada de uma verdade histórica só comparada ao seu potencial revolucionário. Sim, é verdade Rafael, o povo na rua tem o poder de mudar as coisas.

Produzido em 2013, portanto, em meio a toda atmosfera gerada pelas grandes manifestações das jornadas de junho, Trash acabou por refletir isso em sua história. A mensagem passada pelo desfecho da trama é que a mudança só poderá ser alcançada pela via da ação coletiva e não por um projeto individual ou por um herói salvador, figura comum em filmes hollywoodianos.

É quando se lança ás ruas e converte em luta política o desejo de por fim as suas aflições que o povo tem ao alcance das mãos a chance de mudar as coisas. É quando esse mesmo povo vai além e acredita que somente por fora dos trilhos do que é permitido pelo “status quo” que uma mudança real será alcançada, é nesse momento que as revoluções se tornam possíveis e ficam ao alcance das mãos.

Por isso o desfecho de Trash, se comparado a inúmeras outras obras cinematográficas, é tão diferenciado e valioso. A reflexão final, por assim dizer, que o filme nos aponta é que o caminho não é “se dar bem”, ou o também muito comum “faça a diferença”. A saída é ação, é o povo, que é oprimido e explorado nas ruas tentando agarrar com suas mãos a oportunidade de mudar as coisas. Em resumo, um convite a ousadia.

Notas:

1- Dados extraídos dos relatórios do Censo IBGE 2010: http://censo2010.ibge.gov.br/index.php

2- Dados extraídos do Mapa da violência 2011/Os jovens do Brasil: http://www.mapadaviolencia.org.br/mapa2011.php

3- A Eugenia, cujo o significado é “bem nascido”, é uma teoria nascida no século XIX que tem como patrono o antropólogo inglês Francis Galton. Galton conceituava a eugenia como o estudo dos agentes sob controle social que podem melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações tanto do ponto de vista físico quanto mental. No Brasil a corrente de pensamento baseada nas teorias Eugênicas teve entre seus vários representantes o escritor Monteiro Lobato (1882-1948) e o jurista, historiador e sociólogo Oliveira Viana(1883-1951).