Betto della Santa |
«Que Horas Ela Volta?» (QHEV), filme de Anna Muylaert – escalado pelo MinC para representar o Brasil no Oscar 2016 –, se impôs à agenda do debate sobre cultura e política no país. Por uma série de razões e sentidos, que escapam a esquemas unilaterais e explicações fáceis, o longa-metragem conquistou um lugar entre as audiências mais amplas, a crítica de arte e o próprio aparelho cinematográfico. Dificilmente se perfila a interpretações apressadas — seja para a celebração acrítica ou a condenação sumária. QHEV não é nem “a luta de classes [de] volta ao cinema brasileiro” – como disse Jean-Claude Bernardet, já bem a propósito d’O Som ao Redor, de Kleber Mendonça –, nem mesmo “hiperrealista”, posição de Leandro Saraiva sobre O Céu de Suely, de Karim Aïnouz. A própria realizadora se antecipa refutando a categoria de cinema de autor para si. Mas tampouco se trata de uma produção típica da Globofilmes e/ou da fórmula do mainstream nacional. Se György Lukács objetava teorias “orientadas menos face ao ser do que ao dever ser”, afinal, o quê «Que Horas Ela Volta?» de fato vem a ser? (Georg Lukács. Lukács on his life and work | Interview to NLR. New Left Review: London, ed.68/I, Jul./Aug. 1971. Tradução nossa.) Traduzindo a pergunta para um idioma atento à escuta do tempo (e do espaço) da semiperiferia do sistema, e suas próprias questões, afinal, que horas são em QHEV?
Vale a pena começar essa reflexão a partir de um cânone de interpretação sugerido por Antonio Gramsci para pensar tempos históricos de derrotas sucessivas dos subalternos:
«Quando não se tem a iniciativa na luta – e a luta mesma acaba se identificando com uma série de derrotas – o determinismo mecanicista torna-se, então, uma força formidável de resistência moral, de coesão, paciente e obstinada perseverança. “Fui derrotado temporariamente, mas a força das coisas funciona a meu favor a longo prazo etc.” O desejo real está disfarçado de ato de fé, duma certa racionalidade histórica, de forma empírica e primitiva, um finalismo apaixonado, que se apresenta enquanto substituto da predestinação, providência etc. às denominações confessionais. Deve-se insistir em que mesmo aqui há de fato uma forte atividade volitiva, intervenção direta – sobre a “força das coisas” –, mais precisamente de forma implícita, velada, envergonhada de si mesma; portanto, a consciência se torna contraditória, falta-lhe unidade crítica etc. Mas quando o “subalterno” eleva-se a dirigente e responsável – pela atividade econômica de massa – o mecanicismo parece chegar, em certo ponto, a um perigo iminente, uma revisão de todo o pensamento daí ocorre porque ocorreu uma mudança na forma social de ser. Os limites e o domínio da “força das coisas” são daí reduzidos. Por quê? Porque, basicamente, se ontem o subalterno era uma coisa, hoje já não o é, tornou-se uma personalidade histórica, um protagonista. Se ontem era irresponsável, porque era “resistente” a uma vontade alheia, hoje sente que é responsável, porque já não é mais resistente, e sim agente, necessariamente ativo e empreendedor. Mas era, mesmo ontem, mera “resistência”, mera “coisa”, mera “irresponsabilidade”? Certamente que não. É por isso que se deve enfatizar que o fatalismo não é senão o disfarce duma vontade, ativa e real, revestido pelos fracos. Assim sendo, deve-se sempre demonstrar a inutilidade de todo determinismo mecanicista. Porque se ele é razoável enquanto filosofia ingênua da massa e é, só nesta medida, um elemento intrínseco de força, quando é reconvertido numa filosofia reflexiva e coerente por parte dos intelectuais torna-se causa de passividade – imbecil autossuficiência – sem se esperar que o subalterno eleve-se a dirigente e responsável. Uma parte da massa mesmo subalterna é desde sempre dirigente e responsável e a filosofia da parte precede sempre à filosofia do todo, não tão-só enquanto antecipação teórica, mas senão enquanto necessidade atual.» (Antonio Gramsci. Quaderni del Carcere. Torino: 1975, p.1388-9, §18-18bis. Tradução nossa.)
Como veremos ao longo das linhas que seguem, há certo descompasso temporal operando entre texto e con-texto do filme. O não-ressentimento de uma geração de trabalhadores subproletários (Val) para com os de cima e o mal-estar social de outra, formada por jovens precarizados (Jéssica), que não se contentam com alívios paliativos em suas condições de vida. Se o divisor de águas extracinematográfico é a escalada grevista e a revolta de junho, inflexão análoga pode ser buscada no hiato entre a concepção (roteiro) e a execução (direção) do filme. Mas vamos com calma. Não coloquemos «os carros diante dos bois.» Antes de qualquer coisa, iniciemos do início. Para começo de conversa, vale dizer que um filme não surge como raio em céu azul. Se algo nos ensina a rica tradição de crítica dialética da cultura há uma série de pressupostos latentes que só podem se fazer ver na película por conta de uma espécie de condensação psicossocial – algo como um “inconsciente político” – que as imagens em movimento vem revelar. Neste sentido o que se projeta na tela, não sendo nem parte da recente explosão cinematográfica chamada “cinema de Pernambuco” – com sua ousadia técnica e formal e coragem político-social –, nem um legítimo blockbuster de tipo global, exige-nos uma reflexão a partir de argumentos e, sobretudo, hipóteses. A polêmica já instaurada permite-nos certo distanciamento e a possibilidade da totalização em aberto: mais que um diagnóstico de respostas, um receituário de perguntas. Pois, vamos a elas. QHEV mostra, no centro da cena, a doméstica Val (Casé) – babá, faxineira, cozinheira, lavadeira-passadeira, copeira e passeadora-de-cães além de eventual massagista, psicoterapeuta, secretária-executiva, “life-coach” e, para todos os efeitos, a eternal ama-de-leite – que só existe no país. É isso mesmo. Tão e só no Brasil.
A afirmação acima, desprovistas as devidas mediações, pode soar algo peremptória. Mas é, filologicamente, muito rigorosa. Tal ocupação socioprofissional é uma herança maldita do colonial-escravismo. O entulho infraestrutural dos idos à la Sobrados/Mucambos – a sua vez, sucedâneos de Casa-Grande/Senzala – é um buraco-de-fundo em apartamentos brasileiros conhecido, de modo obscuramente cordial, como “quartinho-de-empregada”. (A respeito do quê o historiador, filólogo, jornalista e crítico literário Sérgio Buarque de Hollanda chamou “cordialidade” recomendamos, vividamente, o recente artigo de Valerio Arcary para o Blog CONVERGÊNCIA.) O verdadeiro apartheid segregacional não deixa lugar a dúvida. Todo e qualquer estrangeiro desembarcado in terra brasilis irá reconhecer na engenharia civil tropical uma anomalia absurdamente irracional: dois umbrais à entrada de prédios/ dois elevadores/ duas portas. À duplicata sûr-real sobrepõem-se uma ordem que não se avexa a expressar em palavras: “Social” & “Serviço”. (Em algumas poucas cidades litorâneas há o recurso à desfaçatez de se mentir aos turistas de temporada, isto é, haveria uma suposta entrada para “Banhistas”, dizem-no os cartéis.) Salvo ledíssimo engano foi o deliciosamente inventivo Recife Frio, média-metragem e “falso documentário”, a registrar por primeira vez tal efeito-estranhamento face ao lixo histórico. [Vale muito a pena conferir esse filme de Kleber Mendonça, na íntegra, desde o atalho linkado abaixo: Recife Frio: https://vimeo.com/9970440.]
O vil cubículo pressupõe que empregadas domésticas – em sua grande maioria: mulheres, ex-campesinas, não-brancas – não só “vivam no serviço” mas, por extensão (e em profundidade), impõe os lugares vedados à livre-circulação. “Da cozinha para lá”, diz a patrôa-sinhazinha. E tal “lógica”, bipartite, se reproduz no interior dos domicílios: copa, quartinho + banheirinho, área-de-serviço e cozinha — além de áreas externas/comuns, aí é onde/quando se permite o trânsito (e o olhar) do “Serviço”. A fruição “Social” do lar é apanágio para aqueles já com laços de sangue e afeição – sala-de-estar, quartos-suítes, escritórios, corredores, sala-de-jantar – e totalmente restringida fora da jornada de labor. Foi tão-só em abril de 2013 – poucas semanas antes das “jornadas de junho” – que algo da cidadania salarial brasileira foi estendida a essa categoria de trabalhadoras manuais. Promulgada a Proposta de Emenda à Constituição 478/10 – e a recém-LC/150 (1ºJun.2015) –, o Parlamento sancionou-lhes direito formal à jornada de trabalho de 44h, FGTS, seguro-desemprego, horas-extras e adicional noturno. Nada mais do que carteira assinada; a CLT. Para todos os efeitos QHEV é um filme pós-PEC do Emprego Doméstico no Brasil da era «frente-pop-lulista.»
Mas Val – interpretada por Regina Casé – não trabalha ou vive num condomínio. É num casarão do Morumbi, bairro nobre de São Paulo, que a sua narrativa tem espaço. O núcleo familiar – filho, mãe e pai – é parte não propriamente do mundo burguês mais típico da classe proprietária brasileira mas, antes, são algo como uma zona de penumbra entre setores das ‘low upper classes’ e, se quiserem, as ‘high middle classes’. Em miúdos, ocupam o “lugar do meio” entre os ‘baixo-altos’ e os ‘alto-médios’ (digamos, enfim, que eles não têm condições de comprar helicópteros na Daslu, mas podem possuir uma casa de veraneio no Guarujá). Experimentados sociólogos críticos tais quais Wright Mills ou Pierre Bourdieu teriam algo de dificuldade em lidar com essa classificação social, haja vista que não se tratam de expoentes da Ivy League ou apreciadores de concertos de câmara. O filho não está a par da realeza britânica nem freqüenta a biblioteca dos pais. Na verdade, como veremos a seguir, o filho inclusive ressente-se da superioridade moral/intelectual da filha de Val. Talvez um outro sociólogo clássico, lá do Brás – filho de Maria Fernandes, ex-campesina, imigrante, portuguesa, analfabeta, empregada doméstica –, pudesse compreender melhor. Florestan Fernandes saberia reconhecer-lhes a futilidade, a iliteracia, até mesmo o parasitismo. (Noutra hora histórica/lugar social e Leon Trotsky não evitaria chamá-los “poeira humana.”)
Mas quem são? O filho é descrito desde a cena inicial, abertura do filme, tal qual é: um ser carente, emocionalmente frágil e, mais do que tudo, dependente (Michel Joelsas, d’O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, como Fabinho). A sua mãe, a patrôa de Val, é uma dondoca. É considerada uma “lançadora de tendências” – da mesma importância que já tiveram os “formadores de opinião” –, no campo da moda, capaz de pronunciar platitudes como “estilo é ser quem você é”. Narcisista, egocêntrica e, é claro!, vaidosa. O pai já não vive; se arrasta por aí. Herdeiro de uma fortuna, ex-artista plástico amateur, vegeta, em catatonia, bal-bu-ci-an-do – a meia-voz – palavras sem volição e divagando pela casa (pela vida) qual morto-vivo sem qualquer vestígio de finalidade essente ou aparente. Não fossem bebidas de refrigério e fármacos de psquiatria e quiçá não tivesse qualquer propósito (são, respectivamente, Karine Teles como Barbara e Lourenço Mutarelli como Carlos). O estar-juntos é algo como uma contingência arquitetônica; é quase um mal necessário. A família “almoça e janta junto tôdo dia/ nunca perde essa mania” (Titãs), mas é/são formadas por “pessoas da sala de jantar/ e, […]/ estão ocupadas em nascer… e morrer!”. (Os Mutantes).
Porém seria um erro buscar na “metanarrativa” (ou no “superobjetivo”) de QHEV – a “trama” ou o “desenlace” – a criteriosidade e a força que traz em si. O filme se mostra onde se esconde, fala alto quando cala fundo, e cresce, quando diminui. A vanguarda de cena, entorno à piscina – lá, verdadeiro prólogo – e a centralidade representacional da piscina, na composição do mis-en-scène são, desde qualquer ponto de vista, um achado. Os tempos mortos da longa jornada de Val, os rituais antropológicos das castas stacattas e o trânsito intrincado, entre o Social & o Serviço, são retratados com olhar de inquérito. Ali, onde se intende menos, logra-se mais. Não um tratado psicanalítico ou tese política, mas “talvez no tempo da delicadeza/ onde não diremos nada/ e nada aconteceu” (Chico). Mais que luta de classes no condomínio quiçá seja algo de «desassossego na cozinha». O servir à mesa ao patrão-varão – de imediato negado à própria prole-mulher –, o silenciar a lavagem de louça à cozinha para captação de som da equipe de vídeo à sala-de-estar, o que “pode”… e o que “não pode”. A eloqüência do não-dito; do inter-dito; do mal-dito. O sentimento de estrutura.
O estrangeirismo existencial qual proposta de abordagem – que roça a estranheza e beira o insólito – tem muito a ver com as realizações de Muylaert no cinema. São seus Durval Discos, É Proibido Fumar e E Além de Tudo Me Deixou Mudo o Violão a oficina de artesania fina ou os laboratórios de experimentação do material sensível. Mas é a primeira vez que a cineasta recoloca-se já tão proximamente às questões da experiência vivida e percebida pelos grupos sociais subalternos realmente existentes dentro do país. (O longa-metragem de thriller Chamada a Cobrar, 2012, quiçá tenha sido o seu prenúncio formal.) Nas entrevistas concedidas Brasil e mundo-afora, após os Prêmios – Sundance e Berlim –, e mesmo pós-indicação para concorrer ao Oscar Melhor Filme Estrangeiro em 2016, a artista parece ter uma mensagem clara a passar. Como disse ao jornal Brasil de Fato, o Brasil ainda é o país onde homens subordinam mulheres, os brancos subjugam a negros, os de cima pisoteiam os de baixo. Ela mesma não evita associar a tônica do filme a certa nova sensibilidade com relação às abissais contradições e antagonismos sociais do país. Nesse sentido, a fala da mãe, no filme – se invertido o signo, de entonação pejorativa –, “É, esse país está mudando mesmo!”, poderia ser atribuída à própria autora da narrativa mesma.
Muylaert escancarou o teor autobiográfico do assunto ao revelar que se baseou em sua própria vivência com a babá do primeiro filho (que, aliás, aparece como figurante). A perspectiva de type-casting – Regina Casé, no papel de Val – dá conta de uma série de questões. A cineasta pretendia escalar uma “mulher brasileira, do povo”, isto é, que trouxesse no próprio corpo marcas de enunciação de mulher, trabalhadora, não-branca. Além do mais, Casé vem não só com toda bagagem de Eu, Tu, Eles – onde interpreta a ‘mulher pobre do Nordeste’ – mas ainda de programas de TV com Hermano Viana e Guel Arraes. Ora, é justamente na colaboração criativa Casé-Viana-Arraes junto à Rede Globo de TV que se prolonga – e se transmuta (e decresce) – a herança e o legado da estética social do “nacional-popular” para fora e para além do que já foi, um dia, junto à visão de mundo “romântico-revolucionária”. Não será esse o espaço ou o tempo para aprofundar tal debate, mas tão-só gostaríamos de frisar aqui que esse projeto político artístico galvanizou uma série, a mais prolífica e talentosa, de artistas, intelectuais e técnicos afeitos à criação cultural no país. É impossível entender a gênese e o devir da indústria cultural brasileira sem considerar a verdadeira ‘aliança histórica’ entre setores próximos à gravitação envolta ao PCB, grandes empresários da comunicação de massas e o próprio Estado central. (vide, p.ex., Intelectuais Partidos: os comunistas e as mídias no Brasil.)
O que o sociólogo da cultura Marcelo Ridenti chamou de “Brasilidade Revolucionária” nasceu de coordenadas sociais que remetem à ascensão e queda da ditadura empresarial-militar brasileira. Dramaturgos tal Vianinha – e Gianfracesco Guarnieri –, atores como Lima Duarte e Othon Bastos, poetas qual Ferreira Gullar e Vinicius de Moraes, músicos do calibre de Chico Buarque ou Caetano Veloso, cineastas do timbre de Leon Hirszman ou Glauber Rocha, intérpretes da magnitude de Elis Regina e Maria Bethânia, só podem ser efetivamente contextualizados a partir dessa chave explicativa. Pois bem. Uma das hipóteses diretivas é que a estética social contida em QHEV descende dessa linhagem. O «ir ao povo» – dessa intelligentzia radical –, já esmaecida a sua pulsão plebeia mais dinâmica e vibrante, reconverteu-se numa dialética rarefeita apropriada e ressignificada pela indústria cultural do país. Num país em que Luiz Inácio e Dilma Rousseff alçaram-se à Presidência da República, e Gilberto Gil e Juca Ferreira, ao Ministério da Cultura, há que se lançar uma mirada algo menos circunstancial sobre o que QHEV vem a ser, já de fato e/ou de direito.
Um projeto político (e uma estética social) mais ou menos consciente, mais ou menos organizado, inclusive para além das próprias motivações ou intenções da autora. A “ideologia” e a “política” – parafraseando o crítico trotskista irlandês Terry Eagleton – não tal qual sistema de crenças e valores autoconsciente, bem-articulado, em acepção «logocêntrica». Mas o conjunto de dimensões afetivo-inconscientes, mítico-simbólicas, maneira de ver que se reconstitui em relações vividas, aparentemente espontâneas, dos sujeitos para com as estruturas de poder e soprando um ‘aroma sutil’ à própria cotidianidade. Um “discurso” ou “ato” algo primariamente performático ou retórico não significa que seja desprovisto de algum conteúdo propositivo ou que, as proposições efetivas, que chega a fazer – inclusive morais e normativas –, não possam ser avaliadas junto a critérios clássicos de verdade e falsidade. Em termos de projeto intelectual e formação cultural trata-se justamente dum limiar de consciência possível afeito ao colaboracionismo de classe que redundará em progressismo social, reformismo político, gradualismo econômico e hibridização cultural tout court. O que dá nome a tudo isso é o início do fim do chamado programa democrático-popular. Uma fantasmagoria que persegue a esquerda intelectual e política brasileira há mais de cinqüenta anos a fio. A ideia (e a imagem), sintetizando algo brutalmente, de que “estamos todos juntos”. (Mas se estamos todos juntos, afinal, “contra quem vamos lutar”?) É esse, sem tirar nem por, o programa ideal da frente popular no país.
Os enquadramentos (um algo) descentrados, uma câmera (nem sempre) subjetiva e a interpretação mesma de personagens seria todo um filão de análise. (Como se constrói, por exemplo, o ponto de vista de Val? Quem detém, enfim, a narrativa da estória?) Mas antes de irmos à Val, vamos à Jéssica, sua filha (interpretada de modo épico pela excelente Camila Márdila que superou ninguém menos que Nicole Kidman em Sundance). Barbara aceita o pernoite de Jéssica por alguns dias no casarão, filha de Val, para que possa prestar o exame vestibular. A concessão vem pareada com esse lugar-comum brasileiro – extremamente patriarcal e obsequioso – sobre ser “praticamente da família”. A chegada de Jéssica irá cumprir função análoga à de Terence Stamp, em Teorema de Pier Pasolini (1968, Itália), ou Nick Nolte, em Down and Out in Beverly Hills de Paul Mazursky (1986, Estados Unidos). O não-dito vai ser explicitado, o não-lugar vai tomar assento à mesa e a porta do bem-dizer/bem-agir será escancarada pelos ares da contestação. Jéssica seria “estranha”? É “segura demais”? Já desde o começo nos damos conta de que há algo, decisivamente, fora de lugar.
O patético flerte de Carlos, e o ódio classista de Bárbara, são parte de uma ordem em que a “demora cultural” e o “dilema social” se impõe. O que leva uma lufada de ar fresco à triste arquitetônica senhorial e arcaízante – desgraçadamente, passada, mas não ultra-passada – é aquilo o que um certo Florestan chamou de “orgulho selvagem” dos debaixo. Não vergar a espinha, não olhar para o chão, não baixar a voz e não se resignar. Jéssica é o melhor que tem a nos oferecer a diretora/escritora. De alguma forma e em alguma medida é através de Jéssica que QHEV apresenta-se perante o público nacional e internacional. É com a vanguarda modernista de Oscar Niemayer e Jorge Machado Moreira – arquitetos e urbanistas comunistas, da esfera pública proletária – que Jéssica irá se identificar. Os traços radicais do Edifício COPAN e o Prédio da FAU – me ocorre ainda a Sede do MASP, e Lina Bo Bardi, como parte do mesmo projeto de socialização de cultura e política em São Paulo – fundem uma ética e uma estética ao mesmo tempo que recusam uma cosmética e uma etiqueta para a construção de uma ordem em que todos quartinhos sejam demolidos. Se esse discurso residual (quase “canção incidental”) assumisse a sua visibilidade de corpo inteiro em tela e, certamente, todo o filme teria “uma outra cara”. Mas o preço que a virtude paga ao vício nesse filme não seria justamente a incessante oscilação entre “qual cara” – a de Val?, a de Jéssica? – a obra se dispõe, sem uma solução de continuidade, a personificar? (É a própria Jéssica a afirmar a arquitetura tal qual “um instrumento de mudança social”.)
David Graeber, antropólogo social do trabalho anarcossindicalista, já afirmou que as classes trabalhadoras são aquelas que “se importam”. Tivesse realizado pesquisa de campo no Brasil e ficaria, com certeza, abismado. A verdade nua e crua é que os setores médios (quê dizer da classe dominante?) não fazem, absolutamente, nada. Zero. Sequer são capazes, como mostra o filme logo de chofre, de repor a água na forminha de gelo de volta ao congelador. Mas o cuidado e a atenção dos debaixo com os andares acima da pirâmide social brasileira não se limita à reprodução material da existência. O mapa dos afetos de Fabinho reconhece em Val todo um continente da efetiva maternidade social do qual Bárbara, a mãe biológica, não é mais do que uma ilhota. Há motivo para isso. Por um lado, a mãe do Morumbi não chega aos pés de sua mainha recifense no zelo, no trato e, mais que tudo, no espectro da humanidade. Nos momentos de candura e sutileza até a atuação de Casé se eleva. Por outro, a relação mesma de maternidade/paternidade – enquanto processo histórico que nada tem de “natural” – implica aquilo que está a todo momento no centro nevrálgico da própria narrativa: tempo de trabalho socialmente necessário. (A vinculação afetiva, como tôdo o mais na vida, é algo que se faz e refaz na vida vivida.) E por falar em atuação o filme demonstra a validez da velha máxima das artes dramatúrgicas: não existe papel menor. A ponta realizada pela experimentada atriz brechtiana Helena Albergaria no longa é baita bálsamo, em beleza e dignidade, no decorrer da contracenação com a protagonista. Basta, muitas vezes, um olhar. Ou mesmo um gesto. Por que diabos não podemos ver mais – e melhor – das aventuras e desventuras do teatro de grupo, seja nas telonas ou na telinha?
A construção dos fundamentos de Barbara e Carlos passa pelos personagens-tipo. Caricatural que seja, a representação destes estratos médios da sociedade brasileira, curiosamente, nunca induz ao riso. Nem a matéria negativa, melodramática, da vilã rocambolesca em Barbara e nem a tibieza ostensiva, de causar “vergonha alheia”, do algo neurastênico Carlos. Quando se cristaliza nos cânones arquetípicos e na forma convencional quem perde é a narrativa dramatúrgica, porque cristaliza preguiçosamente o olhar do público, reconduzindo-o à “catarse” – ou ao “desarmamento dos espíritos” – naquilo que já se conhece. (Meu caro amigo Lucas Martins, arguto observador, chamou-me a atenção para outra hipótese: o super-realismo não-fantástico como recurso da arte para mimetizar a vida na construção das personagens “de cima”, isto é, no Brasil seria preciso avacalhar muito o significante para se aproximar um pouco mais do significado. Leia aqui a entrevista do “sindicato dos patrões”.) Depois, enfim, do que se ri a plateia paulistana e carioca? Do que se ri o público curitibano ou porto-alegrense? Na verdade, por diferentes razões. Parte da audiência não admite quem não aceita a ordem social com a qual esta se identifica e, junto a ela, todas suas respectivas distinções culturais. Detesta seus maus modos – de ser, de vestir, de pentear, de falar, de pensar e de agir – e não se apoquenta nem um pouco em manifestar seu ódio o mais desabrido. Quem não cala ou consente não sabe se portar; são gentuça feia; plebe rude; zé-povinho. Será o Sul zombeteando o Norte e a pilhéria dos sudestinos face aos nordestinos? Nem sempre. Há quem se ria da cena da madame atropelada ou da Val despudoradamente alegre, pós-vestibular. A verve irônico-satírica pode ser subversiva. Tem potencial sim – e muito! – para ser uma arma da crítica.
Mas qual riso? Os Sobrados se riem dos Mucambos? Os Mucambos se riem dos Sobrados? Não. A divisão social da plateia não chegou (ainda) a esse enfrentamento cultural semiaberto como tem sido os rolezinhos em shopping-centers ou a recente democratização do acesso a alguns aeroportos do Brasil. A grande maioria ri da interpretação algo histriônica, e já para nada nada descozida, de Casé. Muito longe das texturas de Doméstica (Gabriel Mascaro, Brasil, 2012) ou da cor de The Help (Tate Taylor, Estados Unidos, 2011), o trabalho da atriz-apresentadora – e, hoje, show-woman – às vezes muito se assemelha a como os negros eram interpretados por brancos “Blackface“, com perucas e lábios postiços. Seu acento regional sôa quase a sotaque estrangeiro a alguns ouvidos, sensíveis, de Alphaville ou Copacabana. Mas a atriz-comediante Regina Casé vem já de longe no showbizz nacional. Participou, mesmo, de momentos altos (e baixos, muito baixos) da cultura brasileira. (Não podemos nos esquecer, para citar só um exemplo, que foi Casé quem fez a mediação entre a política das UPPs à la Caveirão e as comunidades das favelas do Rio de Janeiro em macabro espetáculo televisivo global. É como a figura do pelêgo sindical elevado à enésima potência de um dos sistemas de radiodifusão mais poderosos do mundo!) Curioso. Muito curioso, aliás. Até mesmo quando no registro sério-dramático ouve-se, às fartas gargalhadas, parte do público das telas. Será um riso nervoso? Autocrítico? Reflexivo? O dissenso e a contestação ainda não seriam sons reconhecíveis ao redor do cinema brasileiro? Ou haveriam também gargalhadas de empatia e identidade para com Val quando essa já cautelosamente se arrisca molhar-se na piscina? Será o riso do outro? Rir pode não ser sempre o melhor remédio mas, certamente, é o mais barato – e engraçado – disponível na praça. As maneiras de ver – e as formas de emocionar – importam muito. Por isso mesmo não é uma questão menor nos perguntarmos quem se ri e quem se incomoda. Ou quem se comove e quem se enerva. Como? Quando? Onde? Por quê?
O espectro do colonial-escravismo (bem como da ditadura empresarial-militar) nem assombra nem é exorcizado desde/quando a divisa do transformismo neolampedusiano – a revolução passiva ‘à brasileira’ – reproduz a moderna escravidão salarial à ordem do dia: “é preciso que tudo se transforme para se manter tal qual está.” O pacto social conservador de que nos falava Florestan Fernandes segue atual e vigente. O desfecho do filme é uma fantasia compensatória, com viés salvacionista. A solução-demissão para cuidar da filha – e da neta –, redimindo o “abandono” da bebê Jéssica que a vovó Val deixara, não parece se importar com o porvir. E a ex-babá sexagenária? Encontrará um novo emprego? A recém-ingressante em Arquitetura, já na USP, poderá seguir seus estudos tranqüilamente? Nada disso parece importar. O riso largo dá lugar à ampla comoção. Palmas. Lágrimas. Fim. Tudo estará bem quando terminar bem? Será a vida misto incompreensível de som e fúria? Não se sabe. O filme parece-se, por sua vez, a uma grande “frente ampla” de encontros improváveis. Helena Albergaria, Cia. do Latão, contracena com Casé, Rede Globo. O multiinstrumentista Theo Werneck + o escritor Lourenço Mutarelli. As equipes de Castelo Rá-Tim-Bum/O Mundo da Lua, da TV Cultura, congraçam-se com produtores multinacionais, da Globofilmes. A fricção acaba por gerar, para todos os lados que aponta, algo de faísca.
Há certo acúmulo gerado na literatura, no cinema e (algo menos) na televisão que indiciam a representação do subalterno no interior de uma hegemonia do consenso restrito + coerção ampliada. A biruta dos novos ventos parece indiciar que as estratégias dominantes de acumulação de capital no país são como “um sistema topológico de centro móvel” – nas palavras de Perry Anderson – transitando da exploração do trabalho barato (e consenso restrito) para a espoliação de direitos sociais (e coerção ampliada). Trata-se da transcriação estético-social de um modelo de acumulação político-econômica em crise. Tropa de Elite, Avenida Brasil e Cidade de Deus ao lado de Brasil Legal, Muvuca e Esquenta. Telenovelas, crônicas, filmes documentários. Há uma nova expectativa, e mesmo uma demanda renovada, por ‘novas’ figurações dos de baixo. As faíscas que se despregam de QHEV são tanto de pessoas comuns que se reconhecem nos esforços de Val e Jéssica quanto de quem estranha os seus modos de ser. De alguma forma e em alguma medida podemos esperar que um filme como esse seja o registro tardio de um minimalista novo senso comum que considera a ampliação dos direitos sociais do trabalho, positivamente, e o preconceito lingüístico, regional, de cor – e de classe –, negativamente. Mas tanto social quanto esteticamente não deixa de ser a linha de menor resistência. O pacto histórico de colaboracionismo de classe – a apaziguar consciências e mitigar contradições – aparece qual o horizonte possibilista, aparentemente insuperável, no limite e domínio de QHEV. O descompasso de que falávamos, no início do texto, agora é algo como a virtude dum vício.
O fatalismo dos fracos pode ser imagem-consenso da massa trabalhadora, um ato de fé, semelhante à religião dos subalternos. Nessa condição, é uma vontade coletiva. Mas já quando passa a ser ideia-força, ou projeto da intelectualidade (e dos artistas) que pretende se ligar ao povo-nação, pode, daí, se tornar um obstáculo para que as classes oprimidas e combatentes assumam uma função dirigente e responsável no caminho de sua própria autodeterminação. O duo Val-Jéssica também pode ser traduzido tal o esforço individual da diretora, mãe e mulher Anna Muylaert sobressair-se face ao domínio masculino nos bastidores dos cinemas brasileiros. Nesse sentido não deixa de ser sintomal a notícia de que nomes do mesmo cinema pernambucano referenciado nesse texto forneçam o con-texto do ambiente machista que corresponde à realidade da produção cinematográfica. O Cinema da Fundação Joaquim Nabuco – reduto de cinéfilos recifense – baniu por um ano os diretores Cláudio Assis (“Febre do Rato”) e Lírio Ferreira (“Baile Perfumado”) por atitudes ostensivamente machistas (e homofóbicas) que retiravam a palavra da artista. Assumir radicalmente a possibilidade efetiva de fala do subalterno, mais do que um ato mental e individual, se trata de um ato histórico e coletivo. A ruptura total com os fantasmas do «possibilismo» pode ser algo como um ensaio geral de trans/form/ação social e política. Mas a magnitude de uma tarefa como essa – atual e vigente – não pode ser transferida da vida à arte. A ativação simbólica da luta de classes só pode, quando muito, ser pré-texto.
«Que Horas Ela Volta?», o filme, deve, realmente, propiciar as mais variadas considerações. A identificação com o governismo e uma (tímida) resposta à ofensiva reacionária? O limite do lulismo ao não reverter (minimamente) a relação entre senhores e escravos? E ainda uma série de outras mais. Certamente está longe de desestabilizar, cutucar e alvoroçar como fazem filmes do escopo de Cronicamente Inviável (Sergio Bianchi), O Invasor (Beto Brant) ou mesmo o mais recente Trabalhar Cansa (Juliana Rojas e Marco Dutra). Mas, ao que parece, e com todas as contradições – formais e substantivas – que comporta, não deixa de ser uma espécie de sismógrafo dos tremores de terra que ainda estão por vir. O muito heterogêneo grupo de artistas/intelectuais reunidos entorno a esse projeto estará se dispondo a uma renúncia, ainda que embrionária e molecular, ao intimismo “à sombra do poder” e à evasão da “grande política”? Ou tratar-se-á de nada mais do que faíscas de ocasião? Ainda é cedo para responder. O que já podemos saber com certeza é que o cinema brasileiro, apesar de tudo, se move. Se é verdade que o filme trouxe grandes fórmulas desgastadas, também o é que avançou pequenas novas conquistas. Uma delas não deixa de se expressar a partir do próprio título. A dura realidade é que para milhões de brasileiros, atualmente, uma resposta coletiva (e não-fatalista) para a opressão e a exploração, na forma e sentido em que se apresentam no tempo de agora, não parece uma perspectiva realista. Arriscar o próprio pescoço e estender a mão para o lado muitas vezes é substituído por agachar-se e cavar sobre os próprios pés. Nesse contexto defensivo, modestas vitórias e saídas individuais não são mais do que se pode esperar de um cinema não-modernista; não-revolucionário. A “iniciativa da luta”, de que nos conta os já citados Cadernos do Cárcere, está como ausente das telas (e fora delas também). Afinal de contas, “que horas ela volta”?
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