Alberto Alonso Muñoz |
A esquerda brasileira vem vivendo, nas últimas décadas, mas mais acirradamente no último ano, sob efeito de prestidigitação. O truque de um mágico, todos sabemos disso, consiste em desviar o olhar, a atenção do público (no nosso caso, o campo da esquerda), enquanto realiza seus movimentos para embaralhar aparência e realidade. Enquanto o mágico faz olhar para a mão esquerda, é a mão direita que esconde a moeda entre os dedos.
A questão que é preciso enfrentar, com sinceridade, é: estamos diante de um governo realmente de esquerda, ou apenas nominalmente? A pergunta é essencial para desmontarmos o truque de prestidigitação armado pelo capital (especialmente a fração financeira da burguesia, mas também o capital ligado à indústria agrária, que responde pelo nome elegante de “agronegócio”, e a indústria extrativista, especialmente a mineração, todas devidamente “internacionalizadas”). Não há quem na esquerda — exceção ao governo, mas o governo é realmente de esquerda —, qualquer que seja o matiz de vermelho, não se tenha incomodado com Gilberto Kassab ou Kátia Abreu, ou com um funcionário do Banco Bradesco denominado Joaquim Levy. Ou com este último negociando pesadamente, em nome do governo, não só um ajuste fiscal em tempos de recessão, mas, para desespero de todos, a inclusão no projeto de terceirização de uma cláusula garantindo o aumento da arrecadação tributária (mal menor, diante do inevitável, vão dizer alguns). Ou que tenha alterado a legislação previdenciária para restringir ou excluir pensões, alterar a idade de aposentadoria ou reduzir, em tempos de crise econômica “como nunca antes neste país”, a duração do seguro desemprego. Ou esteja negociando, “bravamente”, a alteração do conceito de trabalho escravo, para alcançar, mais uma vez, um “mal menor”: o “possível diante das circunstâncias”, o “consenso” que contemple “todos os interesses envolvidos”. Que tenha privatizado infraestrutura aeroportuária, portos, “concessionado” (expressão da ministra Kátia Abreu) ferrovias e rodovias, aberto o capital de empresas estatais (sensíveis à privatização direta), como a Caixa Econômica Federal ou o Banco do Brasil, ou a BR Distribuidora, ou, mais recentemente, iniciado o leilão de campos de petróleo do pré-sal. Necessária a privatização “a quente” dos tempos trágicos de FHC? O O capital aprendeu como fazê-lo evitando manifestações ou guerra de liminares. Finalmente, para quem não estiver convencido ainda, e repetir a cantilena do “inevitável” (que o neoliberalismo, de Thatcher a FHC, tomou como sua única e insuportavelmente monótona melodia), responda ao projeto de lei antiterrorismo: iniciativa da Presidência da República (sim, iniciativa do Planalto: não pertence à pauta-bomba de Eduardo Cunha), projeto a serviço do controle internacional de fluxos de capital financeiro que servirá, agora não há mais resposta possível, para o controle e criminalização de qualquer movimento social ou manifestação, bem “a quente”.
Mas, alguém pode responder, a alternativa é então a oposição? Essa pergunta revela o truque! Como “tudo sempre poderá ser pior” (em quê?), o governo implora insistentemente à esquerda, à esquerda mobilizada em frentes, atos e manifestações nas ruas, o apoio contra “o golpe”, contra “a banalização do instituto do impeachment”, o campo popular cai nas rédeas dessa ilusão e oferece seu apoio, deixando as diferenças e divergências para serem acertadas em algum momento futuro.
Pois esse é o quadro que a burguesia pediu a Deus (ou talvez mais precisamente ao demônio, para quem acreditar em qualquer um dos dois). Um governo não só no conteúdo, mas também burguês na aparência teria de bater-se com a oposição popular nas ruas para implementar seu programa político. Seria obrigado a enfrentar, como nos gloriosos anos FHC, a resistência de petroleiros (como na corajosa greve de 1995), dos sindicatos verdadeiramente mobilizados contra as diversas formas de privatização, escondida ou explícita, movimentos sociais contra projetos de lei ignominiosos, e mesmo, a partir do novo fenômeno social nascido em 2013, jovens autonomistas articulados em redes horizontais. Posto o espantalho do “golpe” diante da esquerda, o temor desloca a atenção do observador vermelho que, apavorado com a alternativa, permanentemente empresta sua (des)mobilização em favor do governo, que toma então o rumo da direita.
Para a burguesia, o emparedamento sistemático do governo, ameaçado de “golpe”, é o melhor dos mundos. Obrigando-o a encampar o projeto econômico-social do capital, com pequenas e irrelevantes concessões, ganha dos dois lados. De um lado, neutraliza a luta social organizada (desorganizando-a e colocando-a a seu serviço), que exigiria, no caso de um governo francamente de direita, ou negociação, ou repressão direta (mais provavelmente esta última). De outro lado, implementa com a “mão invisível” (que a mídia ajuda a esconder, exceto, talvez, o bom Valor Econômico, o jornal da burguesia para a burguesia) um projeto que lhe é exigido e cumpre fielmente, “em nome do mal menor e da governabilidade”.
Fecha-se a ilusão e o cerco com a tradução do “golpe” numa linguagem ética e jurídica (o conceito weberiano vulgarizado da “legitimidade”). Inconstitucional, ilegal, ilegítimo: juristas e intelectuais, dentre as melhores cabeças pensantes do campo da esquerda (sem nenhuma ironia da minha parte), ofuscados pelo fetichismo da política e pela aparência do processo (cuja essência são incapazes de perceber), mobilizam-se na construção de um discurso que, como o vento, não protege de obuses. Um parecer de um jurista, por mais admiravelmente fundamentado que o seja, vale tanto quanto uma leve brisa diante do processo histórico. Colabora, no máximo, para construir um discurso ideológico contra-hegemônico que pode, talvez, guiar ações. Porém, nada mais.
Não há risco, então? — responde-se. A extrema-direita não tomou a Câmara? Jovens e não tão jovens não vêm sendo seviciados nas ruas a socos e cacetadas desde 2013 pela polícia e por milícias fascistas? Não há a menor dúvida, como chamou a atenção Paulo Arantes no Ato Público contra o golpe na Faculdade de Direito da USP, de que estamos diante de um episódio de algo muito, muito maior e catastrófico, de que só teremos plena consciência daqui a algum tempo. A maré veio com força, com a extrema-direita só não vencendo na França por conta do desenho institucional do sistema eleitoral francês. Os EUA nos presentearão em breve com um dos governos mais acachapantemente conservadores de todos os tempos. A América do Sul acompanha o movimento da lua nova. E isso se observarmos apenas o plano político. No social e econômico, a catástrofe já está instalada há tempos.
Então, não estamos diante de um momento de risco? Mas este é o segundo truque, que na verdade tem a mesma forma. A aparência é de um governo que está heroicamente servindo de barragem de contenção (Mariana que o diga) ao avanço da lama, no Congresso e nas ruas. Aparência. Voltemos à análise do conteúdo deste governo, cuja hora da verdade virá no exato momento em que o impeachment for “derrotado”. Neste momento, a promissória assinada com o capital será ferozmente cobrada. Ferozmente cobrada no campo econômico e político. Mas também, e especialmente, no campo social: nas ruas.
Pois é neste momento que a esquerda tradicional, mobilizada em frentes e atos, sem entender nada, se perguntará: como isso foi possível? Como foi possível que nós, que sustentamos esse governo em seus piores momentos, redigimos manifestos, articulamos atos, fomos à rua, estejamos agora sendo os primeiros a submeter-se ao sacrifício na pia expiatória? E haverá aqueles que responsabilizarão o “radicalismo de certos setores” pela repressão (que virá como nunca), justamente aqueles que, nas ruas, esperavam ingenuamente que a timoneira voltasse o leme totalmente à esquerda. Às vésperas das Olimpíadas, então, e num contexto socioeconômico de catástrofe social, espere-se pelo pior. Necessário tomar medidas enérgicas contra os “excessos” de alguns — eis o discurso, preparemo-nos. Especialmente contra esses que constituem os “grupelhos” da “extrema esquerda”: alcunha que nos é conferida desde que o projeto “neodesenvolvimentista”, segundo alguns, foi ressuscitado pela “esquerda” sagaz e responsável a partir de 2003, e que em breve valerá para todos, de estudantes que ocupam escolas aos sindicatos que lutam realmente (e não só os que o fazem nominalmente) contra a precarização dos últimos direitos socio-trabalhistas que restaram.
O capital, sentado ao lado do mágico que continua a encenar seu espetáculo aos espectadores desconcertados, conservará, muito satisfeito e irônico, seu sorriso. Enquanto isso, a repressão correrá à solta, em tempos de tensão social e recessão “como nunca antes neste país”.
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