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Não é sobre terrorismo, é sobre o genocídio! A questão palestina e a esquerda brasileira.

Gaza Times

Rejane Hoeveler

Rejane Carolina Hoeveler é historiadora. Mestra e doutora em História Social pela UFF (Universidade Federal Fluminense). Co-organizadora do livro A onda Conservadora: ensaios sobre os atuais tempos sombrios no Brasil (Rio de Janeiro, Mauad, 2016). Atualmente é pós-doutoranda em Serviço Social pela UFAL (Universidade Federal de Alagoas).

“[…] Hoje, meu corpo foi um massacre televisionado que teve que caber em frases de efeito e limites de palavras
E emocione aqueles que são insensíveis a sangue terrorista.
Mas eles sentiram pena.
Sentiram pela pelo gado em Gaza.
Então eu dei a eles as resoluções da ONU e estatísticas e nós condenamos e nós lamentamos e nós rejeitamos.
E estes não são dois lados iguais: ocupador e ocupado […]”
Trecho do poema We teach life, sir (Nós ensinamos a vida, senhor), de Rafeef Ziadah

Nos últimos anos, para qualquer pessoa de esquerda no Brasil, quando se buscava argumentar sobre o retrocesso que representaria o impeachment de Dilma Rousseff, sobre o caráter antipopular das medidas de Michel Temer, ou sobre o perigo para a democracia da eleição de Jair Bolsonaro, era inevitável escutar o clássico: “mas e a corrupção do PT, hein”?

Hoje, em meio ao genocídio chamado de guerra que vemos na Palestina, parece que “e o Hamas?” é o novo “E o PT?”, e setores da esquerda brasileira permanecem politicamente inertes. É preciso buscar as razões para isso.

O líder ultradireitista Benjamin Netanyahu vinha enfrentando nos últimos meses grandes protestos por sua reforma autoritária no Judiciário. Por outro lado, é apoiado por uma base fascistizante, ou protofascista, que defende ativamente o extermínio dos palestinos, e que dialoga com a torrente islamofóbica na Europa e nos Estados Unidos, onde a ultradireita associa ao suposto “terrorismo nato” dos islâmicos suas propostas de restrição total da entrada de novos imigrantes do mundo árabe. Não faltam provas de que Israel é um Estado de apartheid. São aterradoras as imagens de soldados israelenses comemorando junto com “civis inocentes” o morticínio infantil palestino. Nos últimos anos, “manifestações” clamando “morte aos árabes” e “o Profeta está morto” ocorreram em várias cidades de Israel.

Além disso, perante todo o segredo militar e a histórica ação do serviço secreto israelense, junto com a CIA, o que nos garante que Israel não esteja por trás das próprias mortes de israelenses? Existem algumas dúvidas nesse sentido que talvez jamais serão respondidas de forma adequada a não ser por uma investigação internacional independente, algo que hoje está longe do horizonte, mas que deveria estar sendo pautada.

Outra questão relevante é que, uma estratégia que priorizasse o resgate de reféns não poderia incluir bombardeios incessantes por horas e dias em lugares onde os civis israelenses podem estar. Isso mostra cabalmente que Israel não está preocupada com seus reféns, e sim com promover uma segunda Nakba e a “solução final” para o “problema” palestino.

Lina Attala, em texto traduzido por Matheus Forli, chama atenção para uma razão muito forte a sustentar a necessidade de tal violenta propaganda de guerra por parte de Israel. A chamada “solução do Sinai” não fica devendo à “solução final” nazista:

“No dia 24 de outubro, um documento vazado do gabinete da Ministra de Inteligência israelense, Gila Gamliel, indicava que uma solução duradoura para a Faixa de Gaza no pós-guerra teria de incluir a transferência dos palestinos para o Sinai, no Egito. De acordo com o documento obtido pelo site de notícias israelense Calcalist, a transferência incluiria três passos: a criação de cidades de tendas no Sinai, formação de um corredor humanitário e a construção de cidades no Norte do Sinai para os novos refugiados. Além disso, seria criada no Egito, a sul da fronteira com Israel, “uma zona estéril” com vários quilômetros de largura para impedir o regresso dos palestinos.”

Diante de todos esses elementos, e sem desprezar o peso dos ataques do Hamas em 08 de outubro, que certamente unificou os israelenses na defesa da guerra e também causou suficiente comoção mundial para que fosse aprovado seu “direito de defesa”, Israel mobilizou todo seu aparato político internacional e convocou não apenas soldados, mas também embaixadores informais os quais curiosamente sempre são direita.

O ponto é, voltando a uma conhecida estratégia bolsonarista sobre o PT no Brasil contemporâneo, apenas para dar um exemplo, a posição discursiva que propõe em primeiro lugar uma negativa defensiva sobre “terrorismo” ou “Hamas” parece tornar-se tão irrelevante do ponto de vista de sua funcionalidade política quanto, nos idos de 2017 e 2018, dizer que o problema central do Brasil não era corrupção do PT. Isso porque já estávamos diante de pessoas cada vez mais insensibilizadas com as diversas violências, físicas e simbólicas, praticadas e/ou incentivadas pelo bolsonarismo, como a violência contra a mulher, o racismo e a violência heteronormativa (vidas que parecem valer menos do que as do “cidadão de bem”). Foi isso que possibilitou a vitória do bolsonarismo nas urnas em 2018. As vidas palestinas importam? Como escapar a um terreno ideológico no qual já estamos absolutamente derrotados se entrarmos, por exemplo caindo em um uso acrítico do termo “terrorismo”? Temos alguns exemplos propositivos.

Em uma entrevista que se tornou viral, o médico e humorista Bassem Yousseff deu um belo exemplo de como não entrar nos termos do jornalista britânico pró-Israel Piers Morgan. Em determinado momento da entrevista, ele afirma: “sim, eu sei que você vai me perguntar se eu condeno os ataques do Hamas e eu os condeno, eu os condeno, eu os condeno. Mas vamos imaginar um mundo sem Hamas, como seria? Bem, na Cisjordânia não há Hamas, entretanto somente desde agosto de 2023, muito antes dos ataques de início de outubro, pelo menos 37 crianças palestinas haviam sido assassinadas por Israel”.

O sarcasmo de Yousseff desnudou a hipocrisia da mídia global, e o sucesso de sua argumentação esteve na recusa de determinadas premissas. A mesma tática foi utilizada por inúmeros comunicadores, jornalistas e artistas ligados à causa palestina, produzindo importante impacto na esquerda global, e tirando da letargia milhares de pessoas que passaram a ocupar massivamente as ruas de Nova York, Chicago, Londres, Paris – em vários países cujos governos praticam cumplicidades ativas ou passivas com o genocídio em curso. Nas palavras de Yousseff:

“Israel sempre se vitimiza, mas eu nunca vi uma vítima colocando seu agressor em uma prisão 24 horas por dia, 7 dias por semana. Eles querem nos fazer acreditar que eles são as vítimas? É como ter uma relação com um psicopata narcisista que te f*de e faz você pensar que é sua culpa. Eles querem que acreditemos que eles são Superman, mas na verdade eles são Homelander…”

Em outro vídeo que circulou nas redes sociais nos últimos dias, Norman Finkelstein, cientista político judeu e filho de sobreviventes do Holocausto, escritor de inúmeros livros sobre a questão Israel e Palestina, questiona:

“Realmente surpreende vocês? É realmente um choque que alguns dias atrás, as pessoas de Gaza, a maioria delas nascida ali, naquele campo de concentração, realmente choca alguém que eles fariam algo desesperado para serem libertados daquele campo de concentração? E como vou ousar criticar quaisquer táticas que eles empregam? Eu não estou aprovando, mas também não estou desaprovando. Porque eu não sei o que eu faria se eu nascesse em um campo de concentração e passasse mais de vinte anos de minha vida nele.”

Como afirmou Gilbert Achcar, em texto traduzido por Carolina Freitas e publicado no EOL no dia 20 de outubro:

“Alguns dos atos cometidos pelos combatentes do Hamas durante a Operação Enchente de Al-Aqsa foram terroristas? Se o terrorismo significa o assassinato deliberado de pessoas desarmadas, sem dúvida foram. Mas depois, o assassinato deliberado de milhares e milhares de civis de Gaza ao longo dos últimos dezessete anos – desde 2006, apenas alguns meses depois de Israel ter evacuado a Faixa de Gaza para controlá-la a partir do exterior, na crença de que o custo seria menor do que controlá-la por dentro – também é terrorismo. Na verdade, o terrorismo de Estado causou muito mais vítimas na história do que o terrorismo de grupos não estatais. Da mesma forma, alguns dos atos cometidos pelos combatentes do Hamas foram atos bárbaros? Sem dúvida, mas não é menos indubitável que fizeram parte de um choque de barbáries.”

O governo Lula representando o Brasil está cumprindo um papel relevante e progressivo na arena diplomática global, conseguindo demonstrar o isolamento de Estados Unidos e Israel de maneira cabal, ainda que pudesse ir muito além, seguindo o exemplo de Gustavo Petro, presidente da Colômbia, que rompeu relações com Israel. É urgente começar o Boicote a Israel desde baixo, pressionando Lula nesse sentido.

É preciso também estar atento aos desdobramentos de investigações como aquela que envolve o uso do criminoso software israelense FirstMile, em um dos maiores escândalos recentemente revelados em torno da ABIN do GSI (Gabinete de Segurança Nacional) durante o mandato de Bolsonaro. Isso diz muito sobre como a tecnologia bélica israelense está a serviço das classes dominantes de todo o mundo, e as armas e treinamentos militares tornam esse país um suporte da dominação imperialista e de classes em todo o mundo. É preciso boicotar especialmente produtos de uso policial e militar provenientes de Israel, bem como de treinamento militar. Se o próprio Lula afirma ser um apartheid, é preciso levar isso às últimas consequências, colocando em prática o quanto antes o BDS, Boicote, Desinvestimento e Sanções.

Em síntese, é uma ilusão pensar que condenar o terrorismo palestino vai ser suficiente para sensibilizar olhos e ouvidos profundamente doutrinados para enxergar essas vidas como menos importantes. O receio de ser taxado de antissemita, e as lágrimas de crocodilo, como diz Finkelstein, daqueles que se utilizam do passado do Holocausto contra os judeus para justificar as ações de Israel, não podem constranger aquilo que deveria ser neste momento uma resposta à altura dos acontecimentos. É lamentável que setores da esquerda consigam estar à direita até mesmo da ONU, que não considera o Hamas um grupo terrorista.

Muito mais importante do que condenar “o terrorismo do Hamas”, no atual contexto do “Evangelistão” brasileiro, seria por exemplo explicar que Israel não aceita Jesus Cristo, e que inclusive existem episódios recorrentes de perseguição a cristãos e a judeus que são contra o Estado de Israel. Explicar que a Israel que está em guerra não é exatamente a Israel da Bíblia, e assim por diante. Informações básicas que se perdem enquanto estivermos presos às chantagens de guerra de Israel. Uma correlação de forças desfavorável não pode ser motivo para justificar o recuo de posições históricas, pois recuar permanentemente é convidar o inimigo a avançar.

Finalizo com as palavras de Sadia Khan:

“Eu vou condenar o Hamas quando Piers Morgan condene Israel. Que tal isso? Eu o farei quando Jordan Petersen condenar o bombardeio de escolas, e hospitais, e ambulâncias. Eu condenarei o Hamas quando Ben Shapiro condenar as pessoas que estão usando imagens falsas para dizer que o Hamas está matando bebês e crianças quando são eles que estão matando bebês e crianças, porque em Gaza metade da população tem menos de 15 anos. Não pense que você vai me pressionar para dizer qualquer coisa. Eu não vou condenar o Hamas antes que vocês condenem Israel. Soa infantil? Bem, então serei infantil”.
Referências:
AGAMBEM, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.
FINKELSTEIN, Norman. The Holocaust Industry: Reflections on the Exploitation of Jewish Suffering, Verso, 2000.
MONTECINOS, William Diego. “Entre a ironia e o trágico. Da poesia de Mourid Barghouti e Samih Alqasim”. Criação & Crítica, p.1-13, ago. 2020. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/criacaoecritica/article/view/162153/163228. [poema de Samih Alqasim em epígrafe].
PAPPÉ, Ilan. A Limpeza Étnica da Palestina. Tradução de Luiz Gustavo Soares. São Paulo: Editora Sundermann, 2016.