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MUNDO

A catástrofe iminente e a urgência em detê-la

Gilbert Achcar, de Londres. Tradução: Carolina Freitas

Nos últimos dias, Gaza sintetizou a divisão global Norte-Sul mais do que qualquer outro conflito na história contemporânea. A indecente unanimidade dos governos ocidentais, expressando, sem reservas, apoio incondicional ao Estado israelense – no preciso momento em que iniciava uma campanha evidente de crimes de guerra contra o povo palestino de magnitude sem precedentes nos 75 anos de história do conflito regional – tem sido de repugnância atroz. Desde 7 de outubro, estes governos vêm se superando neste esforço: desde a projeção da bandeira de Israel no Portão de Brandemburgo em Berlim, no Parlamento em Londres, na Torre Eiffel em Paris e na Casa Branca em Washington; até ao envio de aparato militar para Israel, bem como os reforços navais americanos e britânicos para o leste do Mediterrâneo, num gesto de solidariedade com o Estado Sionista; incluindo ainda a proibição de várias formas de expressão de apoio político à causa palestina, restringindo assim liberdades políticas básicas.

Tudo isto ocorre enquanto o desequilíbrio habitual nas reportagens dos meios de comunicação ocidentais sobre Israel/Palestina atingiu o seu auge. Como sempre, os israelenses enlutados, especialmente as mulheres, são expostos em abundância nas telas, incomparavelmente mais do que os palestinos enlutados. A Operação Inundação de Al-Aqsa, do Hamas, provocou uma avalanche de imagens de violência contra pessoas desarmadas, com foco especial na festa rave, semelhante àquelas comumente organizadas nos países ocidentais, a fim de acentuar a “compaixão narcisista … muito mais evocada pelas calamidades abatidas contra pessoas como nós, e muito menos para calamidades que afetam outras pessoas além de nós”. Desde que o Hamas lançou a sua operação, a violência israelense contra civis em Gaza, perpetrada numa escala muito maior, tem sido muito menos denunciada e em nenhum caso condenada. Mesmo um crime de guerra flagrante como o bloqueio total de água, alimentos, combustível e eletricidade, infligido a uma população de 2,3 milhões de pessoas, além da não menos flagrante violação dos direitos humanos na ordem dada a mais de um milhão de civis que abandonem a sua cidade, ou enfrentem a morte sob os escombros de suas casas, é basicamente tolerada por líderes políticos ocidentais proeminentes e pela grande mídia ocidental.

É como se tivessem remontado a Sociedade Internacional para a Supressão dos Costumes Selvagens, no qual Kurtz, personagem ficcional de Joseph Conrad no livro Coração das Trevas, escreve um relatório concluído com o terrível pós-escrito: “Exterminem todos os bárbaros!”[1]. Na verdade, a prescrição de Kurtz encontrou um equivalente no anúncio sinistro do Ministro da Defesa israelense, Yoav Gallant: “Ordenei o cerco total à Faixa de Gaza. Não haverá eletricidade, nem comida, nem combustível, tudo será fechado… Estamos lutando contra animais humanos e agimos de acordo com isso”.

Não é de surpreender que os meios de comunicação ocidentais tenham feito eco aos meios de comunicação israelenses descrevendo a operação do Hamas como o ataque mais mortífero dirigido contra os judeus desde o Holocausto, dando continuidade ao padrão habitual de nazificação dos palestinos para justificar a sua desumanização e o seu extermínio. Contudo, a verdade é que, por mais terríveis que tenham sido alguns aspectos da operação do Hamas, eles não são um contínuo da violência imperialista nazista a partir de qualquer perspectiva histórica considerável. Pelo contrário, fazem parte de dois ciclos históricos muito diferentes: o da luta dos palestinos contra a expropriação e a opressão colonial israelense e o da luta dos povos do Sul Global contra o colonialismo.

A chave para entender a mentalidade subjacente às ações do Hamas não se encontra em Mein Kampf [Minha Luta] de Adolf Hitler, mas em Os condenados ​​da terra de Frantz Fanon, a mais conhecida interpretação dos sentimentos dos colonizados por um pensador político, que era também psiquiatra. Fanon refletiu sobre as lutas dos colonizados, especialmente dos argelinos, contra o colonialismo francês. Os paralelos são impressionantes:

O colonizado que decide realizar este programa, para se tornar o seu motor, está sempre disposto à violência. Desde o seu nascimento, é claro para ele que este mundo estreito, semeado de contradições, só pode ser desafiado pela violência absoluta.
A violência que presidiu à constituição do mundo colonial (…) será reivindicada e assumida pelos colonizados a partir do momento em que, decidida a tornar-se história em ação, a massa colonizada penetra violentamente nas cidades proibidas. Provocar uma explosão do mundo colonial será, a partir de agora, uma imagem de ação muito clara, muito compreensível e capaz de ser assumida por cada um dos indivíduos que constituem o povo colonizado…
Não há, porém, equivalência de resultados, porque os bombardeios aéreos ou os tiros de canhão da frota superam em horror e importância as respostas dos colonizados. Este vai-e-vem do terror desmistifica definitivamente os mais alienados dos colonizados. Comprovam no terreno, com efeito, que todos os discursos sobre a igualdade da pessoa humana acumulados uns sobre os outros não escondem essa banalidade que pretende que os sete franceses mortos ou feridos no desfiladeiro de Sakamody despertem a indignação das consciências civilizadas, enquanto que “não contam” a pilhagem nas aldeias de Guergour, na cidade de Djerah, a matança de populações em massa que foram precisamente a causa da emboscada[2].

Alguns dos atos cometidos pelos combatentes do Hamas durante a Operação Enchente de Al-Aqsa foram terroristas? Se o terrorismo significa o assassinato deliberado de pessoas desarmadas, sem dúvida foram. Mas depois, o assassinato deliberado de milhares e milhares de civis de Gaza ao longo dos últimos dezessete anos – desde 2006, apenas alguns meses depois de Israel ter evacuado a Faixa de Gaza para controlá-la a partir do exterior, na crença de que o custo seria menor do que controlá-la por dentro – também é terrorismo. Na verdade, o terrorismo de Estado causou muito mais vítimas na história do que o terrorismo de grupos não estatais.

Da mesma forma, alguns dos atos cometidos pelos combatentes do Hamas foram atos bárbaros? Sem dúvida, mas não é menos indubitável que fizeram parte de um choque de barbáries. Deixe-me citar aqui o que escrevi sobre isso há mais de vinte anos (El choque de barbaries, Icária, 2007), após os ataques de 11 de setembro:

Considerado separadamente, cada ato de barbárie pode ser considerado igualmente repreensível do ponto de vista moral. Nenhuma ética civilizada pode justificar o assassinato deliberado de não-combatentes ou de crianças, seja indiscriminado ou deliberado, por terrorismo estatal ou não-governamental…
No entanto, do ponto de vista da equidade básica, não podemos nos envolver numa ética metafísica que rejeite igualmente todas as formas de barbárie. As diferentes barbáries não têm o mesmo peso na balança da justiça. É verdade que a barbárie nunca poderá ser um instrumento de defesa legítima; é sempre ilegítimo por definição. Mas isto não muda o fato de que quando duas barbaridades se confrontam, a mais forte, aquela que atua como opressor, continua a ser a mais culpada. Exceto em casos de manifesta irracionalidade, a barbárie dos fracos é na maioria das vezes, logicamente, uma reação à barbárie dos fortes. Caso contrário, por que os fracos provocariam os fortes, correndo o risco de serem eles próprios esmagados? Esta é, aliás, a razão pela qual os fortes tentam esconder a sua culpa apresentando os seus adversários como insanos, demoníacos e bestiais.

A questão mais importante na concepção do Hamas sobre a luta contra a ocupação e a opressão israelenses não é moral, mas sim política e prática. Em vez de servir à emancipação palestina e conquistar um número crescente de israelenses para a sua causa, a estratégia do Hamas facilita a unidade nacionalista dos judeus israelenses e fornece ao Estado sionista pretextos para aumentar a supressão dos direitos e da existência dos palestinos. A ideia de que o povo palestino pode alcançar a sua libertação nacional através da confrontação armada com o Estado israelense, que é militarmente muito superior, é irracional. O episódio mais eficaz da luta palestina até à data foi sem armas: a Intifada de 1988 causou uma crise profunda na sociedade, no sistema político e nas forças armadas de Israel, e conquistou uma simpatia massiva para a causa palestina no mundo, mesmo nos países ocidentais.

A mais recente operação do Hamas, o ataque mais espetacular já lançado contra Israel, proporcionou uma oportunidade para retaliações assassinas brutais num ciclo prolongado de violência e contra-violência. O que se vê no horizonte é nada menos que uma segunda etapa da Nakba – catástrofe, em árabe – nome dado ao deslocamento forçado da maioria da população indígena palestina dos territórios que o recém-nascido Estado israelense conseguiu conquistar em 1948. O atual governo israelense, que inclui neonazistas, é liderado pelo líder do partido Likud, portanto, herdeiro dos grupos políticos que perpetraram o mais infame massacre de palestinos em 1948: o massacre de Deir Yassin. Benjamin Netanyahu liderou a oposição a Ariel Sharon e demitiu-se do seu gabinete em 2005, quando Sharon optou pela retirada unilateral israelense de Gaza. Pouco depois, Sharon deixou o Likud, que Netanyahu lidera desde então.

A extrema-direita israelense chefiada pelo Likud tem perseguido sem descanso o seu objetivo de uma Grande Israel, abrangendo todo o território palestino do antigo mandato britânico entre o Mar Mediterrâneo e o Rio Jordão, incluindo a Cisjordânia e Gaza. Poucos dias antes da operação do Hamas, Netanyahu, durante o seu discurso na Assembleia Geral da ONU, brandiu um mapa da Grande Israel, um sinal deliberado que não passou despercebido. Portanto, a ordem dada à população do norte de Gaza para se deslocar para o sul é muito mais do que a habitual desculpa hipócrita para a destruição deliberada de áreas habitadas por civis, ao mesmo tempo que culpa o Hamas por se abrigar atrás da população civil (uma acusação decerto absurda: como poderia o Hamas existir no deserto, fora das concentrações urbanas, sem ser aniquilado pelos meios muito superiores da guerra remota israelense?).

Muito provavelmente, sob o pretexto de erradicar o Hamas, o que estamos assistindo é o prelúdio de uma segunda onda de deslocamentos dos moradores de Gaza em direção ao deserto do Sinai, no Egito, voltado a concretizar o segundo grande ato de conquista territorial, combinado com limpeza étnica, desde a Nakba. Os palestinos recordam de imediato o êxodo de 1948, quando fugiram da guerra apenas para serem impedidos de regressar às suas cidades e vilas. Eles perceberam que enfrentam agora um segundo ciclo de deslocamento forçado em Gaza que prenuncia um aumento da desapropriação e da colonização. Esta segunda fase da Nakba será muito mais sangrenta do que a primeira: o número de palestinos assassinados no momento que escrevo estas linhas já se aproxima do número dos assassinados em 1948, e isto nada mais é que o início do ataque israelense. Só uma mobilização popular massiva nos Estados Unidos e na Europa poderá levar os governos ocidentais a pressionar Israel a parar antes de cumprir os seus sinistros objetivos de guerra, impedindo este resultado horrível. Isto é urgente ao extremo. Não se engane: a catástrofe iminente não será contida no Oriente Médio, se alastrando, sem dúvidas, pelos países ocidentais, como tem acontecido há várias décadas, numa escala ainda mais trágica.

Gilbert Achcar é de origem libanesa e é professor de Estudos de Desenvolvimento e Relações Internacionais na SOAS, Universidade de Londres. É autor de vários livros, incluindo Os Árabes e o Holocausto: A Guerra de Narrativas Árabe-Israelenses (2010) e O Povo Quer: Uma Exploração Radical da Revolta Árabe (2013, 2022). Seu último livro é A Nova Guerra Fria – Os Estados Unidos, a Rússia e a China, do Kosovo à Ucrânia (2023).
[1] Conrad, Joseph. Coração das Trevas, pág. 93.
[2] Fanon, Franz, Os condenados ​​da terra.

Publicado originalmente em português em A catástrofe iminente e a urgência em detê-la