Fábio José de Queiroz |
Neste artigo, abordamos o tema da Frente Popular, no Brasil, abarcando uma análise interpretativa de sua gênese e significado, bem como de sua repercussão na estratégia socialista.
Afora esta introdução, o artigo está dividido em três partes e mais as conclusões. Na primeira parte traçamos um quadro da origem da Frente Popular no Brasil. A segunda seção é constituída pelo marco teórico-histórico geral. Na terceira parte, examinamos, não só o lugar da FP na história, mas vistoriamos muito rapidamente o significado dos governos do PT. Por fim, delineamos as considerações finais, cruzando-as com a questão do socialismo.
História sincera da frente popular no Brasil: antecedentes históricos
Os quatro volumes que compõem a História sincera da república, de Leôncio Basbaum, representam vital esforço interpretativo de dar conta desse período da história brasileira, ao mesmo tempo que é uma obra na qual o tema da Frente Popular não está ausente.
Na hipótese do médico-historiador comunista, a FP era “uma contraofensiva à marcha ascendente da reação”. (BASBAUM, 1991:68) Por sua vez, no caso brasileiro, ela encontra a sua representação mais viva, conforme descreve o autor, na ANL: “A Frente Popular não tardou a chegar ao Brasil e encontrou a sua expressão na Aliança Nacional Libertadora”. (IDEM). Ou seja: quase na mesma época em que a Internacional Comunista, num novo giro de 180º, salta do ultraesquerdismo de ocasião, que lhe caracteriza, de 1927 a 1934, para a política frentepopulista, no Brasil, aflora a experiência da ANL, cuja existência se estende de fins de 1934 a meados de 1935.
Com efeito, a existência da Ação Nacional Libertadora se casa com as mudanças que se processam no pensamento de Moscou, e, por extensão, na cúpula da III Internacional; mudanças que só se consolidam em 1936, durante o VII Congresso da IC, quando essa política se afirma como a sua principal resolução.[1] Para Basbaum, a linha política da ANL, não só atribui a esse movimento o sentido de uma “Frente Única Anti-imperialista”, mas aponta para constituição de um “governo popular”. Julgamos, porém, ser essencial trazer a lume a seguinte ponderação do autor:
Todavia, a ANL, embora criada pelo Partido Comunista, não era propriamente a execução de uma linha política traçada no exterior, seguindo o esquema internacional das frentes populares, ainda que resultante do mesmo espírito que as inspirou (BASBAUM, 1991:71).
Em linha similar, ele completa:
A ANL era, pois, antes de tudo, um organismo amplo das massas populares, de todas as classes sociais, principalmente o proletariado e as classes médias, destinado a uni-las em torno de objetivos comuns, dado que o PCB não tinha condições nem programa para atrair essas camadas. Seus objetivos, por isso mesmo, não eram comunistas, nem mesmo socialistas, e menos ainda constituir soviets, com que durante muito tempo os comunistas julgaram pode superar a etapa burguesa-democrática. (IDEM, P. 71).
Nestas circunstâncias, Leôncio Basbaum admite que a aliança encarne um tipo de “frente nacional”, ambicionando sacudir a tutela imperialista, o que, a seu ver, exige atingir “camadas sociais muito distintas”. Logo, a missão dos comunistas não se estriba “em restringir a amplitude da frente”, mas de buscar a sua ampliação. Eis a letra e o espírito da política.
Desse ponto de vista, no Brasil, antes das experiências de França e Espanha, já funciona, a pleno vapor, o laboratório da FP, inspirado no espírito que impele os PCs, do mundo inteiro, aos braços da política policlassista. A ideia que lhe confere peculiaridade é a de uma “vasta frente”. Assim, “todos os partidos, grupos, associações e personalidades democráticas contribuíram para o surgimento da ANL”. (VIANNA, 2011:144)
A volta de Prestes ao Brasil, em 1935, só reforça o tom dessa política. A radicalidade na ação (elemento residual do terceiro período), consumada com o fito de derrubar Vargas, não anula a estratégia etapista, inerente à lógica da FP. Neste aspecto, a síntese do historiador do PCB é sintomática:
Garantia Prestes que seria possível, com o seu nome e prestígio, com a ajuda prática do PCB e a ajuda teórica da IC, substituir o regime feudal-burguês por um governo, não soviético, ou socialista, como pensava ainda três anos antes, mas popular. (BASBAUM, 1991:74)
Nota-se aí o caráter etapista da Frente Popular: se a tarefa consiste em substituir o suposto “regime feudal-burguês” por outro, que não era socialista, como se sabe, encontra-se implícito o desenho que, depois, adquire expressão mais meridiana. Desenho este perpassado pelo selo ineliminável do policlassismo.
Leôncio Basbaum se apoia em Berger,[2] “comunista experimentado”, para esclarecer a linha do partido, que, supostamente, corresponde às características da época. Assim,
A etapa atual da revolução, no Brasil, diz, é a de uma revolução nacional anti-imperialista. A finalidade desta etapa é: a criação da mais ampla frente popular (operários, camponeses, pequeno- burgueses e aquela parte da burguesia que é contra o imperialismo); instituição de um governo popular nacional revolucionário com Prestes à frente, e nas quais estão representadas as camadas acima. (BERGER Apud BASBAUM, 1991:86)
Há um momento da circular escrita por Berger, da qual Basbaum retira a passagem expressa há instantes, que prima pelo tom elucidativo: “Nesta primeira etapa, não organizaremos sovietes, porque isso reduziria prematuramente a necessária larga frente popular”. (IDEM, P. 87) Aqui, o caráter amplo – característica da orientação interclassista – não declina da participação da “burguesia que luta contra o imperialismo”.
Oferecer uma descrição mais consistente do nosso objeto, no entanto, exige adentrar o núcleo de sua armação teórico-histórica. A nossa hipótese é que a FP, como política dos PCs, denota uma ideia e uma prática impulsionadas já antes da realização do VII Congresso da III Internacional.
Tal percepção permite perceber que: 1) a questão da FP, que já se incute na Rússia, no intervalo de tempo entre a queda do Czar e o triunfo da Revolução de Outubro; e, que 2) de algum modo, também, se insinua na tática da IC para China, em meados dos anos 1920; 3) como política sistemática e de longo prazo, porém, só é instaurada nos dois anos que separam a débâcle da política do 3º período da realização do VII Congresso da I.C.
A começar desse momento, no Brasil, é criada a ANL e o PCB dirige um movimento com o intuito de estabelecer um “governo popular”, no exato instante no qual, em França e Espanha, por exemplo, se luta por objetivo semelhante. Nos países europeus, a FP se torna governo, e esse fato constitui a antessala da ascensão de governos autocráticos; no Brasil, a insurreição de 1935 malogra tristemente, e, na esteira desse naufrágio, Vargas prepara as condições para a instauração da ditadura. Em suma, essa diretiva abre caminho, não para o socialismo, mas para saídas despóticas.
Não obstante o impacto desses fatos, durante e depois da 2ª Guerra Mundial, a FP se eleva à categoria de política permanente dos PCs. Aqui, malgrado as oscilações políticas do PCB, a ideia frentista, ou de simples colaboração, se torna quase que uma crença messiânica. Eis a história sincera da Frente Popular, no Brasil, no que diz respeito aos seus mais recuados antecedentes.
A frente popular no espelho da história.
Levantada como tática, a FP se torna política duradoura, que, não obstante as enormes mutações que ocorrem de lá para cá, segue como norma para as organizações reformistas. Na variante mais ancestral, quando do VII Congresso da I.C, a sua fisionomia, de modo mais preciso, é a de acordos defensivos ante o nazifascismo. Georgi Dimítrov, no discurso de encerramento, faz uma superposição obscena, mas consciente, da Frente Única Operária com a Frente Popular, e apregoa “a união dos trabalhadores em volta da classe operária numa vasta Frente Popular contra a ofensiva do capital, da reação e do fascismo”.
Essa questão ainda aparece como tema nebuloso, e, embora esteja ligada à extraordinária turbulência, aberta com a derrota do proletariado alemão e a ascensão de Hitler, não necessariamente nessa ordem, ela dissimula o fato de que Stálin-Dimítrov pretendem desviar o foco de duas questões-chave: a primeira, certamente, inclui relação direta com o fracasso da política do “terceiro período”, que produz o desastre alemão, e, a segunda, objetivamente, refere à circunstância de que a burocracia tira proveito da situação para oficializar a contínua colaboração com a burguesia.
Nesse aspecto, ao longo dos anos, se acentua a coerência indissimulável entre os objetivos do “frentismo” e o uso recorrente de expressões adjetivas, acompanhando o substantivo feminino burguesia, se tornando corriqueiras locuções como: nacional, democrática, progressista, anti-imperialista etc. Isso posto, a tática de unidade – hipoteticamente temporária – se revela um tipo de política em voga para toda uma época histórica, e não meramente uma união circunstancial, assentado nas crescentes dificuldades imprimidas pela expansão nazifascista.
Não é de surpreender, então, que, em cada lugar, a “liquidação do isolamento” significa se aliar a Fulgêncio Batista, em Cuba, ou se unir às forças mais pró-imperialistas, na Argentina, em 1955, cuja resultante é o golpe de Estado que depõe Perón, apenas para citar dois casos. Nessas experiências, se ratifica a assertiva de que “um dos aspectos mais tradicionais das estratégias políticas do stalinismo é a subordinação a um ou outro setor da burguesia”. (ALMEIDA NETO, S/D: 78)
Mais do que isso, a colaboração de classe forja tal grau de desmoralização nas hostes comunistas, que, nos EUA, o dirigente do partido, que concorre às eleições presidenciais, em 1936, contra Roosevelt, logo depois da liquidação da IC, pelo grupo de Stálin, formalmente, propõe a unidade perpétua com a burguesia e o imperialismo. Carl Russel Browder se torna sinônimo do mais completo revisionismo, dando origem à célebre expressão política conhecida como browderismo. A fúria contra Browder, no entanto, é passível de reparo, pois, em última instância, ele está em perfeita congruência com a noção dimitroviana de “liquidação do isolamento” e, nessa esteira, de sua imagem de um imperialismo democrático, com o qual se deve colaborar.
Não demora muito, e a burocracia eleva a sua política de colaboração de classe à ideia da “coexistência pacífica” do Estado soviético com o imperialismo. Assim, em nome de barrar o caminho do capital, da reação e do fascismo, os PCs se agarram ao caminho do meio, nem fascista nem socialista, e que, numa rápida análise, confirma a hipótese de Leon Trotsky, a saber: que a FP é a “colaboração de classes em benefício da burguesia”. (1994:188)
Ademais, coube a Trotsky (2008) examinar o fenômeno, em seu contexto de formação, definindo, à época, que as duas variantes históricas, o fascismo, de um lado, e a Frente Popular, do outro, são os últimos recursos da burguesia em meio à maior crise da história do regime social capitalista. Além disso, à luz da experiência da FP, na França, o velho revolucionário revela aquilo que o discurso de Dimítrov é incapaz de afigurar. Há indicadores objetivos de que o líder do Komintern faz uso de linguagem cifrada para simular algo que, grosso modo, é o seu reverso: a defesa de uma aliança de classes imperecível com a burguesia, que, no discurso, é acobertada pela utilização de alguns termos de entono radical.
Se a referência de Dimítrov é a França, é exatamente este o país que serve a Trotsky de arrimo em sua crítica à estratégia frentepopulista. Ele constata o aspecto eleitoral que contamina a frente, bem como faz a crítica da presumida conquista dos estratos médios, com suporte nessa linha. Para o autor de Aonde vai a França (?),
Uma verdadeira aliança do proletariado e das classes médias não é uma questão de estatística parlamentar, mas de dinâmica revolucionária. É preciso criar essa aliança, forjá-la na luta. (TROTSKY, 1994:58)
Essa é a atitude teórica e política básica que pauta as posições do inspirador da IV Internacional, perante a Frente Popular, distinguindo-a da Frente Única, uma tática prioritariamente defensiva para mover as massas diante da ofensiva nazifascista. A FP, porém, se revela “tática” permanente a serviço do eleitoralismo reformista (o que Broué designou de “via parlamentar sem saída”). Não é, pois, de se admirar que, criticando a experiência francesa, Trotsky eleve o tom de sua crítica:
A “Frente Popular” é uma aliança do proletariado com a burguesia imperialista, representada pelo partido radical, e outros despojos da mesma espécie e menor envergadura. Esta aliança se estende ao terreno parlamentar. (TROTSKY, 1994:117)
Em suma, sem querer ignorar a complexidade do processo, o que define a “doutrina” frentepopulista, em última hipótese, é a aliança de organizações, do campo da classe trabalhadora, com representações de outras classes, e, grandemente, da burguesia, constituindo um recurso para preservar a ordem do capital, e não uma via na transição ao socialismo. É isso o que se repara no espelho da história.
A frente popular em oposição à história.
Em 2016, completam-se 80 anos da constituição oficial da política de Frente Popular, quando da realização do VII Congresso da I.C, já completamente stalinizada.
As tragédias históricas, oriundas da aplicação dessa política, não são obstáculos para que a sua repetição seja insanamente reiterada. Na América Latina, a pungente memória da catástrofe chilena, de 1973, ainda hoje se inscreve como uma lição impossível de se esquecer. Paradoxalmente, segmentos majoritários, no campo da esquerda, se recusam a admitir o conteúdo mais profundo dessa lição e a política frentepopulista segue sendo aplicada, apesar dos infortúnios – próximos e afastados.
Resta tentar entender os processos que conduzem à formação de condomínios frentepopulistas, a despeito do fato de cada experiência engendrar maior desmoralização de líderes da FP e a desmobilização da classe trabalhadora, desaferrolhando portas para a entrada em cena de alternativas abertamente reacionárias.
Uma rápida análise nos permite observar que se confirma a hipótese de Trotsky, de que os representantes frentepopulistas, não raro, se comportam como “servos do capital financeiro”. Além disso, a FP aceita naturalmente o regime democrático-burguês, e ao se inserir no âmbito da lógica da cidadania e ao largo da questão classista, mescla inarredavelmente a sua história com a prática mais rotineira da conciliação de classe e abre mão de qualquer veleidade socialista.
Hoje, o relativo desgaste da ideia de Frente Popular faz com ela ressurja com outras denominações, dentre elas, a mais notória, é a de “governo democrático e popular”. A mudança de denominação não invalida o seu conteúdo. No limite, a representação mental é idêntica: uma longa e indeterminada etapa de aliança com setores da burguesia “democrática”. À luz da história, essa representação, sem dúvida, sente falta de lucidez teórica. Além do mais, a busca de uma burguesia “que é contra o imperialismo”, há muito tempo, deixa de ser objeto de definição do caráter dos aliados. Com o “petismo”, essa particularidade, não só evapora do discurso, mas esse tipo de governo “anormal” já não se submete a riscos severos de intervenções truculentas, malgrado a tradição militarista latino-americana.
Do VII congresso da I.C aos dias de hoje, assim como do esboço de Frente Popular, na experiência da ANL, até o quarto governo frentepopulista consecutivo, no Brasil, há indícios que revelam que essa diretriz não fortalece a classe operária, mas, inversamente, representa, para a sua consciência, não mais do que um monumental retrocesso. As consignas, com suporte na orientação interclassista, de ordinário, representam um passo atrás no processo de formação da consciência de classe socialista, vociferando lemas como o da “coexistência pacífica”, ontem, e o da “inserção soberana”, hoje, cujos conteúdos, no essencial, não divergem; do mesmo modo, se pode dizer do “Brasil de todos”, no passado recente, e do “Brasil, pátria educadora”, no mandato em curso da presidenta Dilma Rousseff.
A nós, cabe esclarecer que esse debate não se assenta em parâmetros táticos. Trata-se de polêmica estratégica que divide águas entre os marxistas. Vivemos uma época em que as questões estratégicas parecem ter perdido o seu antigo vigor, sucumbindo ao encanto suspeito do taticismo. Nesse sentido, a discussão sobre a FP implica ir além desses limites regulares, retomando, a fundo, o debate da transição socialista. A pergunta que tende a orientar este debate é uma só: não é hora de redimir a história em oposição à Frente Popular e voltar a discutir seriamente o socialismo?
Considerações finais
As conclusões que saltam deste artigo podem ser resumidas nos seguintes pressupostos: 1) apesar do impacto das tragédias que se ligam à história da FP, essa política segue como uma ferramenta usada com frequência por forças que se afirmam de esquerda; 2) O traço que permanece imutável no terreno dessa experiência é a orientação policlassista 3) No caso brasileiro, a antessala da política em exame se concretiza na ANL, encontrando a sua forma contemporânea no “governo democrático e popular”, encabeçado pelo PT.
Por fim, não deixa de ser revelador que a Frente Popular, ao longo do século passado e, agora, alcançando o século XXI, se mostra vivamente, não como um agente da transição socialista, mas como um irritante obstáculo à sua consumação. Logo, esse debate não tem um interesse puramente teórico. Entender o sentido dessa política é essencial para a militância marxista e o seu projeto de transformação social, que, necessariamente, passa pelo combate ao frentepopulismo em suas diversas nuanças.
Bibliografia:
BASBAUM, Leôncio. História sincera da república (de 1930 a 1960), 6ª Ed., São Paulo: Alfa-Ômega, 1991.
BROUÉ, Pierre. A revolução espanhola, São Paulo: Perspectiva, 1992.
DIMÍTROV, Georgi. O verdadeiro senhor do mundo é o proletariado, in: file:///C:/Documents and Settings (acesso em 03/01/2016).
NETO ALMEIDA, Eduardo. Brasil: reforma ou revolução (?), S/L: Cadernos Marxistas, S/D.
TROTSKY, Leon. Aonde vai a França (?), São Paulo: Desafio, 1994.
_______. O programa de transição para a revolução socialista, São Paulo: Sundermann, 2008.
VIANNA, Marly de Almeida Gomes. Revolucionários de 1935 – sonho e realidade, São Paulo: Expressão Popular, 2011.
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[1] Não por acaso, ao encerrar o VII Congresso da IC, Dimítrov afirma: “Nosso congresso foi o congresso da nova orientação tática da Internacional Comunista”.
[2] Harry Berger é o pseudônimo político do comunista alemão Artur Ernest Ewerter, que, depois de torturado barbaramente pela polícia política getulista, e de muitos anos na prisão, é devolvido à Alemanha, mentalmente devastado pelos flagelos que sofre nas prisões brasileiras.
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