Concluímos a divulgação em português do artigo de Ching Kwan Lee sobre a evolução da nova classe trabalhadora chinesa, originalmente publicado no Journal of Asian Studies. A primeira parte do artigo foi publicado no Blog Esquerda Online aqui. (Editoria Internacional)
Ching Kwan Lee
Ching Kwan Lee ([email protected]) é Professora de Sociologia na UCLA – Universidade da Califórnia em Los Angeles.
Tradução: Wilma Olmo Corrêa
Foto: Trabalhadores da Volkswagen em Changchun em luta pelo seu acordo coletivo de trabalho e pela libertação de seu representante preso. Crédito: China Labour Bulletin
Otimismo falso: a escassez de trabalho, os imigrantes de segunda geração e greves
Contra o pano de fundo desses dois fatores institucionais que perpetuam a precarização, examinemos em detalhes as reivindicações principais em estudos recentes sobre o trabalho na China que, por razões de conveniência, podem ser agrupados sob a rubrica de “tese de empoderamento”. Primeiro, realmente houve um aumento das greves e dos protestos dos trabalhadores? A maioria dos autores que defendem o empoderamento dos trabalhadores apenas afirma uma tendência crescente sem mostrar quaisquer dados dessas tendências. Admitindo-se que os dados sobre greves são difíceis de serem encontrados, a impressão é que ainda não há um substituto aceitável. Mesmo que as estatísticas do Boletim do Trabalho da China, citadas por Mary Gallagher (2014, 87), tenham aumentado os totais nacionais para as greves (192 em 2011, 384 em 2012 e 200 nos primeiros quatro meses de 2013), esses números são bastante pequenos em comparação com aqueles que encontrei em uma cidade (Shenzhen) quinze anos atrás. “As estatísticas do Bureau do Trabalho da Cidade de Shenzhen informaram que oficialmente se tratavam de ‘incidentes espontâneos’, o que significa que protestos e petições coletivos e em larga escala, totalizaram 556, 540 e 682 para 1998, 1999 e 2000” (Lee 2007, 163). Indo mais atrás no tempo, e se as estatísticas divulgadas pela imprensa dissidente em Hong Kong fossem usadas, o Ministério Chinês da Segurança Pública registrou “um total nacional de 480 greves em 1992, 1.870 em 1995 e 1.740 nos primeiros nove meses de 1996 “(Lee 2003, 78). A justaposição desses vários conjuntos de números sugere que, em comparação com a década de 1990, o período atual está realmente expressando um declínio, não um aumento, das greves. Os estudiosos da área trabalhista fariam bem em ir além das manchetes e do curto período de tempo adotado até mesmo pelos mais sérios estabelecimentos de notícias.
Em segundo lugar, um argumento aparentemente convincente foi esgrimido sobre a escassez de mão-de-obra levando ao empoderamento dos trabalhadores. Em 2012, a força de trabalho da China caiu 3,45 milhões, marcando a primeira queda absoluta da força de trabalho desde a década de 1970. No entanto, enquanto alguns demógrafos chineses preveem que ela irá diminuir em 29 milhões durante a década atual (Xinhuanet 2013), outros não veem nenhum esgotamento do excedente de trabalho por mais uma década (Das e N’Diaye 2013). Por enquanto, assumindo que o desaparecimento do “bônus demográfico” está se aproximando no horizonte, isso significa um maior poder de barganha no mercado para os trabalhadores e a “liquidação do modelo de desenvolvimento da China”, que se baseia no excedente e no trabalho migrante barato (Gallagher 2014, 83)?
A escassez de mão-de-obra pode, de fato, aumentar o poder de barganha dos trabalhadores, mas esse fator deve ser avaliado ao lado de tendências compensatórias do mercado de trabalho que existem simultaneamente para agravar o poder de negociação laboral e trabalhista e o direito de associação dos trabalhadores. Um tal desenvolvimento é o encurtamento da estabilidade no emprego, especialmente entre os trabalhadores migrantes de segunda geração mais jovens, indicando um mercado de trabalho mais volátil e inseguro. De acordo com uma pesquisa nacional representativa da Universidade Tsinghua, com mais de 2.000 trabalhadores em 2011, os trabalhadores migrantes nascidos na década de 1980 mantiveram empregos que, em média, duraram 2,68 anos, mas para os que nasceram nos anos 1990, a duração média do trabalho é de apenas 0,93 anos. A estabilidade no emprego de ambos os grupos não foi nada em comparação com os nascidos antes de 1980. Esses trabalhadores mais velhos têm uma duração no trabalho (4,2 anos) que é mais do dobro do que a da nova geração. Além disso, a pesquisa encontra uma taxa global de 37,9% no modo de “espera pelo emprego” (ou seja, desempregados). A implicação é que há pouca estabilidade no trabalho; o mercado de trabalho é extremamente fluido, inibindo a formação de coletividade e solidariedade dos trabalhadores (Tsinghua Sociology Research Team 2013). As implicações negativas para a solidariedade dos trabalhadores e a capacidade coletiva são óbvias e serão discutidas em uma seção posterior.
Além do encurtamento da estabilidade no trabalho, outro fenômeno do mercado de trabalho que prejudica o poder de barganha dos trabalhadores é o aumento de um novo reservatório de força de trabalho para o capital, os estagiários. Nas fábricas da Foxconn e da Honda, os estagiários são encontrados em muitos departamentos, representando 15% a 50% da força de trabalho, por períodos que variam de dois meses a dois anos. São estudantes matriculados em escolas vocacionais de enfermagem, manutenção de automóveis ou administração de empresas, mas são enviados a essas fábricas como parte obrigatória do treinamento. Trabalhando sem contratos de trabalho ou seguro social, desempenhando tarefas não relacionadas a seus cursos, esses trabalhadores não são reconhecidos como trabalhadores ao abrigo da Lei do Trabalho, embora eles trabalhem e vivam como outros trabalhadores que cumprem jornada integral. O fornecimento de estagiários como fonte de trabalho precário resultou da mercantilização da educação profissional e do conluio entre governos locais e poderosas corporações multinacionais. As escolas profissionais foram privatizadas desde o final da década de 1990 e, por meio de programas de estágio, as escolas recebem equipamentos, treinadores e financiamento em troca.
Os governos locais competiram entre si para atrair grandes investidores como a Foxconn para se mudarem para suas localidades e prometeu às empresas uma oferta constante de estagiários (J. Chan, Pun e Selden 2015; Su 2010-11). Ross Perlin (2013) relatou um exemplo particularmente dramático, observando:
Quando as consequências dos suicídios de 2010 deixaram a Foxconn com uma escassez de mão-de-obra, o governo provincial de Henan, cortejando a empresa para que se instalasse na província, aproveitou apressadamente a oportunidade. Dando-lhes uma notificação prévia de apenas nove dias, o governo da província enviou 100 mil alunos do ensino profissional para trabalhar nas linhas de montagem de Shenzhen como “estagiários” (o termo chinês shixi também pode significar “estagiário”). Os alunos que não conseguiram ir – por terem pouca educação ou treinamento – foram informados que não teriam permissão para se formar.
Terceiro, se a informalização do mercado de trabalho tem prejudicado o efeito empoderamento da escassez de trabalho, há alguma evidência para fundamentar a afirmação de que a segunda geração de trabalhadores migrantes tem mais direitos e consciência de classe do que a primeira geração? A referida pesquisa da Universidade de Tsinghua concluiu que as duas gerações de trabalhadores têm níveis similares de conhecimento jurídico. O que se destaca entre os trabalhadores da segunda geração é seu padrão de consumo. Eles ganham menos que os trabalhadores mais velhos, mas consomem mais; ao passo que os trabalhadores mais velhos gastam principalmente em necessidades diárias e obrigações sociais (por exemplo, presentes de casamento e de aniversário), os trabalhadores mais jovens gastam em produtos que estejam na moda, entretenimento, comunicação, restaurantes e encontros sociais (Tsinghua Sociology Research Team 2013). O uso onipresente de smartphones e mídias sociais é uma coisa; mas é bem diferente que tenha como consequência a produção de mobilizações mais frequentes ou mais eficazes. A conexão causal é mais frequentemente assumida do que demonstrada. Lu Zhang, por exemplo, apesar de afirmar muitas vezes em seu livro que a “resistência crescente” e a “consciência crescente” podem ser encontradas nos componentes da classe trabalhadora migrante de segunda geração que está fortalecida – eles seriam “tecnicamente habilidosos e adeptos do uso de mídias sociais para disseminar informações e iniciar ações coletivas “(L. Zhang 2015, 149) – afirmou que as greves desses jovens trabalhadores, realizadas em fábricas de automóveis, eram “de curta duração, de pequena escala e não ultrapassavam as demandas econômicas “(159).
Além disso, os salários mais altos não são o empoderamento, especialmente no contexto do aumento de preços nas cidades chinesas. Aliás, os salários mais altos fazem parte da estratégia do governo chinês para reequilibrar a economia chinesa. O Estado quer que os trabalhadores consumam mais, de modo a criar demandas domésticas e, assim, diminuir a dependência da economia em mercados de exportação. As exigências dos trabalhadores em greve por salários mais elevados foram, portanto, atendidas com a tolerância do Estado e o apoio tácito, exatamente porque se enquadram na estratégia de reestruturação macroeconômica do Estado. O 12º Plano Quinquenal (2011-15) estipulou um aumento médio anual do salário mínimo de 13%, para atingir pelo menos 40% dos salários urbanos médios. O efeito mais geral tem sido os índices de dois dígitos no aumento dos salários em toda a China nos últimos anos (Li 2014). Nesse novo modelo de desenvolvimento, a importância dos trabalhadores reside no seu trabalho como produtores diretos e no seu papel como consumidores.
Passemos à quarta alegação da tese de empoderamento – maturação ou radicalização da mobilização dos trabalhadores. Relatos orais dos líderes dos trabalhadores e dos estudos etnográficos de greves recentes colocaram em dúvida a afirmação simplista de que a capacidade e a consciência da classe de trabalhadores migrantes tiveram qualquer transformação qualitativa. Os informes sobre o novo interesse dos trabalhadores e a exigência de representação coletiva normalmente se concentram no advento espetacular de greves, captando os momentos eufóricos das mobilizações dos trabalhadores sem acompanhamento de seus resultados. Os poucos estudos etnográficos acadêmicos que examinaram cuidadosamente os processos e os resultados dessas greves apresentaram uma imagem bastante diferente.
Por exemplo, a etnografia do sociólogo chinês Wang Jinhua sobre as greves da Honda descobriu que a chamada nova consciência foi exagerada (Wang 2011, Wang e Shi, 2014). Entre mais de 100 reivindicações iniciais e queixas elaboradas pelos trabalhadores, ele encontrou apenas uma que tinha conexão com o sindicato (ou seja, item 67: “o sindicato falha ao não conseguir o bem-estar dos trabalhadores”). A demanda por reformar o sindicato ocorreu de forma fortuita: no decorrer da greve, os trabalhadores procuraram leis na Internet para encontrar proteção contra a acusação da empresa de que a greve era ilegal. Ao navegar na Web, eles encontraram a Lei Sindical, levando-os a repensar o papel potencial do sindicato por empresa. Com a assistência do sindicato provincial, eles conseguiram eleger uma nova liderança sindical e garantiram um aumento salarial de RMB 800. A mídia cessou as informações a respeito neste momento. Wang começou seu trabalho de campo após a greve e rastreou o desenvolvimento do sindicato um ano depois que a empresa permitiu que os trabalhadores elegessem sua direção sindical. Ele documentou que a empresa havia reintegrado sua própria equipe de administração como líderes sindicais e desativou a rede social QQ dentro da fábrica, que havia permitido a mobilização em toda a planta. Em 2012, os trabalhadores evitaram que o sindicato acabasse com uma forte greve sobre a questão dos bônus, novamente liderados por trabalhadores que já haviam decidido demitir-se. Esta greve ganhou algum incremento em bônus, mas todos os líderes foram deliberadamente transferidos para posições que exigiam trabalho bastante árduo. O “sindicato eleito” manteve-se como uma ferramenta de gestão. Outras fábricas da Honda propensas à greve tiveram a mesma reversão na representação sindical. Líderes de greves renunciaram ou foram rebaixados. Os trabalhadores perderam a confiança em seus sindicalistas eleitos e perderam a fé em ter sindicatos que fossem pró-trabalhadores e não pró-capital. Analisando as mesmas greves da Honda em Nanhai, Eli Friedman (2013) concordou que, exceto na questão dos aumentos salariais, os trabalhadores não conseguiram nenhum ganho duradouro. “Não houve acordo em transferir trabalhadores temporários para trabalhadores regulares, implicando a extensão da precariedade para uma grande parte da força de trabalho, bem como o comprometimento da sua proteção social. … As demandas relacionadas a questões no local de trabalho continuam sendo ignoradas por sindicatos e gerentes, indicando que não existiram melhorias no controle do processo de trabalho “(ver também China Labor Bulletin 2015).
Em outros lugares, uma equipe de pesquisadores que estudaram conflitos trabalhistas nas fábricas da Foxconn concluiu que “nossa pesquisa etnográfica plurianual não revelou nenhuma evidência de que as autoridades da federação sindical de Guangdong tenham reestruturado o sindicato Foxconn, o maior da China, para torná-lo mais responsável perante os trabalhadores” (J. Chan e Selden 2014, 612). Da mesma forma, os estudiosos da área trabalhista que traçaram as greves que ocorreram ao mesmo tempo que as greves da Honda concluíram que essas greves eram isoladas, ações que imitavam outras sem coordenação entre elas (Butollo e Brink 2012). Eles seguem a regra convencional implícita de interação entre o trabalho e o Estado documentada há uma década: enquanto os trabalhadores permanecerem dentro das fábricas, o governo assume uma postura branda e tolerante, mas uma vez que tentarem ir além da fábrica, para a rua ou se juntar a outras fábricas, serão punidos por serem greves políticas (Lee 2007).
As reivindicações sobre o radicalismo crescente dos trabalhadores e seu novo interesse em ir além dos limites da lei está em direta oposição aos dados etnográficos de outra greve em grande escala. O relato detalhado do sociólogo Chen Chih-jou (2015) sobre a greve de dias na Yue Yuen, em 2014, envolvendo 40 mil trabalhadores de pelo menos oito fábricas de propriedade do maior fabricante de calçados do mundo, em Dongguan, mostra que permanecer dentro dos limites da lei ainda é a regra de ouro adotada por trabalhadores de base, líderes de greves e os mais ousados ativistas das ONGs. Quando o ativista de ONG, Zhang Zhiru, se tornou um estrategista informal e assessor dos trabalhadores, ele enfatizou repetidamente a necessidade de “buscar uma resistência racional”, com sua mensagem de texto explicando que “marchar em vias públicas e outras ações socialmente perturbadoras não só prejudicam os interesses públicos, mas também provocará críticas populares contra o nosso ativismo legal “. Trabalhadores em greve também seguiram o conselho de Chang Kai, um estudioso das relações trabalhistas, que apareceu no grupo de mídia social dos trabalhadores e recomendou uma estrutura de ação baseada no local de trabalho e na eleição de representantes. Não menos revelador é o fato de que os líderes desta greve maciça não eram os “jovens trabalhadores migrantes de segunda geração”, mas os trabalhadores veteranos que haviam ascendido para a gerência júnior e intermediária e cuja iminente aposentadoria os levou a verificar suas contas de segurança social, descobrindo que seu empregador estava inadimplente em suas contribuições. À medida que as fusões, aquisições e reestruturações de empresas se tornam cada vez mais desencadeantes de greves na China, os gerentes de linha estão se tornando líderes de greves. O seu maior tempo na empresa significa que há mais em jogo quando as empresas se reestruturam, e seu papel gerencial, habilidades e informações geram maior capacidade de mobilização (Harney e Ruwitch 2014).
Em suma, em vez de radicalização em ação, consciência crescente e empoderamento, evidências empíricas garantem uma avaliação mais comedida. Demograficamente, uma nova geração de trabalhadores migrantes surgiu nas cidades chinesas, mas as estruturas sociologicamente antigas de subordinação permaneceram intactas. Salários e indenizações legais (por exemplo, contribuições de pensões no caso da fábrica de calçados Yue Yuen em 2014), não representação política e nem empoderamento institucional, continuam a ser as preocupações mais importantes entre os trabalhadores. Além dos momentos de ação coletiva, sem a intenção ou motivação para retornar ao campo, e não encontrando na cidade oportunidades a não ser empregos sem nenhuma expectativa de crescimento profissional, a subjetividade da geração mais jovem de trabalhadores é muitas vezes expressa em termos negativos de perda, incerteza, alienação, e falta de sentido. A cultura consumista entre eles é individualista e oportunista, tendências reforçadas pela imprevisibilidade do mercado de trabalho e pela redução da estabilidade no emprego. Estas duas citações de ativistas trabalhistas de ONGs lançam luz sobre esse processo de atomização:
“Atualmente, o significado de ‘trabalhador antigo’ em empresas de TI é um trabalhador que trabalha na mesma fábrica por mais de um ano. É muito comum que um trabalhador trabalhe em uma fábrica por 2 ou 3 meses. Acho que a taxa de rotatividade na empresa é superior a 50%. Então, tenho que enfrentar novos rostos todos os dias. Não é fácil fazê-los conhecer o nosso trabalho em um tempo tão limitado.”
“A taxa de rotatividade é muito alta no setor de construção. Os trabalhadores sempre trabalham no mesmo canteiro de trabalho por menos de meio ano. Os trabalhadores sempre participavam de nossas atividades por uma ou duas vezes. E então eles saiam da obra. Visitar o dormitório das construtoras é o nosso trabalho diário. E encontro diferentes trabalhadores no mesmo dormitório todas as semanas.“ (Zhao 2013, 19).
O falso otimismo na recente literatura trabalhista chinesa está relacionado a uma armadilha analítica que privilegia as subjetividades e destrói as estruturas. Proclamar a consciência de classe dos trabalhadores como indicador de um movimento trabalhista fortalecedor pode ser emocionalmente gratificante para todos os que simpatizam com o avanço da causa do trabalho, mas propicia análises equivocadas e, portanto, é contraproducente para políticas progressivas de qualquer tipo. Concentrar-se na subjetividade do trabalhador como se fosse o foco da situação e do empoderamento dos trabalhadores é esquecer a famosa citação de Marx (1852): “Os homens fazem sua própria história, mas não conseguem fazê-la como lhe agradaria; eles não a fazem sob circunstâncias auto selecionadas, mas em circunstâncias já existentes, dadas e transmitidas do passado”. Além disso, a articulação por parte dos trabalhadores chineses de insights incisivos e críticos sobre seus interesses, o poder do Estado e a lei, está bem documentada (por exemplo, Lee 2007). Não há nada de novo sobre a consciência dos trabalhadores de seus interesses e direitos de classe, como afirmam alguns estudiosos do trabalho, geralmente com base na interpretação voluntarista de um ou dois episódios (C. Chan e Pun 2009, P. N. Leung e Pun 2009). Em um caso extremo, uma narrativa de um trabalhador foi tomada como evidência adequada para Pun Ngai e Lu Huilin (2010, 499) a fim de fazer uma extrapolação indevida e generalizar a toda a geração de trabalhadores, afirmando que “ao contrário da primeira geração de trabalhadores camponeses, que estavam perdidos e passivamente aceitavam seu destino, a segunda geração se recusou a permanecer calada”. O subjetivismo e a singularidade são as duas tendências metodológicas que poderiam ter produzido uma avaliação exagerada do poder dos trabalhadores.
Condições para o empoderamento do trabalhador
Neste artigo, (re) examinei as várias greves destacadas que atraíram a imaginação midiática e acadêmica, e analisei as recentes condições do mercado de trabalho (escassez de mão-de-obra, uso extensivo de estudantes como estagiários, encurtamento da estabilidade nos postos de trabalho), reformas legais (Lei do Contrato de Trabalho e sua implementação) e políticas estatais (urbanização liderada pelo estado, aumentos do salário mínimo, agricultura em larga escala etc.). Cheguei à conclusão de que, em vez de empoderamento, os trabalhadores chineses estão enfrentando o desafio da precarização, assim como os seus homólogos em todo o mundo. A iminente aposentadoria da primeira geração de trabalhadores migrantes e a chegada da segunda geração é um fato demográfico, mas há pouca evidência de que estes últimos tenham a consciência de classe que “faltou” aos primeiros, ou que, de alguma forma, a suposta subjetividade “empoderada” anunciará uma nova era de políticas trabalhistas. Os fundamentos institucionais da subordinação dos trabalhadores chineses não mudaram. Se algo mudou, eles se tornaram mais perniciosos – a conivência do governo local e dos empregadores que leva à implementação arbitrária de leis trabalhistas; expropriação de terras sem indenização adequada e conversão para “hukou” urbano; monopólio estatal da representação dos trabalhadores e implacáveis ações contra ONGs trabalhistas e ativistas que se atrevem a auxiliar a mobilização dos trabalhadores.(1) Sem mudanças substanciais nessas condições materiais ou institucionais, a dinâmica do ativismo trabalhista permaneceu atomizada, legalista e autolimitada pelos limites definidos pelo estado. Em suma, continua a ser uma política de necessidade e não uma política de liberdade. Não se trata de saber se os trabalhadores estavam ou não conscientes de seus interesses; é pelo que os trabalhadores poderiam lutar de maneira realista dadas as condições em que se encontravam. Hoje, em plena era da precarização global, tornou-se cada vez mais importante que os estudiosos das relações trabalhistas, da China ou de outros países, resistam à tentação do subjetivismo e do voluntarismo e recordem o famoso lema de Gramsci: o pessimismo do intelecto e otimismo da vontade.
A busca pela mudança deve começar com potenciais aberturas e mudanças nas alianças entre o capital e o estado, e a dinâmica da transformação político-econômica na China. Alguns desses tópicos já foram discutidos de passagem neste artigo. Em primeiro lugar, o imperativo da preservação da estabilidade, além do crescimento econômico, obrigou os governos locais a desempenhar um papel mais equilibrado na intermediação das relações capital-trabalho, quebrando um padrão uniforme de posições pró-capital, especialmente em casos sensíveis.
Em segundo lugar, como os governos locais confiam mais no capital fundiário, em venda de terras e em projetos especulativos impulsionados pelas finanças para geração de receitas, as autoridades podem estar mais dispostas a disciplinar o capital industrial que causa dificuldades trabalhistas e que prejudica seu histórico de desempenho na manutenção da estabilidade. Em alguns casos, como em Guangdong, os governos provinciais, com o objetivo de modernizar sua estrutura industrial, removendo empregadores com mão-de-obra intensiva para abrir espaço para empresas de alta tecnologia, podem ter interesse em empoderar trabalhadores em alguns setores econômicos.
Em terceiro lugar, estudos recentes da ACFTU (Federação dos Sindicatos da China) revelaram lutas internas e interesses divergentes em diferentes níveis desse órgão oficial. Parece que os reformistas pró-trabalhistas têm sido bastante ativos e eficazes nas instâncias de direção da Federação e em algumas organizações de base (municipais e por empresa). Embora a ACFTU ainda seja subordinada a outros ministérios econômicos no governo central e tenha uma cultura organizacional que enfatiza o controle de cima para baixo e os interesses do Estado, e seja profundamente alienada de sua base de trabalhadores, o ativismo legislativo da ACFTU e as experiências de base em alguns lugares (Friedman 2014; Liu 2011) podem plantar as sementes para a criação de um aliado institucional para as mobilizações dos trabalhadores no futuro.
Finalmente, à medida que alguns movimentos de capitais se deslocam para o interior para buscar mão-de-obra mais barata em lugares mais próximos dos lares dos trabalhadores migrantes, há a possibilidade de que a solidariedade de classe (reforçada por relações sociais e comunidades locais) possa ser mais facilmente promovida. O fato de prestar atenção a essas diversas condições políticas e estruturais no desenvolvimento desigual e combinado da China deve conduzir os estudiosos das relações trabalhistas a fazer distinções mais finas e mais teoricamente informadas entre as categorias do “trabalho chinês”. Nossa área precisa de comparações sustentadas do empoderamento e da política dos trabalhadores de acordo com, por exemplo, setores industriais, extensão da expropriação de terras nas aldeias natais dos trabalhadores ou as condições econômicas no campo. Só então estaremos em condições de dizer quais trabalhadores chineses, e em que circunstâncias, estão empoderados ou não.
Agradecimentos
Sou grata a Jan Breman, Henry Bernstein, He Gaochao, Don Kalb, Lin Lefeng, Li Chunyun, Mark Selden, David Smith, Dorothy Solinger, Goran Therborn, Yang Su, Wang Jianhua e dois revisores anônimos por seus comentários e sugestões sobre versões anteriores deste artigo.
Nota:
- Lin Lefeng e Li Chunyun me alertaram sobre os esforços de algumas ONGs trabalhistas nos últimos dois anos para ajudar a organização e mobilização dos trabalhadores na área de Guangdong. Seus números, eficácia e impactos ainda são limitados. Exemplos incluem o protesto dos trabalhadores de saneamento de Guangzhou, a greve da fábrica de calçados Guangzhou Lide, a greve da fábrica de golfe Shenzhen Qilitian, a greve da fábrica de calçados Shenzhen Geshibi, a greve da fábrica de vestuário Shenzhen Guanglan Qingsheng, as eleições sindicais da loja Shenzhen Walmart e a greve na fábrica Shenzhen Junda. — https://www.google.com.br/search?ei=7es2WsjwGIq3wASN3aGICw&q=hukou+china&oq=urban+hukou+-+tradu%C3%A7%C3%A3o&gs_l=psy-ab.1.3.0i71k1l4.0.0.0.22477.0.0.0.0.0.0.0.0..0.0….0…1..64.psy-ab..0.0.0….0.8gH11w7COA8
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