Dez teses sobre o novo fascismo

A crise capitalista de 2008 abriu uma longa estagnação da economia mundial ainda não revertida. Para inverter esta onda longa depressiva, os capitalistas precisam de aprofundar a exploração. Essa é a base da viragem à extrema-direita.


Publicado em: 2 de maio de 2024

Marxismo

Por Manuel Afonso, de Portugal

Esquerda Online

Esse post foi criado pelo Esquerda Online.

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1. A crise capitalista de 2008 abriu uma longa estagnação da economia mundial ainda não revertida, sobretudo nos centros imperialistas tradicionais. Para inverter esta onda longa depressiva, os capitalistas precisam de aprofundar a exploração a um nível que choca com as conquistas sociais e políticas do pós-guerra, sobretudo nos países do Norte global. Essa é a base da viragem à extrema-direita: uma parte da classe dominante vira-se para soluções de choque contra a maioria da população incompatíveis com a democracia liberal.

2. Outra faceta da crise de 2008 foi acirrar a competição entre velhas e novas potências, nomeadamente a China. Num cenário de desordem mundial e choques geoestratégicos, a restrição das liberdades e o insuflar dos nacionalismos são necessários às elites para preparar confrontos entre potências, inclusive militares.

3. Assim, a nova extrema-direita é financiada por partes das classes dominantes porque serve de ariete para eliminar conquistas, esmagar a esquerda e os movimentos sociais. O contexto traz-lhe diferenças com o fascismo clássico. Mas as funções distinguem-na qualitativamente das direitas tradicionais, por mais extremadas que sejam. É uma direita não apenas reacionária, mas contrarrevolucionária. O conteúdo conta mais que a etiqueta, mas o termo justo é “neofascismo”.

4. A crise de 2008, o crescimento de novas bolhas financeiras, a pandemia e a inflação não afetaram só os capitalistas. Criaram novas classes médias, ligadas, por exemplo, à especulação imobiliária, e esmagaram e exasperaram as tradicionais. Afastadas do Estado Social em crise, estas camadas perdem referências nos regimes democráticos; para se manterem à tona, veem como útil o desmantelamento definitivo do Estado Social, a terraplanagem de direitos laborais, a destruição de toda a regulação económica e ambiental. O que as sintoniza com o programa da extrema-direita.

5. As classes trabalhadoras do mundo entram neste contexto acumulando retrocessos organizativos e políticos herdados do fim do século xx: a derrota das experiências não-capitalistas, ditas “socialistas”; o recuo da sindicalização; a ausência de revoluções vitoriosas, etc. Neste contexto, fenómenos como as ondas migratórias e a introdução de novas tecnologias no mundo do trabalho geram maior fragmentação e competição interna, expondo parte dos trabalhadores a influências reacionárias, deixando na defensiva aqueles que resistem ideologicamente. Por isso, unir as classes trabalhadoras na sua diversidade é essencial para derrotar a extrema-direita.

6. Em países com passado racista e colonial, como Portugal, a fragmentação social e os recuos na consciência política permitem à extrema-direita ativar um ressentimento racista e xenófobo entre as classes populares. Assim, o novo fascismo cria uma “revolta” que não se vira para cima, mas para “baixo” e para o “lado”, paralisando a resposta social contra as elites e alimentando a voragem nacionalista.

7. A crise da reprodução social, dos cuidados e das suas instâncias – famílias, serviços públicos, comunidades tradicionais – causada por décadas de neoliberalismo, a par com os avanços das lutas feministas e LGBTQIA+, é o caldo de cultura para as “guerras culturais”da extrema-direita. O seu objetivo é disciplinar e estabilizar as esferas de reprodução social, impondo a família tradicional como espaço de cuidados gratuitos ao serviço do capital, com as mulheres subjugadas e todas as identidades e expressões sexuais e de género alternativas anuladas na prática.

8. A crise ecológica e climática periga toda a civilização e, como tal, a “normal” reprodução e acumulação do capital. Nesta medida, é uma preocupação para as classes dominantes, que se dividem na forma como a enfrentar (sendo que nenhuma das vias capitalistas para tal é eficaz). Independentemente da fórmula que diferentes setores capitalistas defendem para responder a este problema, ela implica maior controlo social, de fronteiras e de recursos, assim como maior exploração do trabalho. O neofascismo, mais negacionista ou mais ecofascista, é uma fórmula para enfrentar a crise ecológica da perspetiva do capital.

9. Na maioria dos países ocidentais e em cada país em particular, o neofascismo é causa e consequência de várias ondas de recuo de conquistas, organização e capacidade de ofensiva das classes trabalhadoras e da esquerda. Só pode ser travado e definitivamente derrotado impedindo, primeiro, a deterioração desta correlação e, depois, invertendo-a. Para tal, todos os terrenos de luta política são essenciais – parlamentar, eleitoral, ideológico –, mas o decisivo será a mobilização de massas. Sem lutas de milhões de pessoas, nas ruas, radicalizadas e auto-organizadas, não há derrota da extrema-direita. Pelo que a organização e mobilização das massas populares deve ser, mais do que nunca, o eixo estratégico da esquerda.

10. Esta mobilização e capacidade de iniciativa dos debaixo precisa de um referente político e organizativo próprio. As classes dominantes e os seus partidos tradicionais, embora não estejam totalmente virados para o neofascismo, não podem dar-lhe uma luta consequente. As instituições da democracia liberal, por si mesmas, não podem derrotar a extrema-direita. Isto, porque fazê-lo implica um empoderamento das classes trabalhadoras que o capital, democrático ou autoritário, não consente. Se alianças pontuais com setores democráticos das elites podem ser úteis, a orientação estratégica deve ser reconstruir os referentes unitários das classes populares: construir convergências da esquerda política, das organizações de trabalhadores, dos movimentos sociais. A classe trabalhadora tem de voltar a ver-se a si mesma como um corpo único, capaz de ação independente para a defesa e o contra-ataque. Dificilmente qualquer organização de esquerda consegue montar esse campo sozinha, pelo que as táticas unitárias à esquerda, independentes da representação dos partidos do sistema, ganham nova relevância. A unidade dos setores populares, das suas organizações mais moderadas e radicais é essencial. Isso não anula a necessidade de programas e organizações anticapitalistas. Pelo contrário, a dupla tarefa da esquerda anticapitalista e construir referentes unitários e desenvolver e enraizar uma perspetiva própria, que na mobilização contra a extrema-direita encontrei as brechas que permitam um salto em frente, um contra-ataque que parte do combate à extrema-direita para um questionamento global do capitalismo.


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