O futebol é do povo. Ele tomou para si, a ele pertence por ter sido expropriado das elites, e se você a ama o povo, certo seria amar futebol.
Existe uma discussão – datada, tola, é verdade – que sempre retorna à baila do debate coletivo em época de Copa do Mundo (eu vou escrever assim mesmo, com maiúscula, Copa do Mundo. E não vou usar Copa do Mundo FIFA, porque a Fifa é empresa, um dia acaba e a Copa fica, quem viver verá); essa discussão diz respeito à ideia falsa, até meio acanalhada, que afirma o esporte como sendo uma forma de alienação, uma ferramenta do Estado burguês que impediria o avanço da consciência revolucionária. Apesar não ser mais necessário provar o contrário, há sempre algum incauto que insiste no tema, até pinçando exemplos históricos, como o uso que o ditador espanhol Franco fez do Real Madri, injetando dinheiro no clube para popularizar seu regime, ou o apego da ditadura militar brasileira à seleção de 1970, ironicamente levada à copa por um comunista, João Saldanha, cuja demissão do cargo às vésperas do evento é erroneamente associada ao regime, quando na verdade passa mais por seu destempero e atuação circense na mídia da época ( veja “no time do Saldanha não joga cabeludo!”, um clááásico: https://www.youtube.com/watch?v=78Z0mVrxmqI ).
Porém- há sempre diversos poréns na história – para cada exemplo de apropriação conservadora, há exemplos ainda maiores, eu arriscaria numa escala de 1 para 5, de como o futebol só se transformou no que é pelas mãos dos trabalhadores do mundo inteiro. Façamos assim: escalemos aqui as razões pelas quais o futebol é do povo e nós, como militantes da lateral esquerda do espectro das ideologias, precisamos respeitar a paixão que ele desperta. Vamos lá:
- APROPRIAÇÃO, é disso que esse jogo é feito. O Futebol, se você não é de marte deve saber, é um esporte originalmente inglês, restrito a clubes de burgueses brancos, filhos da elite. Um esporte de lordes, para lordes e seus filhos. O povo tomou para si, apropriou-se. Ainda bem
- DIVERSIDADE, AUTONOMIA, ESPONTANEIDADE. Ao tomar para si o esporte, o povo forçou sua prática a partir da diversidade. Vale lembrar: entre os esportes, o ludopédio é dos que menos faz exigências para ser jogado. Qualquer lugar é campo, qualquer número de jogadores, qualquer condição física, altos baixos, mais ou menos gordos; o futebol não exige fenótipo. Em qualquer tempo, com ou sem regras definidas, para haver futebol é preciso apenas de, leia em voz alta, GENTE, POVO. E uma bola, mesmo que em forma de tampa de garrafa, de papel, de pano, de lata; qualquer coisa que possa ser chutada, é bola.
- Ao sair dos espaços das elites, o futebol foi para o pátio das fábricas, fez parte da organização da resistência nos portos, entrou pelas vielas, cortiços e favelas, expandiu-se. Não faltam exemplos da ligação entre futebol e operariado e a Copa da Rússia é uma boa oportunidade para lembrar isso: O Spartak Moscow, amado clube local, nasceu em Krasnaya, rua de Presnya, violento bairro operário, viveu na clandestinidade muitos anos, pois na Antiga União Soviética, como em muitos países, o jogo era restrito a certos grupos. O time carrega consigo um histórico de luta pela popularização do esporte, sendo, inclusive, instituição portadora da ordem de Lênin, das mais altas condecorações do antigo regime soviético. Cada clube russo tem ligação com uma instituição, do exército (CSKA), ao sindicato do trabalhadores ferroviários(obviamente, o Lokomotiv, criado numa época, anos 20, em que o futebol era restrito ao exército. O clube pertencente à companhia Ferrovias Russas, monopólio ferroviário local, com mais de um milhão de funcionários)
- Cada povo e cultura contribuiu de alguma forma para que o jogo fosse o que é hoje, da sistematização dada pelos alemães à epifania técnica holandesa, da verve dramática portenha ao ímpeto uruguaio. Mas nenhum povo contribuiu mais do que o brasileiro. Aqui o esporte deixou de ser europeu. Aqui ele alcançou, com a contribuição negra, seu auge (como prova Mario Filho em “O Negro no Futebol Brasileiro”) Nenhum país fez de um esporte sua identidade cultural como o Brasil fez do futebol. Nós não somos donos do jogo, nem somos os melhores o tempo todo (certamente de todos os tempos, é diferente), porém tornamos o jogo o que ele é a partir da soma de suas características à diversidade que só existe aqui. Nós demos ao futebol o status de ópera dos povos, único local onde os pequenos se agigantam e os gigantes se apequenam. Nós temos Pelé, isso basta.
- MUNDIAL/GLOBAL. Em “Como o futebol explica o mundo”, o jornalista Franklin Foer se propõe a explicar a estreita ligação entre a popularização do jogo e o processo de globalização. O livro é dos mais originais já escritos em torno do assunto, pois cria uma espécie de prisma futebolístico a partir do qual se pode observar como, a partir dos anos 70, a popularização do jogo ajudou a moldar o que viria a ser a geoeconomia dos anos 90/2000.
Por fim, em tempos de debates à base de ódio e meme, lembro aqui um deles. Em um jogo do Coritiba, um torcedor, no meio da arquibancada, preso a uma cama de hospital, segura uma placa: “futebol nunca será apenas um jogo”. O meme tem razão.
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