Por Pedro Augusto Nascimento, de Santo André/ SP
A maior festa popular do país já tem a campeã no quesito protesto e ousadia, em 2018. A escola Paraíso do Tuiuti, que no ano passado teve um carro alegórico envolvido em um grave acidente, que custou uma vida, volta em 2018 com um desfile-denúncia que foi por algum tempo o assunto mais comentado no Twitter no Brasil, e o segundo no mundo na última Segunda-feira (12).
A sucinta fala do carnavalesco Jack Vasconcelos exibida no início do desfile pela Rede Globo não deixa margem para dúvidas: “[Em] 2018 se completam 130 anos da assinatura da Lei Áurea. E o desfile desse ano da Paraíso do Tuiuti vem fazendo uma reflexão, em cima da exploração do trabalho humano. O nosso enredo pergunta: Meu Deus! Meu Deus! Está extinta a escravidão? Ao final do desfile, a gente espera responder a essa pergunta.”.
O enredo não passa pano pra ninguém. Questiona o resultado da Lei Áurea, que legou aos negros recém-libertos da escravidão oficial a violência, a miséria, o abandono e as encostas dos morros, mas chega até os dias atuais. Sim, pois quando Jack Vasconcelos diz que responderia à pergunta-tema do enredo ao final do desfile, estava sendo literal.
Primeiro, com uma ala denominada “Cativeiro Social”, que através de foliões fantasiados de barracos representava as condições em que vivem os negros nas periferias das cidades. Depois, com a ala “Trabalho Escravo Rural” evidenciava as condições análogas à escravidão a que milhões de brasileiros ainda são submetidos todos os anos. Na sequência, o segundo casal de Mestre-sala e a Porta-bandeira representando, respectivamente, o magnata da confecção e a costureira sob regime semi-escravo, nada mais atual. Também teve as alas “Trabalho Informal” e “Guerreiros da CLT”, onde a primeira representava o trabalho precarizado que cresce com o desemprego e a Reforma Trabalhista, em especial para os negros e negras, enquanto os guerreiros, com múltiplos braços sobrecarregados, defendiam as suas carteira de trabalho.
Por fim, a ala “Manifestoches” debocha das manifestações verde-amarelo que apoiaram o impeachment, com foliões fantasiados como um pato amarelo, à lá FIESP, e manipulados por cordas, antecipando o carro alegórico “Neo-tumbeiro”. Tumbeiro é como os navios negreiros eram conhecidos, pois significaram a morte de milhões de africanos sequestrados da África até o Brasil, mortos pelo caminho. No alto desse carro alegórico, no comando do “Neo-tumbeiro”, o “Vampiro Neoliberalista”, numa evidente alusão a Michel Temer.
Já o samba-enredo conseguiu a proeza de focar na escravidão e nas suas sequelas, vividas pelos negros ao longo de quase 4 séculos no Brasil, e ao mesmo tempo animar as arquibancadas a cantarem a plenos pulmões. A letra começa questionando a desumanidade do senhor de escravo, os açoites dos capatazes sobre a pele de reis e rainhas africanos sequestrados, segue reivindicando o papel da ancestralidade africana para a resistência do povo negro e, ao final, levantava a Sapucaí apresentando o Quilombo como um convite à liberdade: “Não sou escravo de nenhum senhor/ Meu paraíso é o meu bastião/ Meu Tuiuti o Quilombo da Favela/ É sentinela da libertação”.
Denúncia e representatividade do início ao fim
Tudo já indicava um desfile arrebatador, desde a Comissão de Frente. Lá, os negros escravizados foram representados sob açoites, mas que com a força da ancestralidade representada pelo Preto Velho, tiveram forças para libertarem-se dos grilhões da escravidão, contando ainda com o arrependimento do capitão do mato, também negro. Não houve espaço para a Princesa Isabel, demonstrando que o fim da escravidão oficial foi obra da resistência negra.
O enredo também mostrou os diversos momentos na história em que a instituição da escravidão foi usada. Desde o Egito antigo, passando pela Grécia, os árabes e os eslavos escravizados, até a escravidão moderna nas Américas, de mão-de-obra negra africana. Essa última, porém, além de ter sido a base fundamental para a expansão e consolidação da economia capitalista em todo o mundo, é parte inseparável da construção do Estado brasileiro.
O desfile surpreendeu a plateia e deixou a Rede Globo, apoiadora do golpe parlamentar e das reformas de Temer, em uma situação constrangedora. No momento da transmissão ao vivo do desfile, era impossível para os comentaristas da emissora minimizarem o impacto, pois tudo estava escancarado nas alegorias e no entusiasmo da escola na Avenida e nas arquibancadas. Ainda assim, mesmo com o Vampiro Neolieralista em destaque, Temer não teve o seu nome citado na transmissão e tampouco o enorme carro alegórico com a Carteira de Trabalho foi relacionado à Reforma Trabalhista. Na entrevista dos membros da escola ao vivo após o desfile, tampouco houve interesse em se aprofundar no tema do enredo. Mas nem precisou: a mensagem já havia sido entregue.
O troco, no entanto, veio nas edições feitas para os compactos dos programas matinais da Rede Globo, que além de mostrarem a Paraíso do Tuiuti por menos tempo do que as demais escolas, fugia das imagens da parte final do desfile, com os patos amarelos e o Vampiro Temer. Há muita expectativa para que a escola não seja punida na apuração, o que seria uma injustiça inaceitável, dado a qualidade do desfile, do samba-enredo à evolução e harmonia.
Desfiles da Mangueira e Beija-flor também trazem protestos para a Avenida
A primeira noite do desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro também contou com um grande desfile da Mangueira, “Com dinheiro ou sem dinheiro em brinco”, que fez um desfile reivindicando a origem do carnaval carioca, os blocos populares. E também não mediu esforços em denunciar o corte de verbas destinadas ao Carnaval feito por Marcelo Crivella, bispo licenciado da Igreja Universal e atual prefeito carioca. O prefeito teve a sua foto pregada a um boneco, representado como Judas.
No segundo dia do carnaval da Sapucaí, foi apresentado o samba-enredo da Beija-Flor “Monstro é quem não sabe amar”, que misturou Frankenstein com críticas políticas ao longo da Avenida. Teve do ex-governador Sérgio Cabral e Adriana Ancelmo representados num jantar em Paris, a tornozeleiras eletrônicas, e o Maracanã sendo relacionado à Frankenstein, em alusão às obras bilionárias que descaracterizaram o estádio original.
Inspiração para um ano que vai exigir muita luta
Essa não é a primeira vez que uma escola de samba apresenta temas políticos da conjuntura no Carnaval. Para não falarmos dos primórdios do carnaval carioca, em 1985, por exemplo, a Caprichosos de Pilares denunciou a penúria vivida pelos brasileiros e reivindicou a campanha das “Diretas Já” no samba-enredo “E por falar em saudade”. Há trinta anos atrás, no centenário da Lei Áurea, a Mangueira apresentou o samba-enredo “Cem anos de liberdade, realidade e ilusão”. Ali, era denunciado que a Lei Áurea não trouxe a liberdade aos negros, ao mesmo tempo em que a volta do Zumbi dos Palmares era apresentada como o sonho da redenção negra.
O que há de novo e alentador no desfile da Paraíso do Tuiuti é trazer de volta ao grupo especial, daquele que é chamado de “o maior espetáculo da terra”, a denúncia e o retrato da vida do povo pobre e oprimido, dos negros e negras, essa que também é uma tradição do Carnaval e de todas as manifestações populares. É a arte refletindo, mas também influenciando a vida. O momento não poderia ser mais oportuno.
Poucos anos devem ser tão marcados pela política como 2018, ao menos no Brasil. Logo em Janeiro, tivemos a condenação sem provas em segunda instância de Lula, que deve impedi-lo de concorrer nas eleições 2018 e pode, inclusive, leva-lo à prisão em poucas semanas. Esse fato, que é a segunda fase do golpe jurídico-parlamentar que a Paraíso do Tuiuti ajudou a denunciar, precede a mais uma tentativa de Temer, Rodrigo Maia e seus aliados corruptos do Congresso de votarem a Reforma da Previdência, ainda esse mês. Se não bastasse a exploração do trabalho humano, denunciado por Jack Vasconcelos, os grandes empresários, Temer, assim como a Rede Globo, querem a Reforma da Previdência para que esse martírio não tenha fim.
Por isso, o samba-enredo da Tuiuti pode ser o canto a inspirar mais uma vez cada um de nós a se unir, a se aquilombar, e a resistir. Vale a pena repetir: “Não sou escravo de nenhum senhor/ Meu paraíso é o meu bastião/ Meu Tuiuti o Quilombo da Favela/ É sentinela da libertação”.
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