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CULTURA

Notas sobre o filme O Jovem Marx e a trajetória de um autor insubmisso

Por Michelangelo Torres, Professor do Instituto Federal do Rio de Janeiro

Que o leitor não ambientado na teoria social de Marx[1] (1818-1883) não se deixe iludir sobre o subestimado título do filme ora aqui resenhado. É em boa ora que chega às telas de cinema[2] um filme que retrata a biografia do mais insubmisso e influente intelectual e dirigente político da história moderna. Ou precisando melhor, trata-se do período de gênese das ideias revolucionárias do comunista alemão, ao qual se convencionou denominar período do “jovem Marx”. O filme Le Jeune Karl Marx, dirigido pelo haitiano Raoul Peck, retrata, a meu ver, o percurso da perspectiva revolucionária que se forma no jovem Marx, ao longo dos anos de 1843 a fevereiro de 1848, quando da publicação do programa da Liga Comunista, conhecido como Manifesto do Partido Comunista, ou simplesmente Manifesto Comunista.

O contexto do artigo de Marx, de 1842, publicado em Rheinische Zeitung (Gazeta Renana), a respeito da coleta de lenha pelos camponeses empobrecidos na Prússia, vista pelo despotismo prussiano como roubo passível de punição violenta, inaugura a trama da narrativa fílmica. O então publicista Karl Marx, colaborador do referido jornal publicado em Colônia, havia tomado posição política em favor dos camponeses pobres do Reno, compelidos a roubarem madeira em função da situação miserável em que viviam, em clara denúncia da repressão do Estado alinhada à defesa da propriedade privada. Como punição, o jornal patrocinado pela burguesia liberal anti-absolutista, em que atuava o jovem Marx, então com 25 anos, recebeu intervenção policial e foi fechado em1843. O periódico contava com expoentes como Stiner, Bauer e Arnold Ruge. O filme mostra, inclusive Marx e seus editores sendo levados pela polícia. Tais autores passariam a ser objeto de virulenta crítica de Marx, que acabara de romper com a perspectiva dos “jovens hegelianos”. O jornal tecia críticas ao governo de Frederico Guilherme IV (lembrando que o governo prussiano combatia o liberalismo burguês), tendo em Marx a postura mais radical. O êxito do filme está em demonstrar como o socialismo científico, a partir da teoria social de Marx (e a colaboração seminal de Engels), supera as perspectivas idealistas do socialismo utópico presentes na Europa do século XIX.

O filme demonstra, ainda que muito de passagem, a profunda influência que havia no “espírito da época” e nos circuitos acadêmicos do pensamento hegeliano. O debate articulava-se em torno dos denominados hegelianos de direita (em defesa do Estado prussiano e difusores de elementos conservadores da filosofia de Hegel) e hegelianos de esquerda (esforçados em difundir o método do filósofo alemão para compreensão histórica dos fenômenos sociais). Marx até pouco tempo era próximo deste último grupo, com o qual veio a romper, como é possível notar na trama.

Em fins de 1843 Marx casa-se com Jenny e ambos deixam a Alemanha rumo à França, onde passam a residir em Paris até 1845, quando é expulso para Bruxelas e, posteriormente, dirige-se a Londres. Em lua de mel em Kreuznach, Marx se dedica agudamente ao estudo e acerto de contas com a filosofia de Hegel, cujo resultado expositivo encontra-se em Crítica da Filosofia do Direito de Hegel (apenas mencionada de passagem em diálogo com Engels no filme), no qual procede a uma monumental e pioneira crítica do pensamento teleológico abstrato especulativo, de cunho idealista, ao mesmo tempo em que supera o materialismo feuerbachiano, ampliando o alcance da crítica para o campo prático da política. Nesta obra, como é sabido, Marx encontrou seu objeto, restava-lhe encontrar sua “anatomia”.

Com o fechamento da Gazeta Renana, Marx e Jenny vão, em agosto, para Paris. irá fundar na capital francesa, com seu então amigo Arnold Ruge, cuja amizade viria posteriormente romper, a revista Anais Franco-Alemães, assumindo o posto de redator-chefe (o que lhe incentiva a mudar-se para Paris). Em 1844 apareceria a primeira e única edição dos Anais, contendo a Introdução a Crítica da filosofia do direito de Hegel e Sobre a Questão Judaica (esta última em co-autoria com Engels). Na magistral “Introdução” do primeiro texto mencionado, Marx realiza a descoberta do sujeito social revolucionário: o proletariado. A perspectiva filosófica dessa descoberta ganharia dimensão política quando o autor em tela toma contato com outro intelectual comunista além de seu tempo, o filho de um magnata da indústria têxtil, dois anos mais jovem que Marx, o “general” ou “comunista de casaca”, Friedrich Engels.

A respeito, momento peculiar do filme é o encontro pessoal de Marx com Engels. Os jovens revolucionários tiveram um primeiro contato em 1842, não amistoso, apesar de que em 1844, em um segundo encontro, selariam o início de uma profunda e admirada parceria intelectual-militante. A respeito, como escreveria Engels, em 1885, “constatamos nossa completa concordância em todas as questões práticas” (apud LOWY 2012 p.134).

Foi ainda em Paris, com 25 anos e já doutor em filosofia, que Marx entrou em contato com o movimento operário representativo do socialismo francês, como mostra o filme. Estudou as greves dos operários tecelões da Silésia, ocorrida em junho de 1844, identificando no proletariado o elemento ativo de sua própria libertação. Se sua atividade como jornalista lhe revelou a importância para a liberdade política, foi, porém, em contato com as lutas sociais da época que se viu compelido à importância do profundo estudo da estrutura da sociedade burguesa.

Contudo, verifica-se algumas inconsistências históricas na narrativa do filme. Dentre elas destacaremos apenas algumas. É sabido que Marx tinha lido o magistral Esboço de uma Crítica da Economia Política, de Engels (redigido em 1843 e publicado nos Anais Franco Alemães em 1844), e não, como retrata o filme, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra (que sequer havia sido publicado). Ao ter contato com o artigo engelsiano, foi apresentada a Marx a necessidade do estudo e elaboração de uma crítica da Economia Política (burguesa, clássica, liberal). Precisando melhor, é Engels que introduz a crítica da Economia Política a Marx, influenciando-o de modo decisivo. Aliás, cumpre notar que sua obra máxima, dos anos 1860, O Capital, tem o subtítulo: “crítica da economia política”.

Aquele ano de 1844, conforme aborda o filme, seria decisivo para o jovem Marx, ao fundamentar suas primeira análises do estatuto ontológico do trabalho em seus Manuscritos Economico-Filosóficos, texto nunca publicado em vida (viria a público apenas em 1932, tardiamente descoberto). Foi nos Manuscritos de Paris que desvendou o esboço decisivo de sua teoria da alienação e o estudo da Economia Política. Ainda em 1844, no mês de agosto, é publicado no periódico Vorwäts (periódico de esquerda publicado por exilados alemães em Paris), o qual é mencionado no filme, o artigo de Marx, de importância singularmente pouco considerada pelos próprios marxistas, institulado Glossas Críticas ao artigo “O rei da Prússia e a reforma social” de um prussiano, em que debate a primeira revolta operária histórica alemã moderna, a saber, o levante dos tecelões de Silésia, texto em que Marx articula o proletariado como elemento ativo da revolução socialista numa perscrtiva da autoemancipação. Foi nessa época que Marx redigiu o pouco conhecido Elementos da Economia Política de James Mill, tratando, inclusive, sobre a temática da alienação.

No ano seguinte Marx é expulso da França. Publica A Sagrada Família, primeira obra em co-autoria com Friedrich Engels. Nesta obra, majoritariamente escrita por Marx, os autores atentam para a superada filosofia de Hegel (ou precisando melhor, a filosofia que viria a ser superada, uma vez que, na ocasião, expressava a elaboração filosófica dominante) e seu invólucro especulativo de caráter abstrato e idealista representado por Bruno Bauer, Edgar Bauer e Egbert Bauer – filósofos “de gabinete” e que expressavam a “quietudo do conhecer acadêmico” das classes ociosas. Se os referidos autores se denominavam “a Crítica da crítica”, Marx e Engels elaboraram uma implacável “crítica da Crítica crítica”. Trata-se de um combate ao idealismo especulativo de cariz hegeliana. Observa-se que, no filme, o subtítulo da obra aparece como sugestão da esposa de Marx, em um diálogo com Marx e Engels.

Na primavera de 1845, Marx elabora suas Teses sobre Feuerbach. É deste contexto a compreensão mais qualificada acerca do proletariado inglês e sua exploração pelo capital, a partir do acompanhamento da pesquisa de Engels, exposta na primorosa e já mencionada A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra, publicada naquele ano. O Comitê de Correspondência da Liga dos Justos, organização clandestina retratada no filme, é organizado por Marx e Engels em 1846, em Bruxelas. Data do exílio em Bruxelas a publicação do ensaio Peuchet: Sobre o Suicídio, texto quase desconhecido e publicado no Gesellschaftsspiegel (uma primeira tradução para o inglês só viria ao público em 1975). Neste mesmo ano de 1846, a célebre A Ideologia Alemã, obra de Marx e Engels, acaba não sendo publicada por falta de editor, sendo resguardada para a “crítica roedora dos ratos” (esta obra seria resgatada posteriormente por Riazanov, publicada em 1932, na então URSS). Neste manuscrito, os autores esboçam a compreensão sobre o materialismo histórico, destacando a necessidade do pensamento combater o mundo existente e, em certa medida, realçando uma reflexão sobre o comunismo (primeiro momento da obra marxiana em que o termo partido comunista é empregado).

Em 1847 Marx se associa a Liga dos Justos (que se tornaria, logo em seguida, por mérito de Marx e Engels, Liga Comunista) e articula diversas associações operárias. A passagem é bem retratada na trama fílmica. No plano teórico, em resposta ao impactante texto de Proudhon, Filosofia da Miséria, Marx redige em francês a demolidora obra A Miséria da Filosofia em resposta ao principal representante dos socialistas utópicos franceses. Neste importante texto Marx diferencia a perspectiva socialista reformista da revolucionária. Aqui, demonstra-se claro que o erro de uma análise da realidade implica em erro na proposta política, como é o caso do utopismo reformista de cariz pequeno-burguês proudhouniano, o qual recusa a ação revolucionária de transformação do capitalismo. Em Marx, ao contrário, já se encontrava um projeto comunista revolucionário claramente formulado. Cumpre observar que, apesar de demonstrar as limitações proudhounianas, Marx identificava no autor um significativo avanço da manifestação teórica e do pensamento operário no contexto de sua época, conforme bem retrata o filme neste aspecto.

No mesmo ano nosso autor pronuncia conferências em Bruxelas, notadamente na Associação dos Operários Alemães, que seriam posteriormente publicadas na Nova Gazeta Renana, em 1849, com o título Trabalho Assalariado e Capital, texto dirigido à militância operária. Em fins de 1847, Marx e Engels são incumbidos da tarefa de redação do Manifesto Comunista. Engels entrega a Marx os Princípios do Comunismo, uma versão preliminar do Manifesto. A responsabilidade pela exposição final do texto recai a Marx. Na euforia revolucionária do contexto social da época (situação revolucionária que ficaria conhecida como a Primavera dos Povos de 1848), o panfleto foi uma encomenda política da Liga dos Comunistas. Trata-se do texto teórico político mais importante e influente já escrito na história. O panfleto, originalmente com vinte páginas, representa um documento político-programático, ao mesmo tempo que uma análise histórica, isto é, uma teoria da realidade e uma crítica do presente integradas ao projeto de emancipação proletária. Tratava-se de apresentar ao proletariado um conteúdo programático embasado em sólidas bases científicas. Na última semana de fevereiro de 1848 foram impressos 3 mil exemplares do panfleto em Londres e divulgados amplamente. O propósito era divulga-lo em diversos idiomas. Simultaneamente explode uma insurreição na Suiça, seguida pela Itália, França, Renânia, Prússia, Áustria e Hungria. A partir de Engels, os jovens Engels e Marx se consagrariam como os fundadores do socialismo científico. Vale aguardarmos um outro filme retratando o período de “maturidade” desses primorosos autores revolucionários.

Uma última nota de observação faz-se necessária. O Jovem Marx filme enfatiza um curioso – e importante – destaque para as mulheres. Se é verdade que a esposa de Marx, a filha de aristocratas Jenny Von Westphalen, tem um papel por vezes sobrestimado (inclusive aparenta ter uma consciência mais avançada do que Marx e Engels – o que, sem dúvidas, é um enorme exagero), por outro lado, na vida real, teve um papel importante na trajetória pessoal de Marx. Por sua vez, a primeira companheira de Engels, a jovem trabalhadora irlandesa Mary Burns e sua irmã Lizzie, de fato, tiveram um papel decisivo para que o jovem Engels se inserisse no meio proletário e pesquisasse os efeitos do capitalismo no operariado inglês – inclusive a imigração irlandesa teve um papel de destaque na Inglaterra durante o auge da Revolução Industrial.

O filme se encerra com cenas contemporâneas de luta acompanhadas da trilha sonora original de Bob Dylan, Like a Rolling Stone. Sem dúvida alguma merece ser assistido. Se, por um lado, não retrata a dimensão histórica da grandiosidade de Marx e Engels, tem o mérito de abordar um período tão intenso (com todas as dificuldades que uma obra fílmica tem em retratar um período histórico e a complexa história das ideias da teoria revolucionária do século XIX) de maneira magistral. Se quis a ironia da história que os circuitos comerciais no Brasil não circulassem o filme como “mercadoria”, façamo-nos de modo desmercantilizado e educativo. Que se organizem os cine-debates pelos quatro cantos do país. Viva Marx! Um brinde ao “Mouro”!

[1] Tivemos a oportunidade de publicar um artigo retratando o percurso intelectual de sua biografia em “A trajetória de um autor insubmisso”, disponível em: https://blog.esquerdaonline.com.br/?p=1435&print=print

[2] Vale observar que o filme não foi exibido comercialmente por nenhuma rede de cinemas no Brasil. Apenas em meados de novembro deste ano que uma pré-estreia foi marcada em São Paulo.