Se o Estado espanhol sair vitorioso isso terá, sem dúvida, implicações no modelo político do conjunto do Estado espanhol e, indiretamente, dos demais países europeus
Artigo de Josep Maria Antentas, professor de Sociologia da Universidade Autónoma de Barcelona (UAB), membro do Conselho Consultivo de Viento Sur, publicado em vientosur. Tradução para português de Carlos Santos para esquerda.net.
1-Golpe de Estado impulsionado pelo próprio Estado. Esta é a maneira mais simples de definir o conjunto de medidas que o governo de Mariano Rajoy, com o apoio de PSOE e Ciudadanos, tornou públicas na passada sexta-feira e que submeterá à aprovação do senado no próximo dia 27. Mais que a aplicação do incerto artigo 155, o que Rajoy anunciou é a suspensão de facto do autogoverno catalão no seu conjunto, utilizando o artigo 155 como pretexto legal. A ausência de precedentes na sua implementação, juntamente com o clima de excecionalidade institucional deste momento, permite assim ao governo espanhol tomar decisões, não só autoritárias e anti-democráticas, como de duvidosa constitucionalidade. O poder viola as suas próprias regras sob a proteção da força e a criação de uma situação excecional. Ativa as válvulas de segurança de que dispõe para se defender em momentos difíceis e mudar as regras do jogo a partir da legitimidade das antigas regras e com a promessa de as defender. Sob um clima de exceção tomam-se, assim, medidas que em si mesmas pressupõem a subversão da ordem anterior, mas em seu próprio nome e legitimidade, com o fim de manobrar para alterar a dinâmica política e social catalã e voltar a uma nova normalidade de contornos mais favoráveis ao Estado. Ataque frontal à democracia, em nome da democracia e para desembocar numa nova normalidade democrática onde tudo decorra por canais aceitáveis, depois de ter alterado a ordem num período de exceção.
Tudo isso, longe de ser uma estranha anomalia, é um exemplo claro da natureza da Lei e do Estado capitalista em geral (e do regime político espanhol de 1978, em particular) que desmonta todas as visões fetichistas e tolas da lei, a legalidade e as instituições a que tanto nos acostumámos em tempos de normalidade rotineira. Sem dúvida, assistimos há semanas a um curso acelerado e prático de teoria do Estado, que força um amadurecimento estratégico acelerado de um movimento cujo senso comum evitou qualquer visão de choque com o Estado a favor de uma agradável desconexão1.
2.A curta aventura do novo PSOE. O voo do novo Pedro Sánchez foi curto. Muito curto. Em duração e em alcance. A sua vitória nas eleições primárias do PSOE no passado mês de maio contra todo o aparelho do partido e o poder mediático e financeiro foi, sem dúvida, um marco sem precedentes. Ainda que o seu triunfo tenha expressado uma importante dinâmica de fundo muito real, uma rebelião a partir de baixo que mostrava a magnitude da crise sem precedentes do partido, Sánchez sempre foi um impostor que se reinventou em paladino dos interesses das bases do partido e em cruzado dos valores da esquerda para canalizar oportunisticamente o mal-estar interno na organização e recuperar a secretaria-geral. A nova equipa de Sánchez nunca teve um projecto sólido de rutura com o social-liberalismo, mas gozava de uma relativa autonomia em relação ao poder económico e mediático e ao aparelho de Estado o que lhe permitia orientar-se para uma futura aliança com o Podemos, confiando que a sua viragem discursiva à esquerda iria reduzir o espaço da formação de Pablo Iglesias2. Perante a crise catalã, no entanto, Sánchez dobrou-se à “razão de Estado”. À razão de Estado de mentalidade de curto prazo e imediatista que encarna a elite político-financeira espanhola em geral, e a sua fração mais à direita em particular, como incapaz de pensar num projeto de Estado viável. Uma “razão de Estado” que só sabe enfrentar a crise catalã de maneira autoritária e utilizá-la como fator de coesão política temporária para solidificar os desgastados pilares do regime político, sem abordar nenhuma das causas que o debilitaram nem desenhar sequer uma lampedusiana3 autoreforma a partir de cima. O PSOE acorrentou-se a um bloco reacionário de uma maneira subalterna, sem poder controlá-lo. Talvez assim Sánchez se tenha livrado da pressão mediática e financeira que teria sofrido se tivesse mostrado a menor hesitação, mas a sua tranquilidade a curto prazo pode converter-se num problema a longo prazo. Atuar como um estadista quando não se dirige nem o processo, nem os tempos, nem nada de nada, não costuma dar grandes ganhos, e competir com a direita na política de mão de ferro, também não.
3.A solidão democrática do Podemos. Perante o fechamento absoluto do bloco PP-PSOE-Ciudadanos, de todo os poderes do Estado com o Rei à frente, do poder financeiro e dos principais conglomerados mediáticos, a coligação Unidos Podemos navega a contra-corrente encarnando sozinhos uma posição democrática. Apesar de limitada e não isenta de contradições e erros (em particular a tibieza mostrada face ao 1 de Outubro), a política do Podemos representa pelo menos uma digna e notável exceção democrática. A dinâmica interna do partido mostra, no entanto, um dado a ter em conta: as suas estruturas intermédias, regionais e locais (exceto a direção catalã), parecem resistir pior à pressão do contexto e adaptar-se mais ao espanholismo dominante que o núcleo central de direcção, com Pablo Iglesias à frente. Este é o enésimo exemplo do falhanço do modelo organizativo e político da formação roxa. Falhanço organizativo porque o verticalismo, centralismo e autoritarismo desanimou desde o início muitos dos melhores quadros, silenciou vozes críticas e promoveu, nas estruturas locais e regionais, oportunistas sem princípios nem qualidades, para além de sua lealdade à direção central. Falhanço do modelo político porque o taticismo eleitoralista e a centralidade da comunicação política relegou os princípios programáticos e descuidou a formação de quadros, exceto em questões técnicas ou comunicativas. Nem a militância nem os cargos intermédios receberam educação política sobre a questão nacional, nem sobre a sua relação com a crise de regime, para além das proclamações genéricas sobre a aposta num Estado plurinacional, muito pouco concretizadas e não inseridas em qualquer tradição histórica e teórica. À medida que a situação se agudizou e se precipitou a crise catalã, muitos dirigentes intermédios e bases do partido encontraram-se desarmados politicamente e com dificuldade para seguir a linha ou para defendê-la ativamente para fora. A superficialidade da política eleitoral-comunicativa, ainda que executada com valentia a partir de cima, choca assim com as complexidades da política real.
4.Implicações. É impossível fazer um prognóstico sério sobre qual será o desenlace do Outubro catalão, mas pode afirmar-se que, aconteça o que acontecer, o seu impacto irá para além da Catalunha. A verdade é que o ataque contra as instituições catalãs anunciado por Rajoy constitui uma escalada repressiva sem precedentes. Se o Estado espanhol sair vitorioso isso terá, sem dúvida, implicações para o modelo político do conjunto do Estado espanhol e, indiretamente, dos demais países europeus. O seu triunfo terá ampliado o campo do possível para o poder, do oficialmente tolerável no contexto europeu, do que pode fazer-se em momentos limite. Marcará o caminho para a nova viragem autoritária dos dias do futuro e facilitará ainda mais a implosão dos mecanismos democráticos institucionais que rebentaram em todo o continente, e em particular na sua periferia Mediterrânica, com a chegada da crise. Se o “Outubro catalão” se resolver pela via repressiva e autoritária outras crises políticas, sejam de que natureza forem, serão resolvidas da mesma forma.
5.Na dimensão desconhecida. Para a Catalunha os desafios do momento estão claros. Primeiro, ter uma agenda própria positiva para além da defesa das instituições catalãs, que deveria concretizar-se em torno dos objetivos da República Catalã e do processo constituinte catalão. Segundo, manter unido o bloco que tornou possível o 1 e o 3 de outubro, que inclui o movimento independentista e um setor mais amplo democrático e defensor da rutura e, se possível, ampliá-lo à Catalunha em Comum que terá que decidir se continua a participar apenas na luta anti-repressiva e democrática ou se tenta definir e impulsionar uma agenda constituinte. Terceiro, reforçar um bloco de rutura, não de processo, que tenha ao mesmo tempo uma política unitária para o governo catalão, para a Assembleia Nacional Catalã (ANC) e a Omnium, e uma política de pressão e rutura a partir de baixo4.
Unidade e firmeza nos objetivos. Dois desafios cruciais para transitar por um terreno tão incerto como inaudito. Estamos a entrar na dimensão desconhecida.
23/10/2017
1 Sobre os limites estratégicos da hipótese da desconexão ver: Referendo de 1º de outubro na Catalunha: dias decisivos, por Josep Maria Antentas
2 Para uma análise mais detalhada do significado da vitória de Sánchez: Antentas, Josep Maria (2017). “Resurrecciones e imposturas de Pedro Sánchez”, Público.es 22 de Maio. Disponível em: http://blogs.publico.es/tiempo-roto/2017/05/22/resurrecciones-e-imposturas-de-pedro-sanchez/ (link is external)
3 “É preciso que algo mude para que tudo fique na mesma”, “O Leopardo”, Giuseppe Tomasi di Lampedusa
4 Desenvolvimento mais estas questões em: Antentas, Josep Maria (2017). “Tribulações do Outubro catalão” 15 de outubro. Disponible em: http://vientosur.info/spip.php?article13108 (link is external)
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