Pular para o conteúdo
CULTURA

Blade Runner 2049: o que a obra-prima de Denis Villeneuve tem a dizer sobre a humanidade

Por Carlos Zacarias, Colunista do Esquerda Online. (Alerta pode conter Spoiler)

Inspirado na obra do escritor Philip K. Dick (1928-1982), Androides sonham com ovelhas elétricas?, Blade Runner: o caçador de androides estreou nas telas de cinema do planeta em 1982. Dirigido pelo cineasta britânico Ridley Scott, que já havia oferecido ao mundo o sombrio e assustador Alien, o oitavo passageiro (1979), Blade Runner não chegou nem perto de fazer sucesso nos cinemas como o filme anterior de Scott. A história distópica da caçada a um grupo de replicantes (androides) revoltosos, passada numa Los Angeles claustrofóbica e futurista situada em 2019, não chegou nem perto de empolgar as plateias dos cinemas que começavam a frequentar os Shoppings Centers e consagravam os filmes de grande apelo comercial como blockbusters.

Depois de lançado nos cinemas, Blade Runner ganhou uma versão em VHS e foi neste formato que passou a encantar milhões de fãs que o consagraram como um dos filmes mais importantes da ficção científica de todos os tempos e um verdadeiro cult, celebrado por todos os amantes da sétima arte. Em fins da década de 1990, Blade Runner foi relançado em uma “versão do diretor” e teve o merecido sucesso que todos esperavam, apesar de não chegar a ser um blockbuster. Na película que foi aos cinemas em 1982, Ridley Scott tinha sido obrigado pelos produtores a adicionar elementos que, de alguma forma, traduzissem uma história demasiadamente complexa para o grande público. Por conta disso, foi colocada uma narrativa em off feita pelo policial Rick Deckard (Harrison Ford), personagem central do filme, além de ter sido oferecida uma versão mais palatável com um final otimista e em plano aberto, onde se utilizaram imagens descartadas do filme O iluminado, de Stanley Kubrick, como forma de aliviar a história por demais pesada. Na “versão do diretor”, além de serem suprimidas a narrativa em off e a cena final quando Deckard e Rachael (Sean Young) seguem em um carro voador por sobre montanhas geladas em sua fuga, são adicionados cenas de diálogos intensos e uma perspectiva que não havia no filme de 1982: seria Deckard um replicante?

A história de Blade Runner gira em torno de uma revolta de replicantes que, proibidos na Terra, são usados para trabalhos perigosos de exploração e colonização de outros planetas. Num dado momento, um grupo de replicantes se rebela, toma uma nave de assalto e ruma para a Terra. Liderados por Roy Batty (Rugter Hauer, numa magistral interpretação), o grupo de quatro replicantes do modelo Nexus 6, o mais avançado até então construído, é apontado como altamente perigoso, porque deixa em sua trajetória um rastro de destruição e morte. Obstinados, os replicantes liderados por Roy tem como objetivo a encontrar o seu criador, o dono da megacorporação Tyrell, responsável pela criação dos replicantes,. O policial Deckard (Harrison Ford), do departamento encarregado de controle e supressão dos replicantes é incumbido da missão de localizar e “remover” (aposentar, matar, eliminar) esses seres. Deckard, que é um policial taciturno e solitário, envereda na atmosfera sombria de uma Los Angeles que fala diversas línguas, chove todo o tempo e exibe permanentemente peças de propaganda projetadas em imagens nos enormes edifícios através de recursos quase que completamente desconhecidos nos anos 1980.

A principal intenção de Roy e seus companheiros em vir à Terra para encontrar o seu criador é tentar de alguma forma impedir que o tempo de vida dos replicantes seja curto, algo estabelecido em mais ou menos sete anos. A obsolescência programada pelas empresas Tyrell para os modelos de replicantes altamente avançados era uma garantia para que estes seres, em tudo semelhante aos humanos, estivessem impedidos de desenvolver as características que distinguem a espécie humana das outras. Era por uma imposição das leis do período que ficava estabelecido que um replicante não podia viver muitos anos, sob o risco de vir a desenvolver sentimentos humanos como amor, ódio, compaixão, inveja etc. Eram essas as perguntas que colocavam o grupo de Roy em movimento em busca do seu criador: por que não podemos seguir vivendo? por que não podemos nos tornar humanos?

35 anos depois do lançamento do filme original, chega às telas dos cinemas Blade Runner 2049, do diretor franco-canadense Denis Villeneuve (diretor de O homem duplicado). Os ingredientes do primeiro filme estão todos lá: a Los Angeles futurista, um policial (blade runner) caçador de replicantes, uma megacorporação que adquiriu o espólio da falida Tyrell e conseguiu licença para produzir modelos ainda mais avançados de replicantes, além de todas as questões filosóficas que nortearam a primeira versão cinematográfica: a morte, o tempo, a memória e o que nos torna humanos. Na nova versão, que se passa apenas 30 anos depois da primeira, ambientada em 2019, o policial K atua como caçador de replicantes insubmissos e dos modelos mais antigos, da geração do Nexus 6, alguns dos quais continuam a existir ilegalmente como remanescentes dos que haviam sido proibidos e eliminados. K (Ryan Golsling numa interpretação sóbria e bastante digna) é, ele próprio, um replicante plenamente consciente de sua condição e do fato de que suas memórias foram implantadas para lhe conferir algum efeito de humanidade, algo indispensável ao seu serviço e à sua existência. K é, como Deckard, um sujeito solitário, mas sua vida é preenchida pela presença de sua companheira virtual Joi (Ana de Armas), que se ressente de não ter existência física para poder tocar o seu parceiro.

A história se desenvolve a partir do encontro entre K e o replicante Sapper Morton (Dave Bautista). Encontrado numa fazenda nas imediações de Los Angeles, Sapper Morton é um modelo Nexus 6 que cultiva proteínas. Desse encontro violento e arrebatador entre dois replicantes que assumem diante do mundo funções completamente distintas, um lutando para sobreviver e outro encarregado de eliminar os seus semelhantes, a possibilidade de que os replicantes possam se reproduzir de maneira sexuada é colocada quando Sapper diz que K jamais entenderia, porque um “milagre” tinha contecido. K segue atrás das pistas e ao retornar ao Departamento de Polícia é encarregado pela sua superiora, Lietenant Joshi (Robin Wright), para que saia em busca desse suposto “milagre”, esse replicante que teria nascido de uma mãe Nexus 6. K segue em sua missão cada vez mais envolvido com Joi, com suas memórias e bastante desconfiado de que ele pode ser esse replicante que nasceu, diferente de todos os demais que foram feitos.

O Blade Runner original de 1982 foi lançado numa década em que a dupla Thatcher e Reagan davam as cartas no planeta. Num mundo dominado pelo ultraliberalismo, a questão colocada no filme de Ridley Scott, de que a revolta e a rebelião tornam humanos até mesmo os seres feitos para serem explorados, dava o sentido definitivo sobre o que era ser um “ser humano”. Ou seja, o ato de se rebelar é um ato humano. Passados 35 anos, a questão é ainda mais atual num mundo em que as grandes corporações avançam e o mercado parece ser o único horizonte possível para a humanidade. Talvez por isso, a questão relacionada ao tema aparece ainda com mais força, pois uma rebelião está sendo preparada pelos replicantes que pretendem se tornar humanos, com direitos plenos, inclusive à reprodução sexuada. É essa a questão colocada como leitmotiv de toda a ação, especialmente numa cena que parece sugerir que uma continuação do filme pode estar por vir. Na cena, um grupo de replicantes insubmissos, que vive escondido no submundo e é liderado pela personagem de Hiam Abbas, ao resgatar K da morte, coloca para o policial alguma coisa como: “A capacidade de se rebelar é que torna os humanos, humanos”.

Mas se o tema da rebelião permeia o primeiro e o segundo Blade Runner, é quando envereda pelas questões filosóficas mais propriamente ditas que o filme ganha força e complexidade, pois não se trata de um filme de ação. Por conta disso, ficamos compadecidos frente ao amor improvável entre o replicante K e sua companheira virtual Joi e nos compadecemos da impossibilidade desta se tornar um ser corpóreo e dormir com K. Em uma das cenas mais bonitas do filme, Joi procura uma prostituta (uma replicante feita para “dar prazer”) e acerta com ela estabelecer uma sincronia entre os seus programas para permitir a Joi fazer amor com K. A beleza dessa cena se compara ao do primeiro filme, quando a personagem Rachael, da lindíssima Sean Young, assistente de Tyrell que não sabe que é uma replicante, vai procurar Deckard angustiada após descobrir sua condição. Enquanto observa as fotografias no apartamento do policial com um olhar melancólico de quem acessa memórias que, agora sabe, não são suas, Rachael se dirige ao piano de onde extrai algumas notas tristes. Ao som de fundo do lindo Love Theme de Vangelis, que fez a magistral trilha sonora do Blade Ruenner de 1982, sentada ao piano Rachael desfaz lentamente os cachos dos seus cabelos, que lhe caem sobre os ombros, como quem se desnuda diante do amante. Ao desenrolar os cachos, Sean Young celebrizou uma das cenas mais sensuais que o cinema já produziu. A propósito da trilha sonora de Blade Runner 2049, de Hans Zimmer, que havia feito a trilha de A origem, há frequentes referências a Vangelis, algo que termina por reforçar bastante a narrativa e fortalecer a ligação dos dois filmes.

Para completar, a presença de Harrison Ford em Blade Runner 2049 confere dignidade ao envelhecimento e a aproximação da morte, algo que já tinha aparecido em Logan (2016). Lá, como aqui, a morte que se aproxima é confirmada como uma vitória da espécie sobre o indivíduo, como bem nos lembrou Henrique Canary no seu belo artigo sobre Logan. Lá, como aqui, o que nos torna humanos não é o fato de não sermos mutantes ou de termos simplesmente nascido; não somos humanos porque nascemos, vivemos, trabalhamos, nos reproduzimos e caminhamos para a morte. O que nos torna humanos, como nos sugerem esses extraordinários filmes, é a nossa capacidade de rebelião, é a incontornável necessidade que temos de colocar permanentemente questões sobre a nossa existência; é a possibilidade de transformar o passado em referência para o futuro, para que as nossas memórias não se percam “como lágrimas na chuva”, como disse o personagem Roy quando ao encarar sua própria morte no filme de 1982 salvou Deckard de ter o mesmo destino, demonstrado que amava mais do que tudo a vida.

Para concluir, assistir o filme de Villeneuve em 3D é uma experiência ainda mais arrebatadora, porque o filme tem uma beleza plástica impressionante. As cores fortes em tons de vermelho, alternam-se com azuis intensos e tornam a experiência de ir ao cinema indescritível. Por tudo isso, Blade Runner 2049 é uma experiência que vale à pena, especialmente porque se trata de uma obra-prima, algo raro nesses tempos sombrios.