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CULTURA

Férias pra que te quero: Blade Runner, de Ridley Scott

No primeiro verão da pandemia, que desejamos que seja o último, considerando que muitas pessoas estão de férias, mas estão em casa, respeitando as recomendações das autoridades sanitárias e dos estudiosos do assunto, abrimos uma coluna para indicar filmes, séries e livros para os nossos leitores. Através de textos curtos, traremos sugestões que acrescentem um pouco de arte, diversão e também algum conhecimento aos que nos acompanham e acompanham o Esquerda Online. Querem saber o que temos pra hoje? Vem comigo, no caminho eu explico!

Carlos Zacarias de Sena Jr., colunista do EOL

Blade Runner, de Ridley Scott: um programa imperdível para humanos, demasiadamente humanos 

Quando em 2019 Blade Runner: 2049 chegou aos cinemas de todo o mundo, eu corri para assistir a película. Fã incondicional do filme de Ridley Scott, lançado em 1982, eu não podia perder a oportunidade de ver a continuação de um longa cultuado por cinéfilos de todo o planeta. E não me decepcionei, pois o filme do canadense Denis Villeneuve, sucedâneo do clássico de Ridley Scott, é um filmaço de encher os olhos. Na ocasião, fiquei tão empolgado com a obra, que dediquei um artigo que publiquei no Esquerda Online e nos últimos dias fiz um comentário sobre o livro e o filme que estão no meu canal do YouTube, para quem quiser conferir.

No entanto, o filme que me fascina e que já vi tantas vezes que perdi a conta é mesmo a obra-prima de Ridley Scott de 1982. Inspirado no magnífico livro de Philip K. Dick, que tem o curioso título Androides sonham com ovelhas elétricas?, que confesso que li tardiamente, usando apenas dois dias para concluir a obra, o filme de 1982, embora diferente em muitos aspectos do livro que o inspira, é uma peça provocadora, que mexe com o nosso intelecto e nos desafia a muitas indagações. Quem gostou do filme, ganhará muito em ler o livro e quem já conhece a obra de Dick, deve correr para ver essa magnífica realização do cinema que é o Blade Runner de Ridley Scott, mas trataremos aqui, sobretudo, do filme.

A história de Philip K. Dick, adaptada para o cinema por Hampton Fancher e David Peoples, narra a história de um grupo de androides (replicantes) que após se rebelarem numa nave espacial que faz a colonização em Marte, rumam pra terra em busca de seu criador. Androides são humanoides criados para o trabalho presado na colonização de outros planetas, visto que a Terra, após uma guerra (Guerra Mundial Terminus, no livro), está praticamente inabitável, tomado por poeira radioativa (no filme há muita chuva e a cidade em que se passa a ação é apinhada de gente de todos os tipos, ao passo que no livro a Terra está deserta e tomada de bagulho/entulho/lixo e poeira radioativa que cria uma categoria de humanos “Especiais”, que são os únicos seres humanos proibidos de emigrar).

Liderados pelo androide Roy Batty (Rugter Hauer), os replicantes, que tem tempo de vida limitado à quatro anos, numa espécie de obsolescência programada para que não desenvolvam ainda mais emoções que lhe tornem indistinguíveis dos humanos, após a rebelião em que mataram vários humanos, partem para a Terra com o intuito de encontrar o seu criador para sanarem essa dúvida atroz acerca de o porquê de precisarem sucumbir depois de determinado tempo. No encalço dos androides, que representam um perigo para os humanos, está o policial e caçador de androides Rick Dackard (Harrison Ford).

A epopeia é recheada de metáforas filosóficas sobre o tempo e a existência, mas de modo algum a narrativa é arrastada, porque a película, apesar de profunda e instigante, passa longe de uma série de filmes de ficção mal feitos, abordando inúmeras questões importantes, sem perder o ritmo de uma narrativa com muita ação, suspense e boas doses de romance, numa atmosfera que homenageia um estilo conhecido como film noir.

Como destaques da produção, além de Harrison Ford, no auge de sua juventude, Sean Young está absolutamente deslumbrante como a androide Rachel, uma Nexus 6 que nem mesmo sabe que não é humana. A propósito, numa das cenas mais belas do filme, a androide Rachel libera os cachos do cabelo preso num penteado incomum, acima da cabeça, sentada ao piano na casa de Deckard, onde tenta lembrar uma canção de cuja memória lhe foi implantada ao som de fundo da canção Love Theme, de Vangelis.

É, contudo, através do complexo personagem Roy Batty, líder dos rebelados, que vemos a cena mais icônica da película, quando, na sequência final, já com seu tempo de vida expirando, Batty mostra o quanto ama a vida, todas as vidas, a bem dizer. É na sequência final que o Nexus 6 diz as seguintes palavras: “Vi coisas que vocês não imaginariam. Naves de ataque ardendo no cinturão de Órion. Vi raios Gama brilharem na escuridão, próximo ao Portão Tannhäuser. Todos esses momentos vão se perder no tempo, como lágrimas na chuva. Hora de morrer”.

O filme, que tem a maravilhosa trilha sonora do genial Vangelis, que vale a pena ser conhecida e apreciada, teve muito tempo depois um novo lançamento no cinema, com a “versão do diretor”, fato que tem se tornado comum na indústria cinematográfica, que precisa adaptar suas histórias para públicos cada vez mais amplos. Na chamada “versão do diretor”, alguns elementos importantes são introduzidos ou retirados da narrativa, tornando-a ainda menos otimista e mais sombria, com pequenas modificações que, entre outras coisas, sugerem a dúvida do próprio Deckard sobre se ele seria ou não humano.

Para completar alguns detalhes e curiosidades para os cinéfilos, Rutger Hauer, que morreu em 2019, ano do lançamento da continuação do filme original de Scott, teria sido o inventor das palavras finais ditas pelo androide Roy Batty citadas acima. Philip K. Dick morreu aos 53 anos em 1982, depois de um AVC, a apenas três meses da estreia do filme de Ridley Scott no cinema. Dick estava muito empolgado pra ver o filme, depois de assistir a algumas cenas que foram mostradas a ele antes do lançamento. As cenas finais da versão que foi ao cinema em 1982, onde se vê Deckard e Rachel sobrevoando montanhas de gelo, foram fornecidas por Stanley Kubrick que tinha acabado de filmar O iluminado (quem assistir a versão do diretor não ver a está cena, que foi cortada). 

A experiência humana é fascinante, mas como somos os únicos seres vivos que tem consciência da própria morte, somos escravos da ideia de que somos seres finitos, o que faz com que o androide Leon, que é um dos membros do grupo de Nexus 6 que se rebelaram e partiram para a Terra, diz numa das passagens também memoráveis do filme: “é uma experiência dolorosa viver com medo”.