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EDITORIAL

Donald Trump e a Rússia: os 100 primeiros dias do novo governo e a geopolítica mundial

Por: Victor Wolfgang Kegel Amal, de Florianópolis, SC

O ataque de 59 mísseis Tomahawk nas bases aéreas sírias, dia 5 de abril, levantou inúmeras reflexões quanto ao caráter da política externa de Donald Trump, particularmente no que concerne à Rússia. Até então, muito se falava de uma orientação conciliadora do novo governo Trump para com os russos. Afinal, o republicano anunciava, desde a campanha eleitoral, uma mudança na política dos EUA em relação à Rússia, o que envolvia tanto a questão síria, quanto a ucraniana, principais pontos de conflito entre os países.

Porém, o ataque norte-americano à Síria, em 5 de abril, levou a que Vladimir Putin declarasse haver uma deterioração significativa nas suas relações com os Estados Unidos.

Ao mesmo tempo, contraditoriamente, ainda estava em curso a investigação do FBI, CIA e NSA sobre o auxílio prestado pela espionagem e diplomacia russas a Donald Trump nas eleições de 2016. Esta investigação já tem em sua conta a demissão do Conselheiro de Segurança Nacional de Trump, Michael Flynn, e a investigação de mais de dezenas de outros membros do gabinete, como o próprio Secretário de Estado Rex Tyllerson. Hoje, dia 9 de maio, Trump revidou, demitindo o Diretor do FBI James Comey, responsável por coordenar a operação.

Para compreender o que já aconteceu e o que pode vir a acontecer no atual conflito Estados Unidos-Rússia na era Trump, faz-se necessário analisar a localização geopolítica da Rússia no contexto internacional atual e, em particular, seu enfrentamento com a União Europeia (UE) e a OTAN. Nesse marco, é necessário também levar em conta o raro apoio russo a partidos de extrema-direita, enquanto uma estratégia para enfraquecimento da UE. A interferência russa nas eleições dos EUA em 2016 é parte dela. As consequências da abertura de investigações sobre a conexão entre o gabinete Trump e o governo russo são produto da confluência dos interesses russos e a tentativa de Trump de mudar a política externa norte-americana. 

Putin contra a expansão da União Europeia e a OTAN
Uma das principais consequências geopolíticas do desmantelamento da ex-URSS foi a perda do controle direto da Rússia sobre os territórios da Europa Central e Oriental, Cáucaso e Ásia Central. Estes, ou eram propriamente territórios soviéticos, ou estavam sob o guarda chuva militar do Pacto de Varsóvia.

A UE e a OTAN aproveitaram o vácuo de poder deixado nestas regiões, principalmente na Europa, para se expandirem para os países antes pertencentes à URSS. Essa ofensiva fez com que a influência da Rússia retornasse à extensão aproximada que o país tinha no século XVII.

A Rússia começou a resistir a esta expansão, principalmente a partir do segundo mandato de Putin na Presidência (2004-2007). Primeiro, tentou dissuadir os países que ainda não haviam entrado nas duas alianças ocidentais a que não o fizessem futuramente. Posteriormente, recriou uma aliança própria.

Desde o fim da URSS, a Polônia, Estônia, Letônia, Lituânia, República Tcheca, Bulgária, Hungria, Eslováquia, Albânia e Romênia fazem parte ou da UE, ou da OTAN, ou das duas alianças. A Rússia, em contrapartida, dirige a Organização do Tratado Coletivo de Segurança (CSTO), que engloba Cazaquistão, Quirquistão e Tadjiquistão na Ásia Central, Armênia no Cáucaso, e Bielorrússia no leste Europeu.

A Geórgia, Ucrânia e Moldávia são países que ainda se encontram em disputa entre russos e ocidentais. Os dois primeiros foram palco de guerras por influência na última década.

Mapa 1. O encolhimento das fronteiras russas pós-Guerra Fria  maparussia
Mapa 2. A expansão da OTAN

 Depois do conflito da Rússia com a Geórgia em torno à questão da Ossétia do Sul em 2008, “Guerra dos Cinco Dias” ou a “Guerra de Agosto”, um dos principais pontos de conflito envolvendo a disputa pela influência no Leste Europeu se deu em 2014 e envolveu a Ucrânia.

Neste ano, na parte ocidental do território ucraniano, onde está a capital Kiev, a população depôs o presidente Viktor Yanukovich por se negar a negociar a entrada do país na UE. Já na parte oriental do país, onde há grande concentração étnica russa, organizaram-se milícias rebeldes em oposição ao novo governo de Petro Poroshenko, acusado de golpismo contra Yanukovich. Em resposta, a Rússia anexou a península da Crimeia e passa a apoiar as milícias anti-Poroshenko, tanto diplomaticamente, quanto militarmente, ainda que na ocasião não tenha admitido esse fato.

A partir de então, começa uma guerra civil entre as porções ocidental e oriental da Ucrânia, o que permanece sem resolução definitiva até hoje. Os EUA impuseram sanções econômicas contra a Rússia em 2014, além de não reconhecer a Crimeia como território legitimamente russo, o que vem causando o maior imbróglio diplomático entre as potências desde a guerra do Afeganistão nos anos 80. 

A Rússia e a extrema-direita
Desde muito antes do conflito ucraniano, a Rússia também vinha procurando intervir dentro dos países centrais da Europa, como França, Alemanha, Holanda, entre outros. Seu intuito era o de enfraquecer a União Europeia por dentro de seus próprios membros. O método de intervenção nesses países tem sido o financiamento e apoio aos partidos de extrema direita anti-UE, ataques cibernéticos de hackers e contrapropaganda.

Como se sabe, a UE é uma das promotoras do desastre nos países africanos e do Oriente Médio. Apoiaram na década de 2000 a abertura de mercados e as políticas neoliberais que levaram à Primavera Árabe e, posteriormente, à crise migratória. Parte importante de sua política para responder a essa crise humanitária, ao invés de abrir as fronteiras, tem sido a manutenção dos refugiados em campos de concentração na Turquia, Grécia, Itália e nos Bálcãs.

A proposta da extrema direita tem sido ainda mais xenófoba e racista. Além de propor um cerceamento ainda maior à entrada dos refugiados, quer impor mais restrições à própria migração legal e à comunidade muçulmana que vive no continente. Esse é o caso do fechamento de mesquitas.

Desde 2015, a extrema-direita se fortaleceu em nível mundial, tendo como centro a Europa. Ela vem forçando a entrada de suas pautas xenofóbicas e racistas na agenda política do continente. Este fortalecimento fez com que seus partidários rompessem em definitivo com a UE e exigissem plebiscitos pela saída do bloco, como foi o Brexit. A AfD (Alternativa para a Alemanha), e a FN (Frente Nacional) de Marine Le Pen são exemplos de partidos anti-UE financiados e apoiados pelos russos.

Como forma de alimentar esta nova extrema-direita europeia, a contrapropaganda que fazem os russos é que o Ocidente é muito fraco no tratamento dos refugiados. Ao permitir a “infiltração” de estrangeiros, provocou insegurança e facilitou a formação de células terroristas. Isto em escala de verdadeira guerrilha virtual, principalmente através das agências de notícias RT (Russia Today) e Sputnik.

Muitos batizaram esse novo método de intervenção política em países estrangeiros como “guerra híbrida”, em que se misturam intensa atividade de propaganda com ataques cibernéticos – em 2015 hackers russos chegaram a atacar o Bundestag alemão -, além de outras táticas não-convencionais ou não-militares. Portanto, não é por acaso que se suspeite que a Rússia tenha interferido nas eleições norte-americanas de 2016.

Depois de muitos atritos entre Vladimir Putin e George Bush durante os anos 2000, acreditou-se que haveria uma melhora nas relações EUA-Rússia com a substituição dos dois na presidência por Dimitri Medvedev e Barak Obama. Mas isso não foi assim. Durante a campanha presidencial russa de 2011, Putin acusou o governo Obama e a inteligência norte-americana de financiar os protestos populares de centenas de milhares que ocorreram contra seu partido, o “Rússia Unida”. Depois, com a intensificação do conflito na Síria e a anexação russa da Crimeia, as relações entre as potências chegaram a seu pior momento desde a era Reagan.

As eleições norte-americanas de 2016
Ainda durante as eleições primárias, muito se estranhou a política externa convergente com os interesses russos proposta por Trump. Para ele, os Estados Unidos deveriam compreender Bashar al-Assad enquanto mal menor na Síria, reduzir os investimentos na OTAN e reconhecer a península da Crimeia enquanto território legítimo da Rússia. Trata-se de posicionamentos radicalmente opostos ao que tradicionalmente defendeu o establishment Republicano e também Democrata.

Porém, muitos consideravam até ingênua a ideia de Trump compactuar com Putin nas duas frentes de conflito – Ucrânia e Síria – e ainda enfraquecer a principal aliança militar dos Estados Unidos. Aventava-se a possibilidade de se tratar de uma linha não-intervencionista, jacksoniana de política externa.

A pouco mais de um mês antes das eleições de novembro, a WikiLeaks divulgou dezenas de e-mails internos do comitê de campanha de Hillary Clinton que continham um conteúdo embaraçoso e até juridicamente comprometedor para a candidata.

John Podesta, um dos líderes do comitê, escreveu para colegas que Hillary Clinton ficava muito nervosa nas tomadas de decisão e que lhe faltava entusiasmo para a disputa presidencial. Os e-mails ainda revelaram que a direção dos Democratas boicotou a campanha de Sanders ao manipular a orientação pró-Clinton de todos os superdelegados, ou seja, delegados escolhidos pela direção do partido e não pela população. Falava também dos negócios entre Wall Street e a Fundação Clinton, fato que geraram suspeitas de “conflitos de interesses”.

Estas divulgações ocorridas separadamente e em diversas datas ajudaram a eliminar a confortável vantagem que Clinton tinha em relação a Trump nas intenções de voto.  Na época, uma pequena parcela da opinião pública aventou a possibilidade de hackers russos terem fornecido os documentos para a Wikileaks. Contudo, sem provas apresentadas, parecia mais uma tática de campanha ou manifestação do neomacartismo democrata do que outra coisa.

Em novembro de 2016, após a fatídica eleição de Donald Trump, ocorreram diversas comemorações na Rússia, incluindo no Kremlin e na Duma (parlamento). Putin mandou um telegrama para Trump afirmando que esperava poder trabalhar em conjunto para retomar as boas relações entre EUA e Rússia. Entretanto, um mês após o fim das eleições, a CIA, o FBI e o Departamento Nacional de Inteligência anunciam formalmente que a Rússia se utilizou de cyber-ataques e lobbies para intervir em favor de Donald Trump.

No dia 29 de dezembro de 2016, Barak Obama expulsou 35 diplomatas russos dos EUA e impôs sanções às agências Diretório Principal de Inteligência (GRU) e ao Serviço Federal de Segurança (FSB), que substituiu a KGB após o fim da URSS. Foram acusados de serem os responsáveis por hackear o comitê de campanha democrata através de cyber-ataques e entregar o material obtido ao WikiLeaks. Contudo, até o momento não havia nenhuma evidência de que Trump e sua equipe estivessem em conluio com os russos ou que tenham sido cúmplices do tal crime.

Nota-se que é de praxe na política internacional que a expulsão do corpo diplomático de um país seja seguida por uma retaliação igual. A reação de Putin, entretanto, foi a mais inesperada: não apenas permitiu a permanência da diplomacia americana na Rússia, como os convidou para o jantar de ano novo no Kremlin. Afirmou que não faria nada em relação à expulsão de seus diplomatas até assumir o novo presidente dos EUA. 

Os 100 dias de governo Trump
Apenas dez dias antes da posse do novo presidente, irrompe um evento bombástico na mídia internacional: o blog “Buzzfeed” publica um relatório secreto da CIA onde constam evidências que Trump sabia da intervenção russa em seu favor e que vem sendo chantageado pela FSB desde 2013.

Neste relatório, encontra-se um documento elaborado por um ex-espião do MI6, a agência de inteligência da Inglaterra, que teria sido contratado por um setor anti-Trump do próprio partido Republicano, durante as primárias, para investigar o então candidato a presidente.

A conclusão a que chega o detetive inglês é de que Trump foi chantageado pela inteligência russa, que gravou, através de câmeras e escutas, festas orgiásticas organizadas pelo republicano no hotel Ritz, em Moscou.

Segundo o documento, esses republicanos que investigaram Trump desistiram de seguir adiante quando viram que seria possível utilizá-lo como ponte para o gabinete da presidência. Mesmo sem apresentar provas, a divulgação desse relatório serviu para colocar fogo no país. Trump afirmou que a divulgação deste tipo de calúnia é uma “tática nazista” do serviço secreto, e passou a negar-se a falar com a imprensa chamada por ele de fake news, como a CNN, NBC, New York Times, entre outros veículos.

Todas estas especulações e vazamentos sobre a relação de Trump com a Rússia ganharam maior concretude quando Michael Flynn, Conselheiro de Segurança Nacional do novo governo, pediu demissão do cargo antes de completar um mês de mandato. O FBI havia revelado que Flynn mentiu sobre o fato de não ter negociado com o embaixador russo em Washington, Sergei Kislyak, antes de assumir como Conselheiro de Segurança Nacional.

Na verdade, Flynn se encontrou diversas vezes com o embaixador antes de tomar posse e, em uma delas, conversou sobre as sanções aplicadas por Obama contra a Rússia em 2014, por conta da anexação da Crimeia. Agora, tanto a CIA quanto o FBI, junto com a Câmara e o Senado, estão investigando até onde pode ir a relação de Flynn com os governos estrangeiros, uma vez que ele também já havia trabalhado para a Turquia pouco antes de entrar na campanha de 2016.

O prosseguimento da investigação sobre Flynn, e sua possível “delação premiada”, podem tornar o governo Trump ainda mais instável do que até agora. E mais. Desde a demissão de Flynn, foram sendo reveladas as ligações de diversos outros membros do gabinete de Trump com a Rússia: Paul Manafort, Carter Page, Roger Stone, Jeff Sessions, D. Trump Jr, Jared Kushner, Rex Tylerson, Betsy DeVos, entre outros muitos membros do alto escalão governamental.

No último 9 de maio, Trump decidiu demitir o coordenador da investigação, o diretor do FBI James Comey, sob o pretexto dele ter sido “leve” ao tratar do escândalo dos e-mails de Hillary Clinton nas eleições do ano passado. Trump, muito provavelmente, indicará algum novo diretor ligado ao seu círculo político para colocar panos quentes no processo. Sendo ou não verdadeiras estas acusações e todo o mistério de espionagem que remonta à Guerra Fria, uma coisa é certa: elas serviram para alinhar Trump com os interesses da velha elite do partido republicano, o GOP (Great Old Party).

O establishment do Partido Republicano sempre foi contra as propostas não-intervencionistas de Trump no debate eleitoral de 2016. Tanto Jeb Bush, quanto Mark Rubio e até Ted Cruz do Tea Party eram contrários ao enfraquecimento da OTAN na Europa, à capitulação a Assad na Síria e ao reconhecimento da Crimeia russa, ou seja, as principais propostas não-intervencionistas de Trump. Após a vitória do magnata contra Hillary Clinton, questionava-se qual linha adotaria afinal o novo governo. Ele iria manter as suas promessas ou iria caminhar junto com o complexo industrial-militar-financeiro norte-americano?

Em seu primeiro mês de mandato, aventou-se a possibilidade de Trump realmente levar a cabo sua proposta de política externa. Foram indicados Michael Flynn, pessoa notoriamente próxima da Rússia, e Steve Bannon, dirigente da extrema-direita americana, para o círculo íntimo militar e de segurança dos Estados Unidos. Ambos extremamente alinhados com a política de Trump. Contudo, a pressão política exercida contra Trump pelo desenrolar das investigações, e a sua utilização pela mídia, tornou a manutenção de pessoas favoráveis a uma aproximação com a Rússia insustentável.

Tornaria ainda mais verídica a narrativa de que Trump sabia e se utilizou do apoio russo à sua campanha. Flynn foi substituído por uma figura tradicionalíssima do Partido Republicano e alinhadíssima a John McCain, principal opositor republicano de Trump: o general H. R. McMaster. Depois, no começo de abril, Trump demitiu do Conselho de Segurança Nacional seu estrategista de campanha, Steve Bannon, homem responsável pelo site de notícias de extrema-direita, Breitbart. Ou seja, houve uma reorganização significativa na parte relativa à política externa de seu governo.

Ao mesmo tempo em que há esta reorganização, Trump leva a cabo diversas operações internacionais que estão na contramão do que defendeu em sua campanha. No Oriente Médio, desde fevereiro, foram retomados com força os bombardeios no Iraque, causando mais de mil mortos só em março, e foi despejada a “mãe de todas as bombas”, presumidamente a mais forte depois das nucleares, no Afeganistão.

Na Síria, como resposta a uma suposta utilização de armas químicas por Assad, o presidente mandou 59 mísseis Tomahawks em bases militares sírias. No Sudeste Asiático, Trump vem causando tensões com a Coréia do Norte ao adotar uma retórica agressiva. Afirmava-se haver acabado a “paciência estratégica” adotada por Obama. E, por fim, desde que assumiu o governo, o fato é que Trump ainda não reconheceu a Crimeia russa e, tampouco, pôs fim às sanções econômicas contra o país.

Assim, a realidade é que atualmente em todos estes cenários a política de Trump vem esbarrando com a de Putin, em diferentes níveis, a despeito do que era esperado após o debate eleitoral de 2016. Esta adaptação do novo presidente ao GOP republicano, que ocorre mais aceleradamente pelo escândalo que o envolveu, parece tornar cada vez mais improvável a desejada “reaproximação” com a Rússia.

 

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