(Não é uma crítica cinematográfica. Não contém spoilers)
“O quarto de Jack” (Room, dir. Lenny Abrahamson, 2015) é uma adaptação para o cinema do livro homônimo da escritora irlandesa Emma Donoghue. O enredo gira em torno de um menino de 5 anos chamado Jack. Sua mãe, Joy, foi sequestrada por um psicopata que a mantém presa há cerca de 6 anos dentro de um quarto de 7m². Jack é fruto dos estupros sistemáticos sofridos por Joy.
Ele nasceu no quarto, e jamais saiu de lá. Apesar disso, teve um desenvolvimento cognitivo relativamente normal. É uma criança inteligente, ativa e com uma personalidade forte. Mas Jack ignora a existência de qualquer coisa além de seu próprio quarto. As informações do exterior chegam até ele por meio da TV e de uma claraboia instalada no teto, que permite que um pouco de luz solar entre no cômodo. Sem saber como lidar com esta terrível situação, a mãe de Jack ensinou ao filho que o mundo realmente é aquele quarto. E Jack está plenamente convencido disso. Joy explicou a ele que não existem mais pessoas no mundo além deles dois e de “Old Nick”, o sequestrador.
Todos os dias pela manhã, Jack acorda e passeia seu mundo, dá bom dia a todos os seus brinquedos e objetos pessoais, e conversa com eles o tempo todo. Jack acha que as pessoas da TV são feitas de cores, como os desenhos animados, e que não existem de verdade. Nada do que está na TV é verdadeiro. É apenas diversão. E Jack realmente se diverte. Em sua mente imaginativa, depois da claraboia não há nada, apenas o espaço sideral.
Jack vive uma vida relativamente tranquila e feliz em seu mundo, e é tomado pelo medo quando sua mãe decide que chegou a hora dos dois tentarem escapar. Não é preciso dizer mais nada sobre este belo filme, indicado a vários prêmios internacionais, inclusive o de melhor filme no Oscar e no Globo de Ouro 2016. Nosso assunto no presente artigo é outro.
Qual o tamanho do mundo?
Um estranho fenômeno ocorre hoje dentro da esquerda. Por uma série de razões que exigem investigação e debate, está se perdendo a noção de totalidade e universalidade. O mundo está sendo reduzido às realidades locais, ao meu setor de militância, às minhas angústias, à minha cidade etc. Se trabalho em uma categoria em que o lulismo possui muito respaldo, logo passo a ver a situação do país e as tarefas da esquerda desde esse único prisma.
Nada mais importa. Todos os outros aspectos da questão são distorções e confusões de gente desinformada, que não vê a verdade que eu vejo. Se, ao contrário, em meu meio social a Lava Jato tem grande apoio, ocorre o mesmo, mas com os sinais invertidos. Se milito em um sindicato, logo todas as minhas energias e minha visão de mundo é moldada pelas lutas e necessidades do meu sindicato e da minha categoria, pela correlação de forças específica que encontro em meu local de trabalho, pelas vitórias ou derrotas que sofro nesta luta.
E assim perco a noção de totalidade. Se sou de esquerda e só converso com gente de esquerda, logo passo a acreditar que os grandes problemas do mundo estão concentrados justamente na esquerda, que a esquerda é culpada por tudo, e que é até pior que a direita. De novo, rapidamente perco o senso de proporções e a noção de totalidade.
Ora, pelo menos desde Hegel, sabemos que a realidade é a síntese de múltiplas determinações. Isso quer dizer que meu mundo importa. Mas ele está inserido dentro de uma realidade muito maior. Pode ser que meu mundo reflita fielmente a realidade geral, e que minhas necessidades coincidam totalmente com as necessidades do movimento. Pode ser… mas é raro, porque o mundo (aquele de verdade) é grande e complexo.
E o meu mundo particular, por mais rico que pareça, é pequeno e limitado. Minhas derrotas, por mais dolorosas que sejam para mim mesmo, são uma parte muito reduzida da realidade. Por isso, com muito mais frequência, o que verifica-se é uma coincidência apenas parcial entre as características do meu mundo e o mundo de verdade. Não é raro, inclusive, que haja uma contradição entre a minha realidade e a realidade do conjunto do movimento.
Porque as realidades específicas são quase sempre reflexos distorcidos, leve ou fortemente deformados, da realidade geral. A perda dessa noção de mediação entre a minha realidade e a realidade geral me empurra cada vez mais para viver no quarto de Jack. Eu, você e o outro. Mas não todos juntos. Cada um no seu próprio quarto, e todos acreditando que aquilo é mundo.
Relativizar o valor das realidades específicas não significa negar o papel das experiências concretas. Ao contrário, o concreto (que deve ser sempre a matéria-prima dos marxistas) é justamente a realidade liberta de seus traços episódicos, acidentais, locais, setoriais. O concreto é a realidade pensada, relacionada, analisada teoricamente. Já a minha realidade pessoal não é concreta no sentido marxista do termo. Ao contrário, é uma abstração, se eu não a submeto a uma análise crítica, se eu não a comparo com as outras realidades vividas por meus companheiros. Se vivo fechado em meu próprio mundo, vivo uma abstração.
Para sair do quarto de Jack
Se a esquerda quer realmente lutar por um novo mundo, deve primeiro definir as dimensões desse mundo. Quero mudar o mundo inteiro ou só o meu? A esquerda precisa resgatar o sentido de totalidade e de universalidade. Esses conceitos não são incompatíveis com os conceitos de desigualdade, especificidade, heterogeneidade. Ao contrário. Somente em uma perspectiva totalizante, é que cada parcela específica do movimento geral revela toda a sua importância.
Aqueles que lutam por um novo mundo devem compreender que cada movimento, cada setor, cada sindicato, cada cidade estão inseridos em uma realidade mais global. Minha vida não vai mudar significativamente se o sistema não mudar. Por isso, a luta da esquerda é contra o sistema. Cada manifestação concreta do sistema explorador-opressor deve ser fortemente combatida, mas sempre dentro de uma perspectiva de transformação geral da sociedade.
A esquerda precisa resgatar também uma perspectiva internacionalista. Porque o Brasil é grande, mas também não é o mundo. Mesmo quando as análises e os programas ultrapassam as barreiras locais e setoriais e adquirem dimensões nacionais – mesmo nestes casos, ainda precisamos elevar nossos olhos para o que ocorre no mundo. Se o socialismo só pode ser um sistema mundial, a luta por ele e o programa da sua realização devem também ser internacionais.
Por fim, a esquerda precisa ser marxista. Ser de esquerda é lutar contra a desigualdade, a injustiça, a opressão e a exploração. É querer mudar o mundo. Isso é ótimo, e por isso nos colocamos com orgulho no terreno geral da esquerda. Quem acha que a oposição “esquerda-direita” acabou também vive em uma espécie de quarto de Jack, onde as ideias e as ações da direita não têm nenhuma importância.
Mas basta olhar brevemente pela claraboia para ver que a direita continua viva lá fora, e que continua encarando a esquerda como seus principais inimigos. Mas dito tudo isso, é preciso reconhecer que os ideais de esquerda são insuficientes para mudar o mundo. Ser de esquerda nos permite saber o que não queremos. Mas para saber o que queremos, é preciso dar um passo a mais, e ser marxista.
Porque somente o marxismo é capaz de sintetizar em um programa as diferentes (praticamente infinitas) necessidades de cada um desses movimentos, dessas categorias, desses locais de trabalho. Este programa passa pelo fim da propriedade privada, pela superação da sociedade de classes e pelo combate a toda opressão e toda injustiça. Ou seja, é um programa socialista.
A primeira condição para isso é que abandonemos o quarto de Jack. Lá fora estão nossos verdadeiros inimigos – e também os nossos aliados, os sujeitos da transformação que queremos. E o mais importante: lá fora estão as respostas para nossas angústias, para os nossos problemas específicos. Não tenhamos medo. Ao diabo com este cubículo de 7m² que nos engana, nos oprime e nos joga uns contra os outros. Nossos inimigos são tão poderosos! O mundo é tão grande, e tem tanto a oferecer! Encaremos juntos o sol lá fora.
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