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MUNDO

A partir de 7 de outubro, cidadãos beduínos de Israel lutam para divulgar suas perdas

Apesar do impacto do ataque do Hamas, muitos no Naqab sentem que só podem contar com o apoio da comunidade em um contexto em que a vida beduína não é valorizada

por Kaid Abu Latif, com tradução de Waldo Mermelstein
Oren Ziv

Ibrahim al-Quran, um educador da aldeia beduína não reconhecida de Al-Bat, no Naqab. Dois de seus filhos foram mortos em 7 de outubro. (Foto: Oren Ziv)

Wahid al-Huzail está exausto. Nos últimos dois meses, o homem de 51 anos lidera o Fórum de Vítimas Beduínas do Neguev, uma ONG recém-formada que foi criada para apoiar as famílias de cidadãos beduínos árabes de Israel que foram mortos, feridos ou sequestrados durante o ataque liderado pelo Hamas  em 7 de outubro. Apesar de toda a ampla cobertura nos meios de comunicação israelenses e internacionais sobre a situação dos reféns em Gaza e das comunidades mais afetadas pelos massacres, essas vítimas foram em grande parte esquecidas.

Dezessete cidadãos beduínos do deserto de Naqab (Neguev) foram mortos naquele dia, tanto como resultado de foguetes disparados de Gaza quanto depois de serem baleados por militantes que romperam a cerca que divide a Faixa. Outros seis beduínos foram sequestrados e levados para Gaza; Dois deles foram libertados como parte de uma troca de reféns e prisioneiros durante o cessar-fogo temporário da semana passada, enquanto os outros quatro permanecem cativos. “Você entende que ninguém está nos levando em conta?”, perguntou al-Huzail, com desespero na voz.

Abrangendo quase 5.000 milhas quadradas, o Naqab constitui cerca de metade do território de Israel dentro da Linha Verde (fronteira de Israel até 1967). Cerca de 250.000 beduínos vivem na área – quase metade deles em aldeias que não são reconhecidas pelo Estado, apesar de em muitos casos serem anteriores à sua existência. 

Além de serem impedidas, em sua maioria, de se conectarem à infraestrutura de água e eletricidade administrada pelo Estado, bem como enfrentarem tentativas do Estado de deslocá-las  e expropriar suas terras, essas comunidades também são particularmente vulneráveis em tempos de guerra: Israel nunca construiu abrigos contra foguetes ou sirenes para elas, e o sistema de defesa antimísseis Domo de Ferro não está programado para interceptar foguetes que devem pousar em suas proximidades. E isso não é um descuido: Israel continua investindo na  construção de novas comunidades exclusivamente judaicas na mesma região, que recebem toda a infraestrutura e proteção negadas aos vizinhos beduínos.

Vista sobre a aldeia beduína não reconhecida de Al-Bat, onde seis pessoas foram mortas por foguetes disparados de Gaza em 7 de outubro. (Oren Ziv)

Desde 7 de outubro, al-Huzail está em constante comunicação com as famílias das vítimas beduínas. Para ele, elevar suas histórias é importante tanto para a resiliência da comunidade quanto para criar pressão política sobre o Estado para atender às suas necessidades. Mas ele confessa que está encontrando dificuldades para acordar todas as manhãs e reunir as forças necessárias para suportar a tragédia que afeta sua comunidade.

A vítima beduína mais jovem, Yazan Abu Jama’a, de 5 anos, morreu quando um foguete disparado de Gaza explodiu perto de sua casa na vila de Arara al-Naqab durante as primeiras horas da guerra. Outra vítima, Abd al-Rahman Nasasra, de 50 anos, foi morto a tiros ao tentar resgatar pessoas do festival de música Nova que foi atacado por homens armados do Hamas. O trabalhador da construção civil Amer Odeh Abu Sabila, de 25 anos, pai de dois filhos, também foi baleado ao tentar salvar uma família judia perto da delegacia de Sderot. A lista continua.

Depois, há os sequestrados. Quatro deles eram da mesma família: Yousef al-Ziadna (53) e seus três filhos, Hamza (22), Bilal (18) e Aisha (17), foram sequestrados enquanto trabalhavam em um celeiro no Kibutz Holit (Aisha e Bilal já foram libertados). Os outros dois reféns beduínos são Farhan al-Qadi, de 53 anos, que foi sequestrado do Kibutz Magen, onde trabalhava como guarda no setor de empacotamento; e Samer al-Talalqa, de 22 anos, que trabalhou no Kibutz Nir Am.

Kamel al-Ziadna, primo de Yousef, disse ao +972 que a família ainda está orando para que os reféns restantes retornem ilesos. “Houve e ainda há momentos difíceis, especialmente porque não sabemos nada sobre nossos parentes que ainda estão em cativeiro”, disse ele. “Nossa alegria com o retorno de Bilal e Aisha se mistura com tristeza porque Yousef e Hamza ainda estão lá. Esperamos que todos os reféns voltem rapidamente para os braços de suas famílias.”

Yonatan Sindel/Flash90
Pessoas ao lado de fotos de civis mantidos reféns em Gaza, Jerusalém, 24 de novembro de 2023. (Yonatan Sindel/Flash90)

‘Acredito que vamos enfrentar os desafios’

A cultura beduína valoriza particularmente dois modos tradicionais de apoio comunitário: faza’a (fornecer ajuda o mais rápido possível) e aouna (ajudar os necessitados). Mas, após o 7 de outubro, apesar dos esforços da comunidade, esses valores foram esticados no limite. 

Além de lamentar por aqueles que foram mortos e temer pela segurança dos reféns, a comunidade também está tendo que lidar com a perda de emprego: muitos beduínos de Naqab ganhavam a vida trabalhando em comunidades que foram evacuadas devido à sua proximidade com Gaza, enquanto outros perderam empregos devido à atmosfera generalizada de medo e suspeita que está tratando cada palestino como um inimigo em potencial. Como resultado, a comunidade ficou se perguntando como a faza’a  e a aouna podem ser sustentados em um contexto onde a vida beduína não é valorizada.

Ibrahim al-Hasanat, diretor da Kafa para a Mudança Social no Neguev, administra um centro de ajuda em Rahat – uma cidade no Naqab que abriga mais de 70.000 cidadãos beduínos. Desde o início da guerra, ele tem trabalhado em estreita colaboração com uma coalizão de várias organizações da sociedade civil e o município de Rahat para fornecer alimentos, remédios e outras necessidades básicas a todas as famílias que precisam deles.

“Noventa por cento das mulheres beduínas trabalham no setor agrícola perto de Gaza”, disse ele ao +972. “Seus salários são baixos; vivem precariamente. Quando tudo parou, essas mulheres – algumas das quais são mães solteiras – não tinham como alimentar seus filhos. Nosso centro de ajuda foi projetado para esses casos difíceis.”

Aiob Abu Madegam
Ativistas judeus e árabes preparam cestas básicas para famílias necessitadas no Naqab, Palácio Cultural Rahat, sul de Israel, 29 de novembro de 2023. (Aiob Abu Madegam)

Al-Hasanat explicou que, embora faça esse trabalho há mais de 15 anos, fornecendo ajuda a mais de 2.000 famílias nesse período, o aumento da demanda desde o início da guerra foi sem precedentes. No entanto, está confiante de que estão à altura da tarefa: “Acredito que, através da coligação formada após a guerra, seremos capazes de enfrentar os desafios, e estou certo de que teremos sucesso, apesar da grande dificuldade que enfrentamos”.

Os cidadãos beduínos também estão de luto por perdas fora de sua comunidade – particularmente  a de Vivian Silver, uma moradora de 74 anos do Kibutz Be’eri que originalmente se pensava ter sido sequestrada, mas cujos restos mortais foram identificados várias semanas após a guerra. “Durante 38 dias, imaginei-a fazendo uma revolução lá [em cativeiro em Gaza], falando com todos sobre o seu trabalho e promovendo a paz”, disse Sliman al-Amour, codiretor da AJEEC-NISPED, um grupo conjunto árabe-judeu cofundado por Vivian Silver que trabalha para promover uma sociedade solidária e o desenvolvimento da comunidade árabe no Naqab. “Durante 38 dias esperamos e oramos pelo retorno dela.”

Sliman, que é da aldeia beduína de Kseifeh, disse que está lutando para aceitar a notícia de que Vivian está entre as vítimas dos ataques de 7 de outubro. Vivian já havia atuado como codiretora da organização e permaneceu ativa no conselho de administração até ser morta. Ela trabalhou incansavelmente para organizar grupos da sociedade civil que trabalham no Naqab e ajudou a criar uma forte rede de grupos locais que trabalham nas várias comunidades.

“Não importa onde estivesse, ela sempre foi recebida com o respeito que merece por seu trabalho como combatente da paz reconhecida não apenas no Naqab, mas em todo o mundo”, explicou Sliman. “Ela iniciou e gerenciou muitos projetos em Gaza e na Cisjordânia e trabalhou de todas as maneiras possíveis para uma verdadeira parceria [entre israelenses e palestinos].”

Essa visão de parceria tem sido exibida à medida em que organizações da sociedade civil árabe e judaica se uniram em Rahat para apoiar as famílias de todas as vítimas, independentemente de sua origem. Fouad al-Ziadna, parente dos quatro cidadãos beduínos feitos reféns da mesma família, dirige o Centro Comunitário Rahat, que abriga uma sede improvisada para projetos conjuntos que prestam ajuda na região. Neste momento de crise e tragédia, Ziadna enfatizou que ele e sua equipe e voluntários continuam fazendo o que fazem melhor: “Quando há um grande evento, não estamos assistindo de fora, mas sim trabalhando pelo bem-estar das pessoas que agora mais precisam”.

Mas a solidariedade e a ajuda mútua só até ponto e os beduínos de Naqab veem que o impacto desproporcional da guerra em sua comunidade aponta para um problema mais profundo de negligência por parte das autoridades do Estado israelense. “Não é à toa que as primeiras pessoas mortas por foguetes no Naqab na manhã de sábado [7 de outubro] tenham sido sete cidadãos beduínos”, disse al-Amour, co-CEO da AJEEC-NISPED. Referindo-se às aldeias não reconhecidas, acrescentou: “100.000 residentes vivem em condições extremamente duras e uma completa falta de proteção”.

Kaid Abu Latif é empresário e agricultor tradicional da cidade de Rahat, no Naqab.

Original em https://www.972mag.com/bedouin-citizens-negev-october-7/