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Colunas

Derrotar o golpismo de Bolsonaro nas ruas e nas urnas. É possível?

Bolsonaro inflável
Scarlett Rocha

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

Quem não pode morder, não mostre os dentes

Sabedoria popular portuguesa

 

Estamos na véspera do sete de setembro de Bolsonaro. Os neofascistas vão mostrar os dentes. Chegou a hora da esquerda confirmar que tem disposição de morder. Sangue quente e cabeça fria, glacial. O desafio principal, neste momento da campanha eleitoral é reconquistar nas ruas a supremacia política, no próximo sábado dia dez de setembro. 

A resposta à pergunta do título é, portanto, complicada, porém, inescapável. É complicada porque respostas simples, seja um sim ou um não, são insatisfatórias. Mas é inescapável porque a essência desta luta eleitoral de 2022 é saber se uma derrota nas urnas de Bolsonaro irá enfraquecer de forma devastadora a extrema-direita, em particular a corrente neofascista. 

A chave é saber se será ou não devastadora. Há uma diferença entre derrotas eleitorais e derrotas políticas. Derrotas eleitorais são transitórias, efêmeras e temporárias. Derrotas políticas são severas, graves e, potencialmente, irreversíveis.

Afinal, a marcha em Copacabana é a principal “carta na manga” do bolsonarismo para impactar o processo eleitoral. A dimensão do que vamos assistir neste sete de setembro será uma indicação da força “muscular” da extrema-direita. Subestimar a potência social de choque dos neofascistas, e os impactos políticos que provocam tem sido o maior erro da esquerda brasileira desde 2015/16.

Amanhã teremos uma resposta, ainda que parcial. Se as manifestações de apoio ao golpismo forem poderosas o desafio da mobilização antifascista repousa no próximo sábado dia 10 de setembro, por enquanto, muito mal preparada e convocada.

Ainda não podemos prever sequer se estas eleições serão decididas no primeiro ou segundo turno. A hipótese mais perigosa, porém, provável, é que Bolsonaro consiga conquistar um lugar no segundo turno. Infelizmente é assim, mas uma hipótese é somente uma conjectura. 

O cálculo nesta análise se apoia em duas premissas: (a) a primeira é que, embora a candidatura de Lula mantenha claro favoritismo, o bolsonarismo preserva a simpatia da “massa” da burguesia e uma audiência nas camadas médias em escala tal que sugere presença no segundo turno; (b) a segunda é que é possível que a rejeição a Bolsonaro, depois de quase quatro anos no poder, embora muito maior que a rejeição ao PT, não seja grande o bastante para deslocar uma parcela dos eleitores de Ciro Gomes e, em menor escala de outros candidatos, para o voto útil em Lula já no dia dois de outubro.

Mas é possível derrotá-lo, sim ou não? Nas urnas é possível, embora a disputa esteja longe de ter se esgotado. Nas ruas, depende da disposição de luta das massas populares e da determinação das organizações e núcleos dirigentes. Uma resposta afirmativa, o sim sem mediações é, portanto, politicamente, ingênua. O bolsonarismo não deixará de existir como a segunda força política do país, se Bolsonaro perder a eleição, mas sobreviver incólume, se não for investigado e preso. O que vai depender da força da mobilização social antifascista. 

Uma aposta unilateral na vitória no terreno eleitoral, desvalorizando a importância do próximo dia dez de setembro poderá ser fatal. Superestima o significado das eleições presidenciais no atual desenho do regime, e ignora o peso da maioria reacionária que, provavelmente, será eleita para o Congresso Nacional. Desconhece o peso político que o Judiciário conquistou com a operação Lava Jato, esquece a força econômico-social da classe dominante, e subestima a pressão imperialista sobre o Brasil. 

Desconsidera o deslocamento de uma parcela importante da classe média para a direita, e diminui o impacto do surgimento de um movimento neofascista. Não menos importante, fantasia que um possível futuro governo liderado pelo PT estaria disposto a ir até ao fim na revogação da obra do golpe. O que só seria possível apelando à mobilização popular permanente, uma condição incontornável para os previsíveis confrontos. Acontece que o PT está autolimitado pelas contradições internas de sua direção, evidenciadas ao longo dos últimos vinte anos.  

Mas uma resposta simples negativa é, também, unilateral. Se considerarmos que não é possível derrotar o bolsonarismo nas eleições, porque o neofascismo sobreviverá a uma derrota eleitoral, sobra o terreno da ação direta para conquistar a vitória política e social. Há um grão de verdade neste raciocínio. Mas é perigoso se for interpretado de forma unilateral. A imensa maioria da esquerda, inclusive da esquerda radical decidiu não medir forças com o bolsonarismo nas ruas neste dia do bicentenário. Foi uma decisão madura e sensata. 

Erram aqueles que, na esquerda radical, subestimam o impacto monumental da vitória de Lula teria sobre o estado de ânimo dos setores mais organizados da classe trabalhadora e das massas populares, seis anos depois do impeachment, e da terrível experiência com o governo Bolsonaro. Equivale a dizer “revolução ou nada”, o que é um discurso ultimatista. Pior, em função da atual relação social de forças desfavorável, em que não há, nem sequer remotamente, disposição para um confronto frontal nas ruas com os fascistas, que seria de máxima gravidade, trata-se de um ultimato dirigido aos trabalhadores, e não ao inimigo de classe.      

A esquerda radical tem como uma das suas palavras de ordem clássicas o slogan “só a luta muda a vida”. É um slogan justo. Deve ser repetido, incansavelmente, porque é educativo e inspirador. Mas ele não autoriza concluir que as eleições não mudam nada. Porque, simplesmente, isso não é verdade. 

As eleições são, também, um terreno no qual a luta de classes se desenvolve, e a indiferença sobre o seu resultado revela uma inocência indesculpável. E tem como consequência a incompreensão de quem se deve combater, prioritariamente. Não é possível lutar contra todos, com a mesma intensidade, o tempo todo. Na política é preciso escolher contra quem lutamos, prioritariamente, se queremos vencer. Há um fascista com peso de massas candidato nas eleições.      

Além do mais, temos as eleições nos estados. Por enquanto, o mais provável é que pelo menos dez dos atuais governadores reacionários possam ser eleitos, inclusive em estados-chave, como no Rio Grande do Sul com leite e Minas Gerais com Zema, Paraná com Ratinho Jr. e Goiás com Ronaldo Caiado, e até mesmo no Rio de Janeiro com Cláudio Castro. 

Evidentemente, a vitória de Lula será o mais espetacular. Teria até alguma justiça poética. Mas, ainda que considerando que este desenlace teria como consequência uma elevação do ânimo na classe trabalhadora, e um previsível desnorteamento, pelo menos temporário da classe dominante, do que decorreriam condições mais favoráveis de luta, isso não permite concluir que um futuro governo do PT corresponderia, diretamente, a uma anulação da obra do golpe. Seria um cenário mais favorável, mas somente o início de uma nova conjuntura de luta.

Nesse contexto, quanto maior for a votação das candidaturas do PSol a deputados no primeiro turno, melhores serão as condições para a luta político-social que virá depois das eleições. Por três razões. Primeiro, porque serão um ponto de apoio combativo para impulsionar até ao fim a luta contra a extrema-direita bolsonarista. Segundo, as condições para pressionar o PT pela esquerda serão mais favoráveis. Terceiro, porque a reorganização da esquerda será impulsionada com maior força, favorecendo as condições de luta das massas populares.