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BRASIL

Em carta, entidades da educação propõem revogar reforma do ensino médio

Texto assinado por importantes entidades e movimentos que atuam na defesa da educação defende que um novo governo “democrático-popular” revogue a reforma, que foi instituída através de uma Medida Provisória (MP 746/2016), logo após Michel Temer assumir a Presidência da República, confirmando o golpe contra Dilma Rousseff. A proposta é endereçada a candidatura do ex-presidente Lula, única candidatura capaz de derrotar Bolsonaro, e que neste momento debate o programa com partidos aliados, incluindo a revogação da reforma trabalhista e do teto de gastos.
Segundo a carta, a implementação da reforma do ensino médio comprovou que esta “Segmenta e aprofunda as desigualdades educacionais – e, por extensão,  as desigualdades sociais –, ao instituir uma diversificação curricular por meio de itinerários formativos que privam estudantes do acesso a conhecimentos básicos necessários à sua formação”. As entidades defendem a revogação e a retomada de um amplo debate democrático sobre o ensino médio, que resulte em nova proposta. O documento também alerta para novos ataques em curso, como um Projeto de Lei que pretende alterar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Leia a seguir a íntegra da carta.

Brasília – DF, 22/09/2016. Presidente Michel Temer durante cerimônia de lançamento do novo ensino médio. Foto: Carolina Antunes/PR

CARTA ABERTA PELA REVOGAÇÃO DA REFORMA DO ENSINO MÉDIO (LEI 13.415/2017) 

No ano de 2003, que marcou o início do governo Lula, foi realizado em Brasília um  seminário intitulado Ensino Médio: Ciência, Cultura e Trabalho, cujo propósito era  debater e propor uma política de educação básica de nível médio tendo no centro  duas problemáticas: enfrentar a fragmentação curricular que sempre caracterizou  esta etapa educacional e colocar no centro desse debate as juventudes que  frequentam a escola pública no Brasil. 

O evento representou um ponto de inflexão na busca por um novo projeto de Ensino  Médio no Brasil que fosse capaz de organizar a massificação improvisada dos períodos anteriores e de democratizar o currículo desta etapa de ensino. Afinal, o  país havia passado de pouco mais de três milhões de matrículas no Ensino Médio  no início dos anos 1990 para nove milhões em 2004! As perguntas centrais eram:  qual Ensino Médio para essas juventudes? Que juventude é essa que passa a  integrar a última etapa da educação básica? 

Em termos de proposições, o que resultou daquele encontro – e contava com o  respaldo de uma vasta produção de conhecimento – é que se estava diante da  necessidade de construir um currículo menos fragmentado, mais integrado e capaz  de permitir uma compreensão densa de um mundo cada vez mais complexo. 

Em decorrência daquele debate, se seguiram algumas experiências no terreno da  política educacional: em termos curriculares, adquiriu centralidade o eixo ciência,  cultura, trabalho e tecnologia, compreendidos enquanto dimensões da vida em  sociedade e da formação humana. A tentativa de reformulação curricular se fez  presente nas novas diretrizes curriculares nacionais exaradas pelo Conselho  Nacional de Educação (Resolução CNE n. 02/2012), no Programa Ensino Médio  Inovador, no Pacto Nacional pelo Fortalecimento do Ensino Médio, dentre outras ações. 

Na contramão de tudo o que vinha sendo encaminhado, temos hoje uma Reforma  do Ensino Médio que, em vez de integrar, desintegra. A Reforma vigente no país foi apresentada como Medida Provisória (MP 746/2016) poucos meses após a  ascensão de Michel Temer à Presidência da República, em consequência do  impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Com isso, o então presidente abortou  o (ainda que insuficiente) processo de discussão sobre o Ensino Médio iniciado na  Câmara dos Deputados em 2012. O uso do expediente autoritário da Medida  Provisória para realizar uma reforma educacional foi criticado por entidades da  sociedade civil organizada, mas também pelo então Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, que apresentou parecer ao Supremo Tribunal Federal alegando a  inconstitucionalidade da medida. 

Ainda no ano de 2016, houve um intenso movimento de ocupações estudantis nas escolas de Ensino Médio e nas universidades públicas em 19 estados da federação, sendo alvos dos protestos a MP 746 e a PEC 241 do teto de gastos primários do  governo de Michel Temer. O recado contra a proposição da Reforma foi dado pela  juventude brasileira. 

Em 2017, a MP 746 foi convertida na Lei 13.415/2017, e o governo de extrema direita eleito em 2018 aliou-se à Reforma para aprovar os documentos legais que  dariam sua sustentação normativa. Assim foi estruturado e executado o edital do  novo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) adaptado à Lei 13.415/2017, bem  como aprovadas a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e as Diretrizes  Curriculare s Nacionais para o Ensino Médio em 2018. 

Assim, desde 2016, a Reforma do Ensino Médio assumiu a característica de projeto antipopular e de contornos autoritários. Sua implementação perpassou o governo ilegítimo de Michel Temer e ganhou continuidade natural no governo de extrema direita e de viés conservador de Jair Bolsonaro, que ganhou as eleições após uma  campanha eleitoral marcada pela desinformação. 

Nem mesmo a pandemia de Covid 19 e a gestão federal desastrosa que resultou em  667 mil mortes no Brasil foram suficientes para frear os anseios reformistas, que se  aproveitaram da suspensão das aulas presenciais para acelerar a aprovação de  currículos estaduais sem a devida participação das comunidades escolares, em  flagrante desrespeito ao princípio constitucional da gestão escolar democrática. A  implementação da Reforma do Ensino Médio pelos estados durante a pandemia  revela mais uma de suas facetas perversas, impossibilitando o debate democrático, dificultando o controle social e aprofundando processos de precarização e  privatização da educação pública.

Ao publicar a MP 746/2016, o governo Temer justificou a medida com três objetivos  que seriam alcançados pela Reforma: 1) tornar o Ensino Médio mais atrativo aos  jovens, permitindo que estes possam escolher itinerários formativos diferenciados;  2) ampliar a oferta de ensino em tempo integral; e 3) aumentar o aspecto  profissionalizante do Ensino Médio. 

No entanto, a implementação acelerada da Reforma em estados como São Paulo desnuda a falácia sobre a necessidade de diminuir o número de disciplinas no  Ensino Médio, uma vez que, com os itinerários formativos, criou-se um conjunto de  novas disciplinas sob a orientação de institutos e fundações da sociedade civil  vinculadas ao capital, enquanto as disciplinas ligadas aos campos científicos,  culturais e artísticos tradicionais da docência profissional em nível médio foram  eliminadas do currículo – num claro movimento de desmonte das possibilidades de  formação científica e humanística da juventude que estuda nas escolas públicas. 

A tão propalada liberdade de escolha por parte dos estudantes, uma das principais  bandeiras de propaganda dos governos em defesa da reforma, tem se mostrado um  engodo, visto que a escolha se restringe aos itinerários formativos disponibilizados  pela escola, e que nunca abrangem a totalidade de possibilidades das redes de  ensino.1 Ainda que, para alguns estudantes, a mudança de escola para cursar o  itinerário desejado possa ser uma opção, isso não ocorre para a maioria, especialmente nos quase três mil municípios do país que possuem uma única  escola pública de Ensino Médio. 

Até aqui, todas as evidências apontam para um mesmo fato: o compromisso da  atual Reforma do Ensino Médio não é com a consolidação do Estado Democrático  de Direito e nem com o combate às desigualdades sociais e educacionais no país.  A Reforma está serviço de um projeto autoritário de desmonte do Direito à Educação  como preconizado na Constituição de 1988. De fato, os primeiros impactos concretos da implementação da Reforma nos estados vão mostrando que a Lei  13.415/2017 vincula-se a um projeto de educação avesso à democracia, à  equidade e ao combate das desigualdades educacionais, uma vez que ela: 

1) Fragiliza o conceito de Ensino Médio como parte da educação básica, assegurado na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), na  medida em que esta etapa deixa de ser uma formação geral para todos. A  incorporação do Ensino Médio na educação básica foi uma conquista  recente do processo de democratização, e ainda não consolidada. Diante  de um ensino secundário historicamente elitista, estratificado e  propedêutico, a integração do Ensino Médio à educação básica foi uma  medida importante para democratizar esta etapa, juntamente com a  garantia de oferta de ensino noturno adequado às condições dos estudantes trabalhadores e da modalidade de Educação de Jovens e  Adultos (EJA) – ambos negligenciados pela Lei 13.415/2017; 

2) Amplia a adoção do modelo de Ensino Médio em Tempo Integral sem  assegurar investimentos suficientes para garantir condições de acesso e  permanência dos estudantes, excluindo das escolas de jornada ampliada estudantes trabalhadores e aqueles de nível socioeconômico mais baixo,  bem como estimulando o fechamento de classes do período noturno e da EJA; 

3) Induz jovens de escolas públicas a cursarem itinerários de qualificação profissional de baixa complexidade e ofertados de maneira precária em escolas sem infraestrutura. Evidência disso é o Projeto de Lei 6.494/2019 que tramita na Câmara dos Deputados e visa alterar a LDB, propondo o  aproveitamento “das horas de trabalho em aprendizagem para efeitos de integralização da carga horária do Ensino Médio até o limite de 200 horas por ano”. Mais uma vez, o que se propõe é a interdição do acesso qualificado ao conhecimento científico, à arte, ao pensamento crítico e reflexivo para a imensa maioria dos jovens que estudam nas escolas públicas, e que respondem por mais de 80% das matrículas do Ensino  Médio no país; 

4) Coloca em risco o modelo de Ensino Médio público mais bem-sucedido e  democrático do país: o Ensino Médio Integrado praticado pelos Institutos  Federais de Educação, Ciência e Tecnologia. Trata-se de um modelo que  adota cotas sociais e raciais de ingresso desde 2012 e que apresenta  resultados excelentes em avaliações de larga escala como o PISA. Seu  centro organizador é a integração entre uma Formação Geral Básica  fundada nos princípios do trabalho, ciência, cultura e tecnologia e a  Educação Profissional de Nível Técnico. A Lei 13.415/2017 rebaixa a  educação profissional à condição de “itinerário formativo”, dissociando a  formação geral básica da educação profissional;

5) Aumenta consideravelmente o número de componentes curriculares e  acentua a fragmentação. Uma das justificativas para a Reforma do Ensino  Médio era justamente a necessidade de diminuir o número de disciplinas  escolares obrigatórias. Contudo, a implementação da Reforma nos  estados vem realizando exatamente o contrário. Embora existam  variações entre as redes estaduais, no estado de São Paulo – a título de  exemplo – o 2o ano do Ensino Médio em 2022 possui 20 componentes  curriculares; 

6) Desregulamenta a profissão docente, o que se apresenta de duas formas: 1) construção de itinerários formativos que objetivam a aquisição de  competências instrumentais, desmontando a construção dos  conhecimentos e métodos científicos que caracterizam as disciplinas  escolares em que foram formados os docentes, desenraizando a formação  da atuação profissional; e 2) oferta das disciplinas da educação  profissional por pessoas sem formação docente e contratadas  precariamente para lidar com jovens em ambiente escolar. Tudo isso fere a construção de uma formação ampla e articulada aos diversos aspectos  que envolvem a docência – ensino, aprendizagem, planejamento  pedagógico, gestão democrática e diálogo com a comunidade; 

7) Amplia e acentua o processo de desescolarização no país, terceirizando partes da formação escolar para agentes exógenos ao sistema  educacional (empresas, institutos empresariais, organizações sociais,  associações e indivíduos sem qualificação profissional para atividades  letivas). Uma das dimensões desse problema é a possibilidade de ofertar tanto a formação geral quanto a formação profissionalizante do Ensino Médio a distância, o que transfere a responsabilidade do Estado de garantir a oferta de educação pública para agentes do mercado, com efeitos potencialmente catastróficos para a oferta educacional num país  com desigualdades sociais já tão acentuadas; 

8) Compromete a qualidade do ensino público por meio da oferta massiva de Educação a Distância (EaD). A experiência com o ensino remoto  emergencial durante a pandemia da Covid-19 demonstrou a imensa  exclusão digital da maioria da população brasileira, que impediu milhões  de estudantes das escolas públicas de acessarem plataformas digitais e  ambientes virtuais de aprendizagem. As mesmas ferramentas utilizadas  durante a pandemia estão agora sendo empregadas pelos estados na oferta regular do Ensino Médio, precarizando ainda mais as condições de escolarização dos estudantes mais pobres; 

9) Segmenta e aprofunda as desigualdades educacionais – e, por extensão,  as desigualdades sociais –, ao instituir uma diversificação curricular por meio de itinerários formativos que privam estudantes do acesso a conhecimentos básicos necessários à sua formação, conforme atestam  pesquisas comparadas que analisaram sistemas de ensino de vários países 2

10) Delega aos sistemas de ensino as formas e até a opção pelo  cumprimento dos objetivos, tornando ainda mais distante a consolidação  de um Sistema Nacional de Educação, como preconiza o Plano Nacional  de Educação 2014-2024 (Lei 13.005/2014). 

Pelas razões acima expostas, é fundamental que o próximo governo do campo  democrático REVOGUE A REFORMA DO ENSINO MÉDIO e abra um amplo processo  de discussão sobre esta etapa da Educação Básica apoiado nos princípios  estabelecidos na LDB de 1996 e nas discussões e construções teóricas acumuladas  no campo progressista e democrático, de forma que qualquer mudança seja  respaldada em um processo participativo e democrático

Brasil, 08 de junho de 2022. 

   

ASSINAM ESTA CARTA:  

Associação Brasileira de Alfabetização (ABAlf) 

Associação Brasileira de Currículo (ABdC) 

Associação Brasileira de Ensino de Biologia (SBEnBio) 

Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais (ABECS) 

Associação Brasileira de Ensino de História (ABEH) 

Associação Nacional de História (ANPUH Brasil) 

Associação Brasileira de Pesquisadores em Educação Especial (ABPEE) 

Associação Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências (Abrapec)

Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação (Anfope)

Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca)

Associação Nacional de Política e Administração da Educação (ANPAE)

Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd)

Campanha Nacional pelo Direito à Educação 

Centro de Estudos Educação e Sociedade (Cedes) 

Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE)

Fórum Nacional de Coordenadores Institucionais do Pibid e Residência Pedagógica (Forpibid-RP) 

Fórum Nacional de Diretores e Diretoras de Faculdades, Centros, Departamentos de  Educação ou Equivalentes das Universidades Públicas Brasileiras (ForumDir)

Rede Escola Pública e Universidade (REPU) 

Sociedade Brasileira de Educação Matemática (SBEM) 

Sociedade Brasileira de Ensino de Química (SBEnQ) 

Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS) 

Sindicato Nacional dos Servidores Federais da Educação Básica, Profissional e  Tecnológica – Seção Sindical São Paulo (Sinasefe-SP)

Notas

1 REDE ESCOLA PÚBLICA E UNIVERSIDADE. Novo Ensino Médio e indução de desigualdades escolares na  rede estadual de São Paulo [Nota Técnica]. São Paulo: REPU, 02 jun. 2022. Disponível em:  www.repu.com.br/notas-tecnicas.
2 FERREIRA, E.B.; SANTOS, K.C.; GONÇALVES, T. A política do NEM no Espírito Santo: o que dizem os  documentos nos seus contextos local e global. In: KORBES, C.; FERREIRA, E.B.; SILVA, M.R.; BARBOSA, R.P.  (org.). Ensino Médio em pesquisa. Curitiba: CRV, 2022. p. 33-46.