Conheci pessoalmente a oleira maranhense, Pureza Lopes Loyola, natural de Presidente Juscelino, no dia 28 de abril de 2022, dia da pré-estreia do filme, que conta não apenas a sua história em busca do seu filho, mas a vida de milhares de trabalhadoras e trabalhadores, que são submetidos a formas contemporâneas de escravização no Brasil.
Hoje, Pureza é uma senhora de 76 anos, que expressa em seu olhar, além de muita candura, extrema força. Ela me contou como seus pés, apesar de muitas vezes sangrarem, aguentaram duras e extensas jornadas, ao longo de três anos, em busca do seu filho. E me disse que venceu a sua batalha, de ter de volta o seu filho em casa, e o que pôde fazer pelos outros, fez e segue fazendo.
A ficção “Pureza”, dirigida por Renato Barbieri e com atuação impecável e emocionante da atriz Dira Paes, é uma obra cinematográfica inspirada em fatos reais, que traz elementos tocantes da trágica realidade de grande parte das classes trabalhadoras brasileiras. O ciclo de violência da opressão-exploração, que a sociabilidade burguesa irradia em nosso território de maneira tão desigual, pode parecer irreal, quando contamos, para muitas pessoas “privilegiadas” das grandes capitais, sobre a escravidão contemporânea
Dona Pureza percorreu, corajosamente, atrás do seu filho que ela sabia que sofria. E, em sua jornada, viu de perto a sedução de aliciadores (os “gatos”) e a brutalidade de capatazes para expropriar o máximo dos trabalhadores rurais, que muitos perderam suas vidas ao reivindicarem o mínimo de dignidade. A moradora de Bacabal (MA) representa, neste filme, muitas outras mães e famílias, que agonizam sem saber o que fazer, quando algum parente não volta ou desaparece, quando migra para “ganhar a vida”.
A expectativa de vida no Maranhão é uma das mais baixas do nosso país (IBGE, 2020) (1), e o estado maranhense é reconhecidamente o local de origem-natalidade com maior número de resgatados/as da escravidão contemporânea no Brasil. Dentro da região Nordeste é o que tem o maior número de resgatados/as, de 1995 a 2021, foram 3.474 pessoas resgatadas do trabalho escravo contemporâneo (Radar SIT, 2021) (2).
Uma importante pesquisa da Organização Internacional do Trabalho (2018) (3), realizada no Maranhão, estimou que, em 2017, havia pelo menos uma pessoa de 18 anos ou mais submetida à escravidão contemporânea dos 16,2% dos domicílios visitados no Maranhão. Sendo que 6,2% dos domicílios possuíam um indivíduo submetido ao trabalho forçado, 10,4% em condições degradantes, 3,8% em jornada exaustiva e 1,6% sob servidão por dívida.
Dados da Rede Penssan (2021) (4), auferidos no segundo ano da pandemia, demonstram que mais da metade dos lares brasileiros (55,2%) estavam em insegurança alimentar; 9% estavam em situação de insegurança alimentar grave, que significa a fome, e essa condição ainda é mais grave nos domicílios de área rural (12%). Traduzindo em números da população brasileira, do total de 211,7 milhões de pessoas, 116,8 milhões conviviam com algum grau de insegurança alimentar e, destas, 43,4 milhões não tinham alimentos suficientes e 19 milhões enfrentavam a fome.
Esses dados revelam que essa situação pode agravar ainda mais as condições de trabalho em todo o Brasil, porque a necessidade de sobrevivência faz com que as pessoas se submetam a qualquer oportunidade que apareça para ter algo para comer. No contexto atual pós contrarreforma trabalhista e com retrocessos contínuos legitimados pelo atual governo (5), a situação de desproteção e desregulamentação dos contratos de trabalho facilitam a submissão de pessoas a formas contemporâneas de escravização.
Relacionando com os dados de insegurança alimentar acima, foi, justamente, no segundo ano de pandemia que tivemos um número significativo de 1937 pessoas resgatadas, o maior desde 2013. O estado de Minas Gerais teve o mais alto quantitativo de resgatados/as, em segundo lugar foi Goiás, depois São Paulo e Pará. Quase 90% (89%) das pessoas resgatadas estavam no trabalho agropecuário e a liderança foi a do setor cafeicultor (310), que também apresentou o maior cômputo de crianças e adolescentes. Depois do café, a produção de alho (215) teve um número elevado de resgates, seguida pelo carvão vegetal (173), preparação de terreno (151), cana-de-açúcar (142) e criação de bovinos para corte (106).
Nas atividades urbanas, foram 210 pessoas, a maioria estava em empreendimentos imobiliários e construção civil (108), e no trabalho doméstico foram 27 pessoas resgatadas, em 2020 haviam sido apenas três. Hoje, dia 13 de maio, foi noticiado o resgate de uma idosa que esteve nestas condições, em uma casa na zona norte do Rio de Janeiro, por 72 anos!
O “perfil” desses trabalhadores e trabalhadoras resgatados/as, em 2021, é semelhante aos das outras pesquisas e de dados de fiscalização: 90% são homens, 80% negros/as, 47% nordestinos/as e 6% é analfabeta (6). Ainda que nas operações de resgate apareça uma maioria masculina, temos que enfrentar elementos estruturantes como a invisibilidade do trabalho reprodutivo e sua terceirização para as mulheres negras, que vivenciam um labor muito próximo à escravidão colonial no exercício do trabalho doméstico. Assim como a inviolabilidade da propriedade privada da dita “família tradicional brasileira”, que afirma hipocritamente que essas trabalhadoras são como se fossem da família para justificar a ausência de salário e direitos.
Essas informações demonstram também a naturalização do vilipêndio do trabalho para as classes trabalhadoras, principalmente as racializadas e regionalizadas como o caso dos/as nordestinos/as, com o prolongamento das jornadas de trabalho, pouco ou inexistente descanso, jornadas noturnas sem descanso semanal e dormir no trabalho sem qualquer condição digna (7). Em condições de superexploração da sua força de trabalho, o/a trabalhador/a é levado/a ao limite de comprometer sua própria sobrevivência tanto na violação do seu fundo de consumo quanto no desgaste do seu fundo de vida devido à jornadas extenuantes combinadas com ameaças e violência física e/ou psicológica.
A naturalização, a necessidade das classes trabalhadoras e subalternizadas e a expansão das violações à humanidade dessas pessoas requisitam o exame não apenas dos elementos dinâmico-conjunturais do capitalismo, mas também dos componentes histórico-estruturantes da formação social brasileira.
A apreensão da forma particular de como as leis econômico-sociais do capitalismo se realizam na economia dependente brasileira permite que sejam aclarados os aspectos principais da escravidão contemporânea, tipificados pelo artigo 149 do Código Penal Brasileiro, como as expressões mais evidentes da superexploração da força de trabalho. Inteligível também, é que as formas contemporâneas de escravização são resultantes da permanência e reciclagem de formas transitórias e/ou híbridas de exploração da força de trabalho no processo histórico de mercantilização do trabalho, na passagem do Brasil colonial escravocrata ao capitalismo dependente.
Retomando o destaque ao filme Pureza, neste dia emblemático da “Abolição da escravatura”, o longa-metragem apresenta a importância que a maranhense teve para a constituição do Grupo Especial de Fiscalização Móvel. Grupo de atuação para fiscalizar denúncias sobre a escravidão contemporânea, que é composto pela auditoria fiscal do Ministério do Trabalho, por procuradoras e procuradores do Ministério Público do Trabalho e tantos outras servidoras e servidores públicos de importantes instituições públicas para viabilizar o resgate dessas pessoas. Cabe destacar que a maior parte destas instituições têm sofrido duros ataques pelo atual governo para privilegiar o patronato.
O amor de Pureza pelo seu filho a transformou numa lutadora das classes trabalhadoras e num símbolo do combate à escravidão contemporânea, não só no Brasil, mas em âmbito mundial, expresso no prêmio Anti-escravidão da Anti-Slavery International, que recebeu na capital londrina em 1997. O filme e sua história nos inspira assim como a de tantos outras lutadoras e lutadores, como Padre Ricardo Rezende e Frei Xavier Plassat, na Universidade e na Comissão Pastoral da Terra, que se empenham nesta batalha e alertam para ficarmos de olhos bem abertos e pensarmos que se não combatermos a raiz deste problema, veremos ele se propagar e o próximo pode ser você.
Por esta luta coletiva, convido vocês a lotarem a estreia do filme no dia 19 de maio nos cinemas brasileiros.
* Marcela Soares é Professora de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (UFF)
Notas
1 IBGE. Tábua completa de mortalidade para o Brasil – 2019. Breve análise da evolução da mortalidade no Brasil, Rio de Janeiro: IBGE, 2020.
2 Radar SIT, Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil. Trabalho Escravo, Brasília: SIT, 2021. Disponível em:https://sit.trabalho.gov.br/radar/
3 OIT. Pesquisa Mensurando o Trabalho Escravo Contemporâneo no Estado do Maranhão – 2017. Brasil: OIT, 2018.
4 Rede PENSSAN. Insegurança alimentar e covid-19 no Brasil. Brasil, Rede PENSSAN, 2021. Disponível em: http://olheparaafome.com.br/VIGISAN_Inseguranca_alimentar.pdf
5 Ver a reportagem “Programa do governo Bolsonaro vai eliminar 432 mil vagas, dizem 27 auditores do Ministério do Trabalho”. Disponível em: https://urbsmagna.com/programa-do-governo-bolsonaro-vai-eliminar-432-mil-vagas-dizem-27-auditores-do-ministerio-do-trabalho/
6 SAKAMOTO, Leonardo. Brasil fecha 2021 com 1937 resgatados da escravidão, maior número desde 2013. Coluna, Uol, 27 de janeiro de 2022. Disponível em:https://noticias.uol.com.br/colunas/leonardo-sakamoto/2022/01/27/brasil-fecha-2021-com-1937-resgatados-da-escravidao-maior-total-desde-2013.htm Acesso em 27 jan. 2022.
7 Reportagem de Sakamoto (2021) disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/leonardo-sakamoto/2021/07/14/operacao-no-rio-tem-maior-indenizacao-ja-paga-a-resgatados-da-escravidao.htm. Acesso em 15 jul. 2021.
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