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BRASIL

“Há perigo na esquina”: Auxílio Brasil e propostas de esquerda para direitos e políticas sociais

Ivanete Boschetti*, do Rio de Janeiro, RJ
Reprodução

Escola de samba Gaviões da Fiel levou o carro alegórico “Desigualdade Social”, representando a miséria e a fome no País

Auxílio Brasil e Bolsa Família: o que muda?

Desde que o atual presidente anunciou que lançaria um Programa de “renda mínima” para chamar de seu, em substituição ao Auxílio Emergencial e ao Bolsa Família, muito vem se especulando sobre o que mudou em relação a Programa criado pelo então Presidente Lula em 2003. Por outro lado, o governo vem anunciando em alto e bom som a ampliação do número de famílias, além do aumento dos valores, já demonstrando seu uso político em ano eleitoral. Mas afinal, em que o Auxílio Brasil difere do Bolsa Família?  

[Bolsonaro] sempre foi um crítico feroz do Bolsa Família, e esbravejava que se tratava de programa para sustentar “vagabundo”, em nítida posição liberal e de completa desconsideração e desrespeito à fome e à pobreza no Brasil.

A primeira coisa que parece ter mudado, ao menos aparentemente, foi a posição política do atual presidente em relação ao próprio Bolsa Família (BF) e à pobreza, visto que, historicamente, ele nunca havia se preocupado com políticas de combate à fome e à miséria. Na verdade, sempre foi um crítico feroz do BF, e esbravejava que se tratava de programa para sustentar “vagabundo”, em nítida posição liberal e de completa desconsideração e desrespeito à fome e à pobreza no Brasil. Ainda nos idos de 2010 chegou a escrever em seu twitter que “O Bolsa-farelo (família) vai manter esta turma no Poder”. Essa era efetivamente a sua preocupação naquele momento: a possibilidade de o BF manter o PT no poder. Doze anos e uma pandemia depois, ao chegar ao poder, o presidente aprendeu rapidamente o potencial político de um programa de transferência monetária num país em que 24% da população vive situações de insegurança alimentar e não tem dinheiro para comprar comida suficiente, condição agravada pela Pandemia Covid-19. 

Na prática, o presidente alterou o nome do Bolsa Família para Auxílio Brasil, de modo a criar sua marca pessoal, e promoveu algumas modificações para poder bradar alguma inovação. Mas não é possível entender esse auxílio descontextualizado da Pandemia Covid-19, que obrigou o Governo Federal a instituir o Auxílio Emergencial em 2020 e chegou a abranger 68 milhões de trabalhadores e trabalhadoras, com valores acima de R$ 600,00, aprovados pelo Congresso, já que o presidente havia proposto um auxílio de apenas R$ 200,00 mensais. O Auxílio Brasil, portanto, é um programa de menor abrangência e valores mensais reduzidos em relação ao Auxílio Emergencial, e que apresenta algumas diferenças em relação ao BF, sem contudo transformar sua lógica e estrutura. Não se trata de um Programa vinculado a uma Política de Combate à Pobreza, como era o BF, que tinha critérios explícitos em Lei, orçamento assegurado na Lei Orçamentária Anual (LOA), metas definidas, articulação com outros programas como agricultura familiar, cisternas e segurança alimentar. À época de sua criação, o BF unificou diversos auxílios esparsos como auxílio gás, auxílio para gestantes e nutrizes, bolsa escola e se articulava também a programas de geração de emprego e valorização real do salário mínimo. Sabemos que o BF não foi capaz de acabar com a pobreza e a desigualdade no Brasil, mas certamente implicou na redução da fome, da pobreza extrema, além de reduzir a mortalidade infantil, aumentar a frequência escolar e  diminuir a insegurança alimentar, conforme mostram vários estudos disponíveis

Após 18 anos de vigência do BF (2003-2021), o Auxílio Brasil que o substitui, nasce sob a pressão da Pandemia da Covid-19, não demonstra nenhuma relação a uma política mais estruturada de combate à pobreza, foi publicado sem contar com recurso orçamentário, o que forçou uma articulação de bastidores entre governo e legislativo para sua aprovação, vinculada à aprovação da PEC dos precatórios (que implica no protelamento de pagamento de causas trabalhistas ganhas na justiça, por exemplo) e a alterações oportunistas na forma do cálculo do teto de gastos primários (EC 95), sem suprimi-lo. O Governo Federal pretendia garantir orçamento para ampliar o Auxílio Brasil somente até final de 2022, ano eleitoral, mas o Congresso acabou viabilizando recursos até 2026. O casuísmo político proporcionado por essa articulação possibilitou ao Auxílio Brasil assumir um caráter mais abrangente que o BF: amplia o número de famílias beneficiadas de 14,6 para 18 milhões em março de 2022; aumenta a renda per capita para acesso, de R$ 89,00 para R$ 105,01 para famílias em situações de extrema pobreza e de R$ R$ 178,00 para R$ 210,00 para famílias em situação de pobreza; reajusta em 17,84% o valor médio dos benefícios, elevando-os de R$ 189,00 para R$ 217,18, acrescido do “auxílio transitório” que pode ampliar esse valor a R$ 400,00. Em relação aos tipos de benefícios, complexifica-os em relação ao BF, criando 03 benefícios básicos – benefício primeira infância, benefício composição familiar, benefício superação da extrema pobreza -, e mais 06 auxílios ou benefícios acessórios: auxílio esporte, auxílio iniciação científica júnior, auxílio criança cidadã, auxílio inclusão produtiva rural, auxílio inclusão produtiva urbana, e benefício compensatório de transição. Essa complexificação, de certa forma, “desunifica” o que havia sido unificado pelo BF e inclui novos auxílios fragmentados. Ao menos na MP (1061/2021) e no decreto (10.852.2021) que o regulamentam, mantém condicionalidades que já existiam no BF, como exigência de frequência escolar, vacinação, acompanhamento nutricional, pré-natal para gestantes; e cria uma “regra de emancipação” que possibilita se manter no Programa até 24 meses após a “superação” da linha da pobreza. Exige o cadastro no Cad-Único, estabelece atribuições de controle do programa aos Conselhos da Assistência Social, mas não determina nenhuma relação do Auxílio Brasil com os direitos da LOAS e nem submete seu financiamento ao FNAS, o que o coloca como um Programa paralelo à política de assistência social.               

Por uma proposta de esquerda para os direitos e as políticas sociais 

O Auxílio Brasil é um programa populista, casuístico, eleitoralista, clientelista, forjado para, como o presidente aprendeu bem, “manter-se no poder”

Do ponto de vista político, o Auxílio Brasil é um programa populista, casuístico, eleitoralista, clientelista, forjado para, como o presidente aprendeu bem, “manter-se no poder”, ou seja, será divulgado como a principal política social de combate à pobreza desse governo em ano eleitoral. Enfim, uma perigosa bandeira política, num país onde a pobreza, a fome e a insegurança alimentar são agudas, bárbaras e não cessam de crescer, mas são tratadas como situações pontuais e esporádicas, com extremo desprezo. Do ponto de vista social, é um programa focalizado na extrema pobreza, fragmentado, totalmente desvinculado da noção de direito social, que não se estrutura como uma política social permanente e institucionalmente  estabelecida como dever estatal. Longe de satisfazer as necessidades sociais, destina-se a encabrestar homens e mulheres que não dispõem do mínimo para se manter e são obrigadas a se sujeitar às mais indignas formas de sobrevivência e dependência. Trata-se de um programa que não tem nenhum outro propósito a não ser a reprodução da miséria, da sujeição, da dependência necessária à exploração e opressão. Do ponto de vista econômico, cumpre a função de manter o acesso ao consumo de bens básicos, de disponibilizar uma força de trabalho permanente para o capital, rebaixar o valor da força de trabalho, regular os salários por baixo e contribuir imensamente para a financeirização da economia e endividamento das famílias, já que possibilita que até 30% do valor dos benefícios seja comprometido com microcréditos. Contudo, nada disso importa muito para quem não tem emprego e tem fome. Num país onde 44,4% da força de trabalho está desocupada, e entre as 95,7 milhões ocupadas somente 36,02% (34.495 milhões) possuem carteira assinada, segundo a Pnad Contínua divulgada em fevereiro de 2022, um Auxílio Social que corresponde a 33% do valor do salário mínimo tem mais força e significado que qualquer crítica que se possa fazer a ele. 

Num país onde 44,4% da força de trabalho está desocupada, e entre as 95,7 milhões ocupadas somente 36,02% (34.495 milhões) possuem carteira assinada, um Auxílio Social que corresponde a 33% do valor do salário mínimo tem mais força e significado que qualquer crítica que se possa fazer a ele.

Na condição de país capitalista dependente e periférico, como é o Brasil, e especialmente nesse contexto ultraneoliberal, as alternativas e possibilidades para combater a pobreza e a desigualdade estão muito limitadas, ainda que extremamente necessárias. Em relação especificamente a programas de transferência monetária e ao próprio Auxílio Brasil, é absolutamente necessário apontar seus problemas e intencionalidades eleitoreiras, mas reconhecer a necessidade de um programa de renda básica universal que se constitua como direito social vinculado à política de assistência social e à seguridade social, e que não reforce as tradicionais e conservadoras práticas de assistencialização/assistencialismo focadas somente no pauperismo absoluto, de caráter filantrópico e clientelista, como a proposta hoje em curso. Nesse contexto eleitoral, podemos e devemos defender um Programa Nacional de Renda Básica Universal, que seja reconhecido política e legalmente como direito social e dever estatal, com regras e  critérios transparentes, submetidos a efetivo controle social público, inserido na Seguridade Social, com orçamento suficiente estabelecido na Lei Orçamentária Anual (LOA) e no Orçamento da Seguridade Social (OSS), via Fundo Nacional de Assistência Social (FNAS), e que se articule aos serviços socioassistenciais do SUAS e aos direitos do trabalho e da previdência social. Isso não só é desejável, como é possível, e já o alçaria à condição de política pública, superaria seu arcaísmo e o vincularia ao atendimento às necessidades sociais.         

Historicamente, a proposição de  programas de “transferência de renda”, mínima ou básica, surge de posições liberais, em contraposição às reivindicações de direitos trabalhistas, visto que demandam muito menos investimento, não tem potencialidade política para organização da classe trabalhadora devido ao seu caráter absolutamente individual, mas tem imensa potencialidade de assegurar um consumo mínimo fundamental à reprodução ampliada do capital e da força de trabalho. A proposta de uma “renda básica universal” – se for reconhecida como direito social e dever público, associada efetivamente à satisfação de necessidades básicas, e totalmente descolada de interesses espúrios eleitoreiros -, pode assumir uma natureza menos liberal e mais social, complementar ou substituir temporariamente a perda de direitos do trabalho, mas não intenciona e nem é capaz de superar a desigualdade de renda e de propriedade. No capitalismo, a destruição de direitos do trabalho e da previdência e sua “substituição” por programas assistenciais de “transferência monetária”, ainda que sob forma de uma “renda básica universal”, estabelece uma brutal subsunção do trabalho ao capital, pois contribui para rebaixar o valor dos salários e intensificar a exploração. Também transfere para o Estado os custos da reprodução da força de trabalho, pois desonera o capital e cria um ciclo de reprodução de desigualdades ainda mais profundo e permanente. Assim, a defesa de uma renda básica universal deve e pode ser considerada uma estratégia importante de partilha do fundo público em benefício da classe trabalhadora, mas não pode ser mistificada como instrumento de socialização da riqueza ou de redistribuição de renda capaz de superar as desigualdades no capitalismo.   

No capitalismo, a destruição de direitos do trabalho e da previdência e sua “substituição” por programas assistenciais de “transferência monetária”, ainda que sob forma de uma “renda básica universal”, estabelece uma brutal subsunção do trabalho ao capital, pois contribui para rebaixar o valor dos salários e intensificar a exploração.

Hoje, no Brasil, todas as políticas sociais estão hipotecadas pelas sucessivas contrarreformas (trabalhista, previdenciária, mudanças na assistência e na saúde, destruição da cultura e de direitos das mulheres e LGBT+) impostas pelos ajustes fiscais permanentes, que vêm provocando intensos e avassaladores processos de expropriação social. A curto prazo, a reversão dessa destrutiva e bárbara política de natureza ultraneoliberal só será estancada com a universalização da Seguridade Social, a revogação da Emenda Constitucional 95 e do teto de gastos para as políticas sociais, a revogação da Desvinculação das Receitas da União (DRU) e crescimento anual do orçamento da seguridade compatível com as necessidades sociais, revogação das contrarreformas do trabalho e da previdência social; ampliação de orçamento para todas as políticas sociais. Tais medidas pressupõem superar o Governo atual e instituir um Governo verdadeiramente comprometido com interesses e necessidades da classe trabalhadora. A médio prazo, uma política séria e consequente de redistribuição de renda, além de assegurar o uso do fundo público para universalizar os direitos e as políticas sociais, precisa atacar a forte e vergonhosa concentração de renda e propriedade, realizar reforma agrária, desconcentrar as propriedades urbanas e transformar as propriedades ociosas em propriedade social, instituir uma política tributária progressiva e redistributiva de rendimentos e tributos, comprometendo-se efetivamente com igualdade e qualidade no acesso aos bens e serviços público. Essas são propostas comprometidas com a defesa democrática de direitos da classe trabalhadora, com a igualdade substantiva e as lutas contra todas as formas de exploração e opressão. Mas também não são suficientes. Tais compromissos são mediações fundamentais na construção das condições objetivas e subjetivas para fomentar as lutas mediatas, aquelas que a história nos reserva, orientadas por valores humanamente emancipatórios das relações de subjugação de classe. Esse é o verdadeiro projeto societário que a esquerda não deve abrir mão. 

*Professora da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ESS/UFRJ).