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MOVIMENTO

Pinheirinho Vive: como o Pinheirinho me ganhou para a militância política

Marcos Biagi*

O ano era 2012. Havia recém-ingressado como militante no PSTU (coisa de um mês. Hoje em dia, milito na Resistência/PSOL). A luta das moradoras e dos moradores do Pinheirinho, em São José dos Campos, foi o que fez eu decidir definitivamente entrar nas fileiras dessa organização. A sintonia com o programa e a estratégia socialista já havia se consolidado há um tempo dentro de mim. A brutalidade da justiça e PM paulistas, acompanhadas mesmo a distância, cravaram a decisão de entrada. Não cheguei a conhecer o bairro do Pinheirinho pessoalmente, mas o que relato aqui é a amplitude tamanha da força dessas pessoas que arrebataram definitivamente minha vida para a luta social e militância política contra as desigualdades, injustiças, preconceitos, todos causados ou asseverados pelo capitalismo. 

Passadas algumas semanas do meu ingresso, eis que surge a possibilidade de giro, de deslocamento espacial momentâneo na militância, para cumprir uma tarefa específica na acirrada eleição dos sindicatos dos metalúrgicos de São José dos Campos e região. Assim que soube da possibilidade de ter essa experiência, corri para ajeitar as condições de faltar nas aulas do mestrado sem ser prejudicado, abrindo possibilidades de ser candidato à ida. O que eu não sabia era que, na direção regional do partido, já havia simpatia a minha ida, para aumentar, dar mais brilho aos olhos já encantados pela militância e cravar de vez minha entrada. 

A vivência daquelas eleições foi arrebatadora. Assim como a nossa vitória contra a chapa apoiada pela patronal. Mas, mesmo em polvorosa com tudo que se apresentava, a inquietação sobre o que ocorreu naquela cidade, mais precisamente, no Campo dos Alemães, onde ficava o Pinheirinho, permanecia. O ato-show que se daria naquele fim de semana, meu último dia naquela cidade, iria ao encontro dessa ideia fixa. 

O ‘rap do Silva ‘, que saia da caixa do som em cima de um gol, antecedia o chamado à comunidade para o evento em solidariedade às famílias do Pinheirinho. O funk do MC Bob Rum e o chamado para o show de GOG, além da presença de figuras públicas importantes da esquerda que estariam presentes, ainda tomaria as ruas por onde passava por mais algumas horas daquele dia. Era uma manhã de sábado e grande parte das e dos camaradas que, assim como eu, havia se deslocado de outras regionais para cumprir tarefa ali, tinha retornado para os locais de origem. Talvez, quem os olhasse, pudesse sentir de alguma forma a satisfação da vitória sindical que traziam consigo. Por um sorriso no canto da boca, um ressonar tranquilo ou um andar alegre, apesar do cansaço, ou quiçá, um silêncio aconchegante.

Na manhã, eu já tinha minha segunda tarefa definida: ajudar a acabar de organizar a estrutura do ato. A primeira era dirigir a Kombi do sindicato, até o local do ato. Mãos ao volante, olhos atentos no carro guia que ia à frente. Eis que vejo a placa escrito Via Dutra (Quando adolescente, ouvi de um amigo que a Dutra era muito perigosa; resultado: meus olhos leram Dutra, meu cérebro interpretou perigo). Suando frio, Emudeço e paro de falar com a companheira e o companheiro que estavam ali comigo. A respiração afoita ditava o ritmo do pensamento descompassado e o suor excessivo certificava que eu estava em pânico. Para piorar a situação, a famosa “folga” do volante da Kombi, àquela altura, fazia o volante parecer incontrolável. Tudo em mim denunciava o desconforto, mas a evidência maior foi a distância entre o carro guia e nós. Talvez fosse pelos 40km/h em uma pista dupla, o que suscitou perguntas de “está tudo bem?”, e as buzinas acompanhadas de gestos igualmente pouco solidários – para dizer o mínimo- dos carros que passavam ao nosso lado. 

Eis que consigo alcançar o carro-guia. O que parecia uma proeza, uma prova de superação. Não havia nada de extraordinário, já que o carro se encontrava no acostamento, parado, esperando seu guiado. Depois de ter de inventar uma desculpa que estava ruim do estômago (quem levaria a sério a história do trauma-do-relato-ouvido-na-adolescência, misturado com a sensação de balancê indomável do volante? Aliás, parabéns para quem dirige Kombi acima de 40 km/h), assumi a direção do gol terceira geração, também do sindicato dos metalúrgicos, que antes era o norteador, e chegamos ao local do ato.

Depois de trabalhar a manhã na estruturação (montando barracas, organizando e recebendo as marmitas), fui almoçar com os e as camaradas em uma casa em frente ao terreno onde estávamos trabalhando. Entre as garfadas concentradas em uma marmita, cujo apoio era feito pela mão esquerda, ouvia atentamente os relatos de como surgiu o Pinheirinho, sua história e a recente invasão brutal da PM, por uma das fundadoras do movimento e mais algumas que acompanharam a situação de perto. 

Aquelas palavras, juntas ao olhar, gestos e tom de voz daquela lutadora davam a dimensão da batalha diária das pessoas organizadas na ocupação. Não me lembro, infelizmente do seu nome, mas aquele depoimento materializou o quão potente era a organização daquelas famílias da maior ocupação do Brasil e aprofundou ainda mais o terror que a polícia de Alckmin, governador à época, fez na desocupação. Parecia que a polícia agiu com uma espécie de punição exemplar: não tentem se organizar, e se tentarem, acabaremos com o pouco que têm e usaremos de todos e quaisquer tipos de violência (física, psicológica, sexual). Para não somente, retirá-los, mas também esmagar, esvair, expulsar o sonho de afrontar a burguesia, lutar por direitos e viver com dignidade.

Ela estava entre as cem famílias que iniciaram a ocupação do Pinheirinho, em 2004, em um terreno ocioso, pertencente a Naji Nahas, um especulador financeiro metido em no mínimo dois casos de corrupção. Em 2011, passados 7 anos, já era um bairro cuja auto-organização dessas trabalhadoras e desses trabalhadores que lá moravam com suas famílias já tinha frutificado: casas, comércios, igrejas e uma dinâmica de assembleias para condução das ações no bairro. Inclusive, o próximo passo, era formalizar também no papel, nas leis, a existência do bairro. Para isso, já estava em curso uma negociação com governo estadual e federal para a regularização da área. 

O processo de regularização, que parecia estar avançando, foi interrompido. No final do mesmo ano, a juíza Márcia Loureiro, ordenou a reintegração de posse. Isso mesmo. A magistrada optou por remover 6 mil famílias de um terreno em favor de um milionário corrupto. Alckmin, governador no estado naquele momento, já conhecido inimigo dos movimentos sociais, da educação e saúde públicas e, consequentemente, do povo trabalhador, abraçou com afeto a ordem. Os fatos que aquela mulher passou, expressos tanto pela fala, quanto pelo silêncio dos olhos e vividos na pele, (junto de mais de 5 mil famílias), nos dias seguintes desde o anúncio da reintegração, foram acompanhados por mim a distância. De uma tensão crescente e de uma violência absurda (depois materializada pela polícia) aquele pedido de reintegração mobilizou a esquerda e era por meio dos relatos e informes, principalmente, do PSTU, que eu acompanhava cada desdobramento da situação. (É desse período, inclusive, uma das fotos que mais me sensibilizou e que me marcará para todo o sempre. Dezenas de pessoas com armaduras improvisadas: capacetes de moto, pedaço de madeira na mão a simular um cacetete e escudos feitos daqueles tambores azul de plástico. Era um trazer para o plano da imagem, ao mesmo tempo, a desigualdade de forças e a disposição de luta daquelas pessoas. Um significado que transcende qualquer análise que tentar me delongar aqui).

Na noite do dia 18/01, do ano seguinte, acompanhando ao vivo pela internet, madrugada a dentro, vibrei com as moradoras e os moradores, numa sinergia compassada pela luta, a suspensão do habeas corpus. Havia ainda uma esperança daquela brutalidade ser evitada. Passados 4 dias, às 6 horas da manhã. Um domingo. Uma covardia sem tamanho. Centenas de policiais agrediram e expulsaram as famílias de suas casas. Para as pessoas: balas de borracha, gás lacrimogêneo, cassetetes e estupro; para as casas: fogo. Um massacre promovido pela polícia sob o mando do possível vice de Lula este ano. 

Ao fim do almoço, refletindo sobre as conversas que ali se sucederam, a certeza era de que havia muita revolta e tristeza, mas não desembocavam em desânimo ou dor, mas sim em luta. A consistência do sonho de continuar aquela batalha permanecia intocável. Isso mudou o meu olhar para o espaço de terra onde estava erigido o palco do ato daquela tarde. Ali seria a denúncia de uma covardia sem precedentes, um ultraje com todas aquelas famílias, mas um passo firme, decidido, da continuidade. Uma recomposição.

À medida que a tarde vinha avançando, aproximada a hora de iniciar o ato, mais pessoas chegavam. Militantes de sindicatos, movimentos sociais, partidos de esquerda, senhoras, mulheres, crianças, jovens. A maioria moradores. Eu ficava imaginando a história daquelas pessoas, o que elas sentiam. A tarefa à qual fui designado, logo em seguida, aproximou-me dessas pessoas: segurança de figura pública e depois da mesa de som. Uma tarefa que me deixou com muito medo, pois, sem nenhuma noção de como executá-la, tinha de assegurar outrem. Contradição que engoli e torci para que não percebessem. Por conta da necessidade de dar solução rápida à situação, urgente, assim o camarada a afirmou, senti-me acanhado de ficar questionando ou declinar das tarefas.

O ato-show já estava cheio e havia começado. Eu estava tentando fazer cara de mal (naquela época não tinha máscara – o que ajudaria a disfarçar o medo) e acompanhando o figura pública, que sempre via pela televisão, para cima e para baixo no ato, conversando com as pessoas. Eu era pura imagem por fora e medo por dentro. Passado um tempo, o camarada que havia me designado àquela tarefa, chamou-me para fazer a segurança na mesa de som, deixando comigo um spray de pimenta e pedindo, em seguida, para eu escondê-lo sob a roupa, usando-o só quando necessário. Fiquei aflito. Nunca tinha visto um daquele e sequer sabia qual situação o faria necessário. Depois, fiquei pensando do porquê vigiar a mesa de som. Entenderia em seguida. 

Enquanto eu estava ali, várias figuras públicas da esquerda já haviam falado como Boulos e ainda faltavam algumas, como Suplicy. Tive também a oportunidade de conversar com algumas pessoas que, ao longo da conversa, eu descobria que eram moradoras e moradores. Um deles, que me marcou muito, era um adolescente que levava uma bicicleta. Tinha cerca de quinze anos. Camiseta, bermuda, chinelos e os olhos castanhos escuros vivos. Ele encostou junto a mim e perguntou se eu conhecia o Pinheirinho. Ao ouvir minha negativa, apresentou-se e contou que morava lá, como funcionava a ocupação e da violência policial na reintegração. Disse que tinha medo e ódio da polícia, que ficou inseguro ao ver tanta policia em volta do terreno onde estávamos (de fato havia muitas viaturas). Terminou a conversa, relatando como estava a vida depois do massacre: sua família morava agora de favor com uma tia e não estava indo à escola, porque agora morava longe de onde estudava e não tinha dinheiro para ônibus, já que a mãe e o pai estavam desempregados. Fiquei muito comovido com aquela conversa-relato e , ao longo daquela tarde, conversei com outras pessoas que retratavam situações semelhantes, incluindo também o preconceito que existia contra eles naquela cidade. 

Mesmo antes dessa conversa com o menino, eu já havia notado que um grupo com quatro ou cinco jovens passava em frente de onde eu estava (era uma barraca cuja base era de aço, teto de plástico e havia a mesa de som e o técnico que a operava) e olhava fixamente. Iam e voltavam. Até que, primeiro, em uma dessas passagens, um deles ergueu a camiseta, mostrando para mim o revólver que estava em sua cintura, passado alguns minutos, um outro, destacou-se do grupo e veio na direção da mesa de som correndo, acertando uma voadora sobre ela. Um pouco antes, havia começado a fala do Suplicy, a qual eu acompanhava de costas, para poder vigiar a movimentação em torno da mesa, mas atentamente. Na hora, o microfone perdeu o som e a única coisa que pude fazer foi empurrar o rapaz para fora e tentar acalmar o técnico da mesa de som que gritava, achando que seu equipamento estava quebrado. Os cinco minutos que se passaram, até a voz de um dos parlamentares mais combativos que já tivemos voltar a ganhar o espaço antes ocupado pelo silêncio, foram angustiantes. 

Logo que voltou o som, veio também a informação de quem eram aquelas pessoas. Um dirigente nacional do partido, perguntando o que havia acontecido, explicou-me que eram pessoas ligadas ao tráfico de drogas. Uma vez que queriam disputar a liderança daquele movimento, tentavam acabar com o ato. Eu acabava de conhecer ali mais uma tensão que aquelas moradoras e aqueles moradores tinham de enfrentar na construção e manutenção da auto-organização do movimento. Não bastava o assédio institucional, vinha também o poder paralelo do tráfico tentando acabar com o movimento para poder ter espaço, voz, influência e lucro. 

Na sequência, para o meu alívio e bem da condução do ato, somaram-se à guarda mais pessoas: moradores e militantes. Houve mais uma tentativa de interrupção, com trocas de empurrões barrando o acesso daquele grupo à mesa de som. Depois, não ocorreu mais nenhuma tensão. Firme e forte na tarefa, ainda consegui acompanhar pela primeira vez o GOG e seu rap de denúncia social, antes de passar o posto para um outro camarada e ir em direção à rodoviária para voltar à São José do Preto. Já no ônibus, mesmo cansado, estava com a mente a mil, pensando na magnitude da força e organização daquelas mulheres e homens, que alguns anos depois, graças à luta incansável, conseguiram seu direito à moradia: O Pinheirinho dos Palmares. 

O terreno, após a expulsão dos moradores, ficou novamente ocioso, sem nenhuma função social, mas cheio de impostos atrasados (a soma é superior ao valor de venda). Um fato cruel que mostra ainda mais a perversidade da ação da justiça de São Paulo e de Geraldo Alckmin, governador na ocasião. 

Passados dez anos desde a violenta invasão da PM no Pinheirinho, o exemplo de unidade e luta dessas trabalhadoras e trabalhadores vive, viverá, e será essencial para enfrentarmos a realidade caótica em que vivemos sob o governo Bolsonaro. Mas é também imprescindível que, continuamente, denunciemos a brutalidade cometida com aquelas pessoas na luta pelo direito de morar, de viver dignamente. Uma das ações de reintegração de posse mais violentas ocorridas no Brasil não pode ser esquecida! Lutar não é crime! Pinheirinho vive! Viva Pinheirinho dos Palmares!

*Marcos Biagi é militante da Resistência/PSOL.