O escrito que segue finaliza o conjunto de notas-sínteses dos encontros do Curso de Formação de Educadores Populares 2021, organizado pelo Cursinho Popular Maria Firmina Dos Reis. O percurso formativo abordou os seguintes temas: 1) “O que é Educação Popular?”; 2) “Filosofia da Educação Popular”; 3) “Política Educacional da Educação no Brasil”; 4) “Educação antirracista”; e 4) “A educação anticapitalista”.
As demandas educacionais tornaram-se presenças significativas nas experiências de lutas sociais após a segunda metade do século XX. No processo de transformação organizacional capitalista e edificação do neoliberalismo a palavra de ordem “Educação Não É Mercadoria!” [1] fez-se emblemática ao apontar tanto contradições do real, quanto como instrumento de orientação e impulso para atividades políticas contra-hegemônicas. A necessidade histórica de transformação da função e de organização da educação, a luta por sua expansão e democratização movimentou o desenvolvimento teórico para novas práticas-pedagógicas-libertadoras, crescentes experiências de educação popular, “o fazer educação como ato político” e questões educacionais ligadas as lutas anti-opressões, estas expressões e fagulhas da ampliação das novas formas de lutas sociais contra a mercantilização da vida. Se no “reino do capital, a educação é ela mesmo uma mercadoria”, afirmar o contrário nos impele e impõem uma série de tarefas para organização do combate e formação dos combatentes. Desta forma, que o “Encontro: Educação Anticapitalista” e esta sintética nota contribuam como elementos a inflamar a educação rebelde “contra a aceitação passiva das mazelas e relações opressivas da sociedade capitalista” [2].
Ao tratarmos da educação anticapitalista o ensaio “A Educação Para Além do Capital” [3] do filósofo marxista húngaro István Mészáros se lança como um clássico contemporâneo. Na mesma medida, que as considerações sobre os intelectuais, educação, cultura e luta hegemônica do revolucionário italiano Antonio Gramsci é contribuição essencial da tradição marxista para o tema da educação·[4]. Ambos, partindo de concepções nítidas das relações entre educação e do trabalho como princípios norteadores da organização social nos apresentam perspectivas programáticas de construção da unidade entre reflexão e ação, teoria e prática, cultura e política, educação e emancipação.
O debate do encontro tomou o caminho de discutir a correção dialética entre a construção possível de uma educação anticapitalista e a tarefa central da formação de intelectuais organicamente ligados à política, à história e à cultura das massas populares. Nesses marcos, a bibliografia teórica analisada cumpriu função de direcionamento das reflexões e esboços de conclusões preliminares relativas às nossas práticas educacionais e políticas no horizonte de uma alternativa transformadora a lógica do Capital. O debate avançou ainda quanto ao estabelecimento das afinidades entre educação anticapitalista e emancipação humana ao: 1) assumir a educação como um campo de luta social e 2) que a consolidação de uma forma alternativa – e essencial – de educação exigirá a atividade política pela construção de uma nova ordem civilizatória. Logo, às experiências de educação popular – das quais o CP Maria Firmina do Reis e os educadores presentes no encontro fazem parte – foram tomadas como possíveis expressões prática das lutas dos grupos subalternos, em seus limites e possibilidades [5].
As reflexões de István Mészáros mobilizam-se partindo de três epígrafes, heranças teóricas do pensamento sobre a educação dos últimos cinco séculos. A relação dialógica estabelecida entre os pensadores impulsionam substancialmente a defesa de Mészáros da tese de “incorrigibilidade da lógica perversa do capital” [6] apontando os erros das iniciativas reformistas sempre presas a camisa de força das determinações lógicas do capital expressas na ideologia burguesa através dos séculos [7]. Mézáros analisa o desenvolvimento da “educação burguesa” como instrumento de internalização e legitimação da ordem hegemônica, restrita a propaganda histórica falsificadora e em relação íntima com o Capital. Logo, a educação na sociedade burguesa perde a essência como parte produtora e produto da cultura originária da atividade material, criativa e existencial humana, pois o trabalho alienado foi capaz de corromper a capacidade de ação e de reflexão humana criativa sobre a realidade e o ser.
O antirreformismo de Mészáros, em parte, justifica-se na constatação de que essa educação subserviente à lógica do Capital é essencialmente excludente, individualizante e competitiva. “Simultaneamente ela [educação] exclui a maioria esmagadora da humanidade do âmbito da ação como sujeitos, e condena-os, para sempre, a serem apenas considerados como objetos (e manipulados no mesmo sentido), em nome da suposta superioridade da elite: ‘meritocracia’, ‘tecnocrática’, ‘empresarial’, ou o que quer que seja” [8]. Qualquer defesa democratizante formal é vencida pela estrutura de organização social e desigualdade entre classes e a divisão do trabalho. Além disso, a elitização “intelectual” exprime-se na promoção do distanciamento entre educação e emancipação de forma ideológica, pois faz parte da ordem de reprodução da perversa fetichização dos seres humanos e de suas criações sociais. O império da natureza do Capital impulsiona uma visão falseada de [pseudo]inteletcualização de certa casta social, naturalizando entre os grupos explorados o direito restrito da propriedade da aprendizagem, do “conhecimento” e da cultura. Essa condição faz parte da mobilização de reprodução sedutora e opressiva de legitimação da posição que a cada um é dada na estrutura social como natural e a-histórica. O êxito máximo dessa perversidade é que cada indivíduo internaliza e reproduza essa ideologia em sua conduta, legitimando a ordem estabelecida.
Desse modo, a “recusa reformista em abordar as contradições do sistema existente, em nome de uma presumida legitimidade de lidar apenas com as manifestações particulares ou, nas suas variações “pós-modernas”, a rejeição apriorística das chamadas grandes narrativas em nome de petits récits idealizados arbitrariamente, é na realidade apenas uma forma peculiar de rejeitar, sem uma análise adequada, a possibilidade de se ter qualquer sistema rival, e uma forma igualmente apriorística de eternizar o sistema capitalista” [9]. Por isso, “limitar uma mudança educacional radical às margens corretivas interesseiras do capital significa abandonar de uma só vez, conscientemente ou não, o objetivo de uma transformação social qualitativa” [10]. Destaca-se destas afirmações, a ideia central de Mészáros de uma dialética entre a transformação da educação necessariamente incorporada em unidade à transformação radical da estrutura de toda a sociedade. Isto é, a própria superação do capitalismo.
Somos expostos à necessidade de focar na elaboração e criação não apenas de uma nova educação, mas de um sistema de relações sociais alternativo. As referências das epígrafes evocam a aprendizagem como a própria vida, sendo que a totalidade da capacidade criativa [cultural] humana deve ser reconquistada como atividade libertadora. Assim, a unidade entre educação e aprendizagem por toda a vida de Paracelso [11] é perfeitamente compatível com a iniciativa de formação dos indivíduos socialmente ricos – material e culturalmente – de Karl Marx [12], movida na direção de uma concepção de educação emancipatória. A base desta reivindicação de educação integral e omnilateral humana não pode se dar no campo formal, como afirmava José Martí [13], mas na essência, considerando a liberdade e a criatividade humana sem as amarras da reprodução desumana do sistema capitalista. Disso depende o rompimento com a internalização coercitiva dos formalismos, individualismo meritocrático, competitividade e a elitização da educação e da cultura burguesa. Sendo assim:
Romper com a lógica do capital na área de educação equivale, portanto, a substituir as formas onipresentes e profundamente enraizadas de internalização mistificadora por uma alternativa concreta abrangente [14]. […] Pois através de uma mudança radical no modelo de internalização agora opressivo, que sustenta a concepção dominante do mundo, o domínio do capital pode ser e será quebrado. [15]
Em Mèszáros encontramos a possibilidade da construção de uma alternativa à crise estrutural do capital, onde a educação – ainda que não o único – é instrumento de criação central para organização e construção de um projeto emancipatório e do novo sujeito histórico. O autor incorpora um programa de educação emancipatória na defesa de princípios de transformação estrutural da sociedade e possibilidade da construção de uma nova ordem social metabólica, da qual emergirá uma nova humanidade.
O próprio Mészáros referencia-se na concepção de Gramsci como a única sustentável e verdadeiramente democrática de educação. Ao afirmar em seus escritos carcerários que todos os seres humanos são intelectuais e que não há atividade humana que exclua a intervenção intelectual [16], o marxista italiano assegura a perspectiva de universalidade intelectual e participação humana ativa na construção das visões de mundo, das ideologias, da cultura e seus processos de mudança. Gramsci aniquila os apriorismos essencialistas de monopólio da produção cultural humana por uma casta intelectual e pelas elites lançando todas as contradições de legitimação de formas de conhecimentos para a dinâmica de disputas socialmente construídas, inclusive no âmbito da cultura. A batalha pela hegemonia cultural é uma batalha política e deve ser organizada! [17]. Segundo, Giovanni Semeraro o pensamento de Gramsci manifesta-se como abertura ao novo, sem o abandono crítico das contradições do existente, pois:
As ideias de Gramsci passam a fundamentar a formação dos novos intelectuais na práxis hegemônica dos subalternos, cujas lutas teóricas e práticas buscam criar uma outra filosofia e uma outra política, capazes de promover a superação do poder como dominação e construir efetivos projetos de democracia popular. [18]
O pensamento político de Gramsci nos lega um nexo dialético entre intelectuais, política e classes sociais subalternas para a construção da filosofia e da educação como práxis política. Primeiro, ao observar a ampliação dos espaços de formação educacional – e da sociedade civil em geral – não mais restrito a escola, mas presente na fábrica, na igreja, meios de comunicação, na atividade política, movimentos sociais, culturais, nos partidos, etc. E segundo, apresenta como exigência histórica da luta revolucionária e emancipatória a necessidade de ligação orgânica entre intelectuais e classes subalternas. Não uma ligação verborrágica, pendente, retórica, mas na organização e direção, por meio da confiança na potência contra-hegemônica do espírito criativo das classes exploradas. Nos Cadernos do Cárcere “Gramsci valoriza com singularidade o saber popular, defende a socialização do conhecimento e recria a função dos intelectuais, conectando-os às lutas políticas dos ‘subalternos’”. Assim, as práticas educacionais não formais e seu potencial rebelde e transformador não podem ser observados historicamente fora das classes e grupos socialmente subalternos.
A superação das distinções concretas entre intelectuais e “simples” se dará apenas por meio da relação entre saber-sentir-compreender, envolvendo diretamente o processo contínuo de educação e aprendizagem do educando e do educador. Apenas o contato social orgânico entre educadores e educandos permite que a aprendizagem de ambos mobilize uma elevação cultural coletiva. Diz Gramsci sobre esse processo:
[Na] passagem do saber ao compreender, ao sentir, e, vice-versa, do sentir ao compreender, ao saber. O elemento popular “sente”, mas nem sempre compreende ou sabe; o elemento intelectual “sabe”, mas nem sempre compreende e, menos ainda, “sente” [19]. […] O erro do intelectual consiste em acreditar que se possa saber sem compreender e, principalmente, sem sentir e estar apaixonado […], sem sentir as paixões elementares do povo, compreendendo-as e, portanto, explicando-as e justificando-as em determinada situação histórica.
A atividade de contra internalização alternativa e duradoura, referida por Mészáros, como iniciativa de construção de uma educação alternativa a lógica do Capital, exige o envolvimento das massas populares no empreendimento crítico de uma “filosofia da libertação”, a criação de seus próprios intelectuais e de uma nova concepção de mundo. “Em outras palavras, a abordagem educacional [aqui discutida] adota a totalidade das práticas politico-educacional-culturais, na mais ampla concepção de que seja uma transformação emancipatória. É desse modo que uma contraconsciência, estrategicamente concebida como alternativa necessária à internalização dominada coletivamente, pode realizar sua grandiosa missão educativa” [20]. A ampliação da conscientização ativa, criativa e libertadora contra a internalização coercitiva da educação do capital, depende da participação popular nas práticas políticas de forma organizada. A elevação intelectual-moral das massas requer o reconhecimento e reconciliação com o saber popular, a construção democrática e coletiva de um projeto público de sociedade. A reivindicação programática de Gramsci é justamente em relação à possibilidade de uma superação progressiva dos pensamentos formalistas e fatalistas – positivistas, naturalistas, materialistas vulgares, etc. –, por meio do avanço da unidade entre filosofia e política, teoria e prática, além da superação das distinções entre governantes e governados, dirigentes e dirigidos, intelectuais e “simples”. Isso é radicalmente democrático e revolucionário!
Somos lançados à discussão primordial de refletirmos a tarefa histórica de construção da unidade do Homo faber e o Homo sapiens presente nos esboços programáticos de Gramsci e Mészáros. O sujeito da produção material da vida humana reconcilia-se na unidade socialmente construída como o sujeito do conhecimento. Como nos indicou Marx o encontro do da filosofia com suas armas materiais, o proletariado, e deste com suas armas espirituais, a filosofia [21].
Toda a discussão nos impulsionou às reflexões sobre nossas tarefas na organização educacional político-popular. A formação de intelectuais orgânicos ligados [e pertencentes] às massas populares e suas demandas políticas capazes de disputar o campo ideológico com um novo projeto democrático e público de sociedade. Nesse âmbito, o foco recaiu sobre os educadores populares, seus trabalhos e práticas de ligação com as demandas dos grupos subalternos. A educação popular pode ser uma forma de exercitar a formação de organizadores e dirigentes pertencentes às classes populares dispostos as paixões elementares e a vida das massas subalternas. A discussão de uma educação anticapitalista mobilizou o encontro para pensarmos o potencial da educação popular como uma experiência viva, orgânica, – ainda que inacabada de educação – confrontante e rebelde a lógica do capital e com potencial democratizante. Mesmo que, as experiências de projetos de educação popular guardam singularidades entre si, podem ser acompanhadas de uma dialética de unidade entre educadores e educandos com rompimento de certas hierarquias e formalidades essenciais para novas experiências criativas.
Os cursinhos populares e comunitários, por exemplo, podem fornecer formas de construção de unidade entre educadores e educandos, experiências democráticas de autogestão criativa da aprendizagem, práticas-pedagógicas organicamente organizadas, correlacionando iniciativas individuais junto a demandas políticas concretas e globais. Um exemplo prático de ligação entre intelectuais e classe na própria ação educadora.
Se, como afirma Mészáros:
A nossa época de crise estrutural global do capital é também uma época histórica de transição de uma ordem social existente para outra, qualitativamente diferente. Essas são as duas características fundamentais que definem o espaço histórico e social dentro do qual os grandes desafios para romper a lógica do capital, e ao mesmo tempo também para elaborar planos estratégicos para uma educação que vá além do capital, devem se juntar. Portanto, a nossa tarefa educacional é, simultaneamente, a tarefa de uma transformação social, ampla e emancipadora. Nenhuma das duas pode ser posta à frente da outra. Elas são inseparáveis. A transformação social emancipadora radical requerida é inconcebível sem uma concreta e ativa contribuição da educação no seu sentido amplo. [22]
Nossos trabalhos militantes voltados para o campo da educação popular devem permanecer fortalecidos e entusiasmados na construção programática de uma alternativa anticapitalista de educação, mesmo frente ao pessimismo da razão de nossa época histórica. O novo em breve nascerá!
NOTAS
[1] SADER, Emir. Prefácio. In:___ MÉSZÁROS, István. A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2008 [2005]. p.16.
[2] Ibidem, p.18
[3] O ensaio “A Educação Para Além do Capital” foi escrito para a conferência de abertura do Fórum Mundial de Educação de 2004, realizado em Porto Alegre e publicado pela Boitempo Editorial em 2005. Convém o comentário da relação de continuidade das reflexões críticas de Mészáros a respeito da crise estrutural do Capital, norteadoras de “Para Além do Capital: rumo a uma teoria da transição” (Boitempo editorial, 2015 [2002]) e “A Crise Estrutural do Capital” (Boitempo editorial, 2020 [2009]). Onde o autor estabelece uma acurada análise e apontamentos sobre a necessidade de uma mudança estrutural do Capital, do Trabalho e do Estado.
[4] A indicação bibliográfica do curso para a discussão sobre a educação em Gramsci foi o ótimo artigo de Giovanni Semeraro “Intelectuais ‘orgânicos’ em tempos de pós-modernidade”. SEMERARO, Giovanni. Intelectuais “orgânicos” em tempos de pós-modernidade. Cadernos Cedes, v. 26, p. 373-391, 2006
[5] Nota sobre o encontro de Educação Popular: “O que é Educação Popular?”.
[6] MÉSZÁROS, p.34.
[7] A análise histórico-crítica de Mészáros faz referências ao pensamento político liberal de John Locke, a econômica política liberal de Adam Smith e ao socialismo utópico de Robert Owen.
[8] Ibidem, p.49.
[9] Ibidem, p.29.
[11] Paracelso, pensador suíço-alemão do Século XVI.
[12] Karl Marx, em suas Teses sobre Feuerbach de 1845.
[13] José Martí, político, poeta e pensador cubano do século XIX.
[14] Ibidem, p.47.
[15] Ibidem, p.53.
[16] Ver CC, 11 “Introdução ao estudo da filosofia” e CC12 “Os intelectuais”. In:___
GRAMSCI, Antonio; COUTINHO, Carlos Nelson. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. V. 1 e V.
[17] As reflexões de Gramsci sobre a centralidade dos intelectuais como organizadores e dirigentes no mundo moderno devem ser entendidas como uma das consequências da expansão organizada da sociedade civil e as novas formas de luta revolucionária nas sociedades de capitalismo desenvolvido na passagem do século XIX para o século XX.
[18] SEMERARO, p. 380.
[19] GRAMSCI, (CC 11, § 67) p,221.
[21] Ver a Introdução escrita por Marx. In:__ MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Boitempo Editorial, 2015.
[22] Ibidem, p. 76
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