Os atos bolsonaristas do dia 7 de Setembro, em especial, os realizados na Avenida Paulista e na Esplanada dos Ministérios, em Brasília demonstraram a vitalidade e a disposição da base de apoio do governo. Dentre as razões está o perfil daqueles que compõem o fixo percentual dos 23% a 25% do eleitorado que avalia o governo como bom/ótimo e, até então, configura-se como impermeável a outras perspectivas. Ou seja, Bolsonaro tem a fidelidade de ¼ da população brasileira, independentemente da pandemia (e seus quase 600 mil óbitos) ou da inflação que pesa sobre o valor da gasolina, do gás e dos itens mais elementares, da cesta básica.
A questão é que parte deste percentual os seus extremos mais reacionários e fanáticos estão dispostos a tudo e acreditam fielmente que precisam “salvar” o Brasil do legislativo e do judiciário. Pois, os demais poderes da República expressariam em si uma “força comunista” corrompida no Estado brasileiro, e precisam ser saneados por Bolsonaro e pelas forças armadas. Digamos que o arcaico ódio de classe, tão arraigado neste país, atingiu seu ápice deliróide. Contudo, trata-se de um delírio que propicia legitimidade aos interesses do alto escalão das forças armadas (que lucra muito neste governo, diga-se de passagem), (1) das finanças, das famílias que mais concentram renda e de parte significativa do agronegócio (com destaque à agropecuária). Vejamos, por exemplo, o que se sucedeu com o capital financeiro. Os bancos não apenas se “recuperaram” da pandemia, como saem dela melhor do que entraram. As quatro maiores instituições financeiras do país – Bradesco, Itaú-Unibanco, Santander e Banco do Brasil – obtiveram no primeiro trimestre de 2021 (período auge da “segunda onda”), lucro de R$ 18,6 bilhões, 35,2% a mais do que no ano anterior e o segundo maior da série histórica (iniciada em 2009). (2) Quanto aos mais ricos, na contramão de países como Chile e México, o Brasil atinge hoje novo recorde: o maior grau de concentração de renda dos últimos 20 anos. Agora os brasileiros mais abastados (1% da população) são donos de 49,6% de toda a renda nacional.(3) Isso para não falarmos do setor neopentecostal, cujo apoio é estratégico para sustentação de massas do governo. A consolidação do apoio evangélico veio com o perdão de R$ 1,4 bilhão de dívidas com a União e o compromisso da imunidade na nova proposta da reforma tributária.
Nos reportamos a um país de capitalismo dependente e inserção subalterna na divisão internacional do trabalho e cuja economia se realiza segundo as demandas de “fora”, em detrimento dos interesses “de dentro”. Portanto, a versão burguesa desse capitalismo sui generis é o de uma classe dominante particularista, egoísta e irresponsável, desprovida de identidade nacional e de atrofiado padrão cultural, a qual se identifica e comunga dos mesmos interesses da burguesia internacional/transnacional. Apesar do caráter tosco, vocabulário limitado e restrições cognitivas, Bolsonaro parece que entendeu bem este fato. Inclusive, é a oferta de altos lucros e a ausência de qualquer limite às frações reinantes do capital no país, o que mantém o seu governo em pé.
Por outro lado, quem são as frações burguesas mais prejudicadas desta história?
Em síntese, segmentos do comércio, setor de serviços (cultural, artístico, serviços de transporte aéreo e urbano, alojamento e hotelaria, alimentação) e o capital produtivo (com destaque à fabricação de veículos automotores, calçados, etc.).(4) O PIB de 2020 é uma didática demonstração quanto a isso: o crescimento da agropecuária (2%) em detrimento da indústria (-3,5%) e dos serviços (-4,5%). Considere aqui a informação de que a queda de 4,1% do PIB neste ano foi a maior em 30 anos e o terceiro pior resultado anual da história econômica do Brasil, comparado apenas aos anos de 1986 e 1990.(5) É o que explica o desgaste do governo com a FIESP (ela mesma, a do pato amarelo na Paulista!). Desgaste que conduziu ao ensaio de um manifesto público endereçado ao governo federal articulado em parceria com FECOMERCIO e FEBRAPAN – além da Alshop (lojistas de shoppings), Abinee (indústria elétrica e eletrônica), Fenabrave (distribuição de veículos) e o IDV (Instituto para Desenvolvimento do Varejo) e outras 200 associações empresariais – cujo conteúdo reivindica a pacificação da crise entre os três poderes e a necessária retomada do crescimento econômico.(6)
Lembremos do papel decisivo desempenhado por tais setores para o golpe de 2016. O interessante é que, apesar de todo o alarde feito, tal manifesto saiu apenas após o dia 7/09. E por qual motivo? Simples, a Federação Brasileira de Bancos (FEBRAPAN) não aderiu à iniciativa nem antes ou depois desta data e justificou que este tipo de manifestação não lhe cabe. (7) Em consequência, a FIESP e demais entidades recuaram e Paulo Skaf (atual presidente da FIESP) optou por um tom de exclusivo diálogo e a aproximação mais intensa ao presidente. Como consta no Manifesto, intitulado “A Praça é dos Três Poderes”, “o momento exige de todos serenidade, diálogo, pacificação política, estabilidade institucional e, sobretudo, foco em ações e medidas urgentes e necessárias para que o Brasil supere a pandemia, volte a crescer de forma sustentada e continue a gerar empregos. Esta mensagem não se dirige a nenhum dos Poderes especificamente, mas a todos simultaneamente, pois a responsabilidade é conjunta”. (8) Não há aqui qualquer menção ao presidente ou sobre a ameaça por ele feita aos demais poderes.
Podemos extrair deste episódio algumas lições: a existência de um dissenso entre as distintas frações da burguesia acerca do desempenho político/econômico do governo; e a preponderância dos setores burgueses hegemônicos (neste caso, o capital financeiro) sobre as demais frações de menor poderio (e que lhe são diretamente imbricadas), com tendência a centralizá-las.
Antes, o primeiro questionamento público veio por parte do agronegócio. Sete associações,(9) nenhuma das quais diretamente representada pela agropecuária, publicaram na data de 30 de agosto um manifesto em que afirmam “precisar de estabilidade, de segurança jurídica e de harmonia” para trabalhar. Segundo consta no documento, “em uma palavra, é de liberdade que precisamos. É o Estado Democrático de Direito que nos assegura essa liberdade empreendedora essencial numa economia capitalista, o que é o inverso de aventuras radicais, greves e paralisações ilegais, de qualquer politização ou partidarização nociva que, longe de resolver nossos problemas, certamente os agravará“. (10) Em linhas gerais, uma crítica construtiva e cordial ao governo federal, sem alarde na mídia ou maiores divulgações.
Porém, Bolsonaro, mesmo sem o apoio oficial de qualquer fração burguesa e contando apenas com as suas figuras folclóricas – “Véio da Havan”, “Zé Trovão” ou Silvio Santos -, empreende a saga por um autogolpe. Dentre os motivos está a provável derrota eleitoral em 2022 e a longa ficha de crimes cometidos contra os quais terá de se confrontar (as “rachadinhas”, passando por uma série de crimes de responsabilidade, dentre os quais as ameaças ao Congresso, ao STF, e as tentativas de interferência na Polícia Federal).(11) Mas porque Bolsonaro sente-se tão confortável a ponto de realizar uma ostentação fascista de massas, ensaiar um assalto à nação e levar ao ridículo as instituições da República? É simples, como bem lembrou Leandro Demori (The Intercept) (12) porque Bolsonaro “pode” e, assim, testa os limites do nosso frágil “Estado democrático de Direito”. Dentre as razões do porquê Bolsonaro “pode” está o fato de que até o presente momento nenhuma fração burguesa tenha pulado fora do seu barco. Em consequência, vislumbramos as suas recorrentes tentativas de avanço autocrático e recuos pseudo-diplomáticos, cujo maior simbolismo foi a carta redigida por Michel Temer e assinada pelo presidente. Tratou-se de um tratado temporário de paz, uma forma de “baixar a poeira” até a próxima tentativa. Digamos que as tensões intra-burguesas com Bolsonaro e deste com as instituições democráticas do Estado tem se resolvido na tática do pombo-correio.
Sabemos que Bolsonaro não durará para sempre como chefe do Estado, mas não podemos mensurar o quanto será o seu tempo: talvez meses, alguns anos ou mais. Por isso, se põe como urgente para os trabalhadores derrubá-lo. Mas, a derrota de Bolsonaro precisa representar, concomitantemente, a derrota da sua agenda econômica ultraneoliberal. Ou, pelo menos, este deve ser o nosso objetivo. E aqui está posta a tensão no plano geral das lutas de rua. A partir dos escândalos da CPI da COVID e, decisivamente, após os atos antidemocráticos de 7 de setembro, diferentes partidos da burguesia – PSDB, DEM, PSB, PSL, PV e Cidadania – aventaram a possibilidade de encabeçar juntos às demais entidades de oposição ao governo uma campanha pelo impeachment e “Diretas Já” (13). Em paralelo, o MBL e o Movimento “Vem pra Rua” se anteciparam e marcaram um ato no dia 12/09 em São Paulo.
Digamos que pedir “muita calma nessa hora” e respirar fundo para pensar nos próximos passos é um exercício necessário. É natural possuirmos mais dúvidas do que certezas. Infelizmente (ou felizmente), a luta de classes não vem com manuais. Frente a esta caótica (e imprevisível) conjuntura duas questões necessitam ser ponderadas.
A primeira delas é que os partidos burgueses tradicionais buscam retomar o seu lugar na gestão do Estado e, com vistas a tal fim, se afirmam como uma “terceira via” ponderada e racional, capaz de propiciar unidade e segurança às diferentes frações da classe dominante. Para isso desejam descartar o estorvo bolsonarista antes que o povo o faça. A nossa formação social é recorrente em tais episódios. Distinta do padrão clássico europeu, qualquer mudança se efetiva “pelo alto”, de modo a alienar a participação popular, preservar intocáveis privilégios e os padrões exaustivos de exploração. Um impeachment encabeçado por partidos tradicionais da classe dominante assumirá uma dimensão política estéril, reduzida à sua formalidade jurídico-burocrática, institucional, deslocada da crítica à política econômica e das urgentes demandas sociais. Por sua vez, organizações como MBL, “Vem pra Rua” e demais fascistas constrangidos, em nome da própria longevidade política, almejam o divórcio com o seu passado bolsonarista e acenam para qualquer “terceira via” possível em seu palanque. Não é por menos que figuras como Mandetta, Ciro e Amoedo estão entre os convidados ilustres ao ato do dia 12.
Mas, esta crítica não significa a negativa a um pedido de impeachment coletivo junto a tais setores, a recusa da pauta das “Diretas já” ou de uma ampla unidade de ação, dado que a ameaça de golpe permanece, se ampliou após o 07 de Setembro e ameaça a existência das eleições de 2022. Significa que não podemos ser ingênuos. Precisamos manter a direção da luta pelo “Fora Bolsonaro”, politizar acerca de uma possível campanha das “Diretas” e se antecipar às iniciativas da direita, inclusive, em termos do calendário dos atos e manifestações. Serão eles quem terão de escolher em participar dos atos “Fora Bolsonaro”, a partir de uma luta que lhes antecede e com pautas que os ultrapassam e não se restringem aos seus mesquinhos anseios eleitorais. Afinal, é impossível separar a crítica às ações anti-democráticas do governo de uma escolha econômica cuja natureza é em si anti-democrática e que se efetiva através do genocídio, da fome e da violação sistemática dos direitos sociais. Para isso cumpre um papel decisivo a organicidade da Frente Única e a mobilização de massas.
NOTAS
1 – Cf. <https://www.metropoles.com/brasil/burlando-lei-5-426-militares-da-ativa-sao-donos-ou-administram-empresas>; <https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2021/05/13/jair-bolsonaro-golpe-militar-empresas.htm>
2 – Cf. <https://www.correiobraziliense.com.br/economia/2021/05/4923081-lucro-do-setor-financeiro-cresce-durante-a-pandemia.html>; <https://valor.globo.com/financas/noticia/2021/05/19/bancos-se-recuperam-mas-servicos-sao-desafio.ghtml>
3 – Cf. < https://veja.abril.com.br/blog/jose-casado/credit-suisse-concentracao-de-renda-no-brasil-e-recorde >
4 – Cf.< https://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/noticias/2020/setembro/ministerio-da-economia-divulga-lista-dos-setores-mais-afetados-pela-pandemia-da-covid-19-no-brasil >.
5 – Cf. < https://g1.globo.com/economia/noticia/2021/03/03/pib-do-brasil-despenca-41percent-em-2020.ghtml >.
6 – Cf. < https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2021/08/4946579-fiesp-articula-manifesto-para-pedir-pacificacao-entre-os-poderes.html >
7 – Cf. < https://portal.febraban.org.br/noticia/3678/pt-br/ >
8 – Cf. < https://www.istoedinheiro.com.br/fiesp-divulga-manifesto-a-praca-e-dos-tres-poderes-sem-assinatura-da-febraban/ >
9 – a Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), a Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove), a Associação Brasileira das Indústrias de Tecnologia em Nutrição Vegetal (Abisolo), a Associação Brasileira de Produtores de Óleo De Palma (Abrapalma), a CropLife Brasil (entidade ligada a pesquisa, desenvolvimento e inovação nas áreas de germoplasma, biotecnologia, defesa vegetal e agricultura), o Instituto Brasileiro do Algodão (Ibá) e o Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Vegetal (Sindiveg).
10 – Cf. Cf. < https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2021/08/4946734-entidades-ligadas-ao-agronegocio-divulgam-manifesto-em-defesa-da-democracia.html >
11 – Cf. < https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2021/06/30/interna_politica,1282138/veja-os-21-crimes-listados-no-superpedido-de-impeachment-contra-bolsonaro.shtml >
12 – Cf. < https://www.youtube.com/watch?v=t5gmSvm8RRU >
13 – Cf. < https://www.cartacapital.com.br/politica/movimento-planeja-novas-diretas-ja-pelo-impeachment-de-bolsonaro/ >
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