Previamente, divulgamos aqui no Esquerda Online a tradução do artigo “O crescimento da loucura da Grã-Bretanha”, escrito por Marx e publicado no New-York Daily Tribune, em agosto de 1858. Cabe ressaltar que tal artigo, sobre uma temática incomum nas produções marxianas – a loucura e o seu tratamento nos marcos do desenvolvimento capitalista –, veio depois de outro, do próprio Marx, e publicado no mesmo New-York-Daily Tribune, intitulado “A prisão de Lady Buwler-Lytton”. Nele, o autor aborda como a loucura e a lógica de tratamento asilar-manicomial foi utilizada como forma de silenciar e oprimir uma mulher. Marx critica toda a trama sórdida do sequestro e aprisionamento de Rosina Bulwer-Lytton, que teve como justificativa (fachada) a sua dita loucura. Rosina, ou Lady Bulwer-Lytton, foi “diagnosticada” como louca por ter ido às tribunas da Câmara Municipal de Hertford denunciar a conduta espúria de seu ex-marido Edward Bulwer-Lytton, renomado escritor e político conservador da cidade.
Há também no texto uma continuidade com a análise que Marx fez em 1846, a partir dos relatos e registros de Jacques Peuchet, em “Sobre o Suicídio”, acerca da opressão à mulher. Nisso, nos permite compreender como a dominação na sociabilidade capitalista não se pauta apenas nas relações de exploração, afinal se tratava de uma mulher da burguesia inglesa (assim como dois dos quatro casos de Sobre o Suicídio se tratavam de mulheres da burguesia francesa).
Associado a isso, é possível extrair uma crítica a como a lógica manicomial-asilar se imbrica às estruturas opressivas, se tratando de uma extensão das mesmas, atingindo os indivíduos de maneira diferenciada de acordo com suas singularidades, nas mediações das particularidades sociais; no caso de Rosina Bulwer-Lytton, o fato de ser mulher e ter se voltado contra seu ex-marido poderoso. Ela, enquanto suposto “alvo” do tratamento, isto é, a pessoa a ser cuidada, foi, na verdade, o alvo da violência, com o cuidado sendo, portanto, orientado a seu ex-marido, o que demonstra a que e quem o seu diagnóstico de loucura e consequente “tratamento” serviram; a que e quem eles protegeram.
Conforme destacado no texto por Marx: “A circunstância mais importante é: Enquanto Sir Edward falou, Lady Bulwer manteve silêncio” ou foi silenciada, conforme é possível presumir do restante do texto e indagações marxianas. A psiquiatria, o manicômio como continuidades de silenciamento desta mulher, possibilitando a continuidade de fala e exercício de poder do homem – e da estrutura patriarcal-burguesa.
Por isso, teimamos em repetir: manicômio nunca mais!
A PRISÃO DE LADY BUWLER-LYTTON
Karl Marx
New-York Daily Tribune, 23 de julho de 1858 [1]
O grande escândalo Bulwer [2], que o The London Times pensou ter sido “felizmente” abafado por um arranjo familiar amigável, está longe de ter caído em um estado de quietude. É verdade que, apesar do grande interesse partidário envolvido, a imprensa metropolitana, com algumas exceções insignificantes, fez tudo ao seu alcance para abafar o caso por meio de uma conspiração do silêncio – sendo Sir Edward Bulwer um dos chefes do círculo literário, que, despoticamente, domina mais as cabeças dos jornalistas Londres do que suas ligações partidárias, e para afrontar abertamente aqueles cavalheiros da ira literária que geralmente carecem da coragem necessária. O jornal The Morning Post primeiramente informou ao público que os amigos de Lady Bulwer pretendiam insistir na investigação legal [3]; O London Times reimprimiu o curto parágrafo do The Morning Post [4], e mesmo o The Advertiser, embora certamente não tenha uma posição a arriscar, não se aventurou além de alguns trechos do The Somerset Gazette. Mesmo a influência de Palmerston [5] provou-se inútil no momento para extorquir qualquer coisa de seus lacaios literários, e no aparecimento da carta petulantemente apologética do filho de Bulwer, todos esses guardiões públicos da liberdade do tema, enquanto se declaravam altamente satisfeitos, depreciavam qualquer outra intrusão indelicada no “delicado assunto”. A imprensa conservadora [tory], é claro, há muito tempo gastou toda a sua indignação virtuosa em nome de Lorde Clanricarde [6], e a imprensa radical, que mais ou menos recebe suas inspirações da Escola de Manchester [7], evita ansiosamente criar qualquer constrangimento para o atual governo. No entanto, junto com a imprensa respeitável da metrópole, ou pretensamente respeitável, existe uma imprensa irrespeitável, influenciada totalmente por seus patrocinadores políticos, sem reputação literária para criticá-los, sempre pronta para ganhar dinheiro com seu privilégio de liberdade de expressão, e ansiosa por aproveitar a oportunidade de aparecer aos olhos do público como os últimos representantes da masculinidade. Por outro lado, uma vez despertados os instintos morais da maior parte do povo, não haverá necessidade de mais manobras. Uma vez trabalhada a excitação moral da consciência pública, até mesmo o The London Times pode tirar sua máscara de discrição e, com o coração sangrando, é claro, esfaquear a administração de Derby [8] ao pronunciar como sentença de “opinião pública” a opinião de um literato influente como Sir Edward Bulwer-Lytton.
Esta é exatamente a direção que as coisas estão tomando agora. Que Lorde Palmerston, como sugerimos anteriormente [9], é o administrador secreto do espetáculo que agora é um segredo conhecido por todos [un secret qui court les rues], como dizem os franceses.
“É dito” [“On dit”], reporta um semanário londrino, “que a melhor amiga de Lady Bulwer-Lytton neste caso foi Lady Palmerston. Todos nós nos lembramos de como os conservadores [tories] tomaram partido pelo Sr. Norton quando Lord Melbourne teve problemas por causa da esposa daquele cavalheiro. Olho por olho é jogo limpo. Mas, pensando bem, é bastante triste a esta hora do dia encontrar um Secretário de Estado usando a influência de sua posição para cometer atos de opressão, e a esposa de um Ministro jogando a esposa de outro Ministro contra uma administração.”
Muitas vezes, é apenas pelas formas tortuosas da intriga política que a verdade passa a ser contrabandeada para algum canto da imprensa britânica. O horror aparentemente generoso de um ultraje real é, afinal, apenas uma careta calculada; e a justiça pública só é apelada para alimentar a malícia privada. Lady Bulwer poderia ter permanecido para sempre em um asilo para loucos, em Londres, sem que os cavaleiros cavalheirescos do tinteiro [10] se importassem com isso; ela poderia ter sido eliminada de forma mais discreta do que em São Petersburgo ou Viena; as conveniências do decoro literário a teriam alijado de qualquer meio de reparação, exceto pela feliz circunstância dos olhos perspicazes de Palmerston destacando-a como a ponta de lança para possivelmente dividir a administração conservadora [tory].
Uma breve análise da carta do filho dos Bulwer aos jornais de Londres ajuda bastante a elucidar o verdadeiro estado do caso. O Sr. Robert B. Lytton começa afirmando que sua “simples afirmação” deve ser “imediatamente acreditada”, porque ele é “o filho de Lady Bulwer-Lytton, quem mais tem direito de falar em seu nome e, obviamente, com o melhor meio de informação.” Bem, este filho tão afetuoso não cuidou de sua mãe, nem se correspondeu com ela, nem a viu, por quase dezessete anos, até que a conheceu nos palanques em Hertford, por ocasião da reeleição de seu pai. Quando Lady Bulwer deixou o prédio e visitou o prefeito de Hertford a fim de solicitar o uso da Câmara Municipal para uma fala, o Sr. Robert B. Lytton enviou um médico à casa do prefeito com a missão de tomar conhecimento do estado da mente da mãe. Quando, posteriormente, sua mãe foi sequestrada em Londres, na casa do Sr. Hale Thompson, na rua Clarges, e sua prima, a Srta. Ryves, correu para a rua e, ao ver o Sr. Lytton esperando do lado de fora, implorou-lhe para interferir e obter ajuda para que sua mãe não fosse levada para Brentford, o Sr. Lytton friamente negou ter algo a ver com o assunto. Tendo atuado primeiramente como um dos principais agentes da trama traçada por seu pai, ele agora muda de lado e se apresenta como o porta-voz natural de sua mãe. O segundo ponto alegado pelo Sr. Lytton é que sua mãe “em nenhum momento foi levada a um asilo para loucos”, mas, ao contrário, para a “casa particular” do cirurgião [surgeon] [11] Sr. Robert Gardiner Hill. Este é um mero eufemismo. Como a “Casa Wyke”, conduzida pelo Sr. Hill, legalmente não pertence à categoria de “asilos”, mas de “Residências Metropolitanas Licenciadas”, é literalmente verdade que Lady Bulwer foi jogada, não em um “asilo para loucos”, mas em uma residência para loucos.
Surgeon Hill, que tem seus próprios negócios sobre a “loucura” [12], também apresentou uma justificativa, na qual afirma que Lady Bulwer nunca foi trancada, mas, pelo contrário, desfrutou do uso de uma carruagem e dirigiu quase todas as noites durante sua detenção em Richmond, Acton, Hanwell ou Isleworth. O Sr. Hill se esquece de dizer ao público que esse “tratamento melhorado aos loucos”, adotado por ele, corresponde exatamente à recomendação oficial dos Comissários sobre a Loucura [Comissioners in Lunacy] [13]. As caretas amigáveis, a paciência sorridente, a persuasão infantil, a tagarelice oleosa, as piscadelas e a serenidade afetada de um bando de cuidadores treinados podem levar uma mulher sensível à loucura, assim como duchas de água, camisas de força, carcereiros brutais e enfermarias escuras. Seja como for, os protestos por parte do Sr. Surgeon Hill e do Sr. Lytton equivalem simplesmente a isso, que Lady Bulwer foi tratada como uma louca de fato, mas segundo as regras do novo sistema em vez do antigo.
“Eu”, diz o Sr. Lytton, em sua carta, “coloquei-me em constante comunicação com minha mãe, … e cumpri as obrigações de meu pai, que me confidenciou implicitamente todos os arranjos … e me recomendou a usar do conselho de Lord Shaftesbury no que for considerado melhor e mais gentil com Lady Lytton.”
É de conhecimento de todos que Lord Shaftesbury é o comandante-chefe do agrupamento, que tem sua sede em Exeter Hall [14]. Retirar o mau-cheiro desse processo sujo com o odor da santidade, pode ser considerado um golpe de teatro [coup de théâtre] digno do gênio inventivo de um escritor de romance. Mais de uma vez, nos negócios chineses, por exemplo, e na conspiração da Cambridge House, utilizaram os serviços de Lord Shaftesbury nessa perspectiva. No entanto, o Sr. Lytton confidencia ao público apenas a metade, caso contrário ele teria dito claramente que, durante o sequestro de sua mãe, uma nota taxativa de Lady Palmerston perturbou os planos de Sir Edward e o induziu a “valer-se do conselho de Lord Shaftesbury,” que, por um infortúnio particular, passa a ser ao mesmo tempo genro de Palmerston e Presidente dos Comissários sobre a Loucura… Em sua tentativa de mistificar o acontecido, o Sr. Lytton passa a declarar:
“A partir do momento em que meu pai se sentiu compelido a autorizar aquelas etapas que foram objeto de tantas deturpações, sua ansiedade foi obter a opinião dos médicos mais experientes e capazes, a fim de que minha mãe não fosse sujeita a restrições por um momento a mais do que era estritamente justificável. Essa foi a incumbência dada a mim.”
A partir da redação evasiva desta passagem cuidadosamente esquisita, parece, então, que Sir Edward Bulwer sentiu a necessidade de aconselhamento médico autorizado, não para sequestrar sua esposa como louca, mas para libertá-la como mente sã [mentis compos].
Na verdade, os médicos que consentiram o sequestro de Lady Bulwer eram tudo, menos “os médicos mais experientes e capazes”. Os especialistas empregados por Sir Edward eram um certo Sr. Ross, um farmacêutico da cidade, cuja licença para comercializar remédios [drugs] parece ter sido convertida de uma vez em uma iluminação psicológica, e um certo Sr. Hale Thompson, anteriormente ligado ao Hospital Westminster, mas um completo estranho ao mundo científico. Apenas depois de uma leve pressão externa, deixando Sir Edward ansioso para refazer seus passos, que ele se dirigiu a homens de posição médica. Seu filho publicou os diplomas destes médicos – mas o que eles provam? O Dr. Forbes Winslow, editor do “The Journal of Psychological Medicine”, que já havia sido consultado pelos consultores jurídicos de Lady Bulwer, certifica que, “tendo examinado Lady B. Lytton quanto ao seu estado mental”, achou “justificada sua libertação da restrição.” [15] A questão a ser provada ao público não era a liberação de Lady Bulwer, mas, ao contrário, sua restrição que era justificada. O Sr. Lytton não ousa tocar neste ponto delicado e decisivo. Não seria risível que um oficial de polícia [con-stable], acusado de prisão ilegal de uma britânica [free born Briton], alegasse que não havia cometido nenhum erro ao libertar seu prisioneiro? Mas será que Lady Bulwer está realmente em liberdade?
“Minha mãe”, continua o Sr. Lytton, “está agora comigo, livre de qualquer restrição, e, por seu próprio desejo, prestes a viajar por um curto período de tempo, na minha companhia e de uma amiga e parente, escolhida por ela mesma.”
A carta do Sr. Lytton é tem como endereço “Nº 1 Park Lane”, isto é, a residência de seu pai na cidade. Será que Lady Bulwer foi, então, removida de seu local de confinamento em Brentford para um local de confinamento em Londres, sendo fisicamente entregue a um inimigo exasperado? Quem garante que ela esteja “livre de qualquer restrição?” Em todo caso, ao assinar o compromisso proposto, ela não estava livre de restrições, mas sofrendo com o sistema aprimorado de Surgeon Hill. A circunstância mais importante é: Enquanto Sir Edward falou, Lady Bulwer manteve silêncio. Nenhuma declaração de sua parte, sendo que o exercício literário é comum a ela, alcançou os olhos do público. Um relato escrito por ela mesma, sobre seu próprio tratamento, foi habilmente retirado das mãos do indivíduo a quem ela havia endereçado.
Qualquer que seja o acordo firmado entre o marido e a esposa, a questão para o público britânico é se, sob o manto da Lei sobre a Loucura [Lunacy Act], mandados de busca e prisão [lettres de cachet] [16] podem ser emitidas por indivíduos inescrupulosos capazes de pagar taxas tentadoras a dois médicos inescrupulosos
Outra questão é se um Secretário de Estado pode tolerar um crime público por meio de um acordo privado. Verificou-se agora que, durante o presente ano, enquanto se investigava o estado de um manicômio de Yorkshire, os comissários da loucura descobriram um homem, em plena posse de suas faculdades mentais, que, por vários anos, havia sido aprisionado e segregado em um porão. Em um questionamento do Sr. Fitzroy sobre o caso na Câmara dos Comuns [House of Commons], o Sr. Walpole respondeu que não havia encontrado “nenhum registro do fato”, uma resposta que nega o registro, mas não o fato. Pode-se inferir que as coisas não ficarão dessa forma a partir do aviso do Sr. Tite que “no início da sessão do dia seguinte ele apresentaria um comitê seleto para investigar as ações da Lei sobre a Loucura [Lunacy Act].”
*Pedro Henrique Antunes da Costa é professor de psicologia e militante da Resistência, Juiz de Fora/MG.
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