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TEORIA

Um Marx antimanicomial?

Pedro Henrique Antunes da Costa*, de Juiz de Fora, MG

Memoriam em homenagem a Karl Marx no Cemitério do Norte de Londres, Reiuno Unido

No presente artigo, publicado no New-York Daily Tribune, em 20 de agosto de 1858, Marx faz uma de suas raras incursões sobre o mundo da loucura. Apesar de curto, nele, nos fornece, desde o início – já no primeiro parágrafo –, subsídios para compreendermos a determinação social da loucura, isto é, seu caráter social, enquanto manifestação ou desdobramento do que se trata na tradição marxista por “questão social” (grosso modo, o conjunto de expressões da contradição capital-trabalho e da condição necessariamente desigual do capitalismo). Além disso, Marx também tece uma crítica às formas asilares e coercitivas de compreensão e tratamento da loucura de sua época, o que, inclusive, nos permite apontar que, nela, existem germens ou protoformas de crítica e oposição ao que se desenvolveu posteriormente (a partir de meados do século XX) como antipsiquiatria ou movimento antimanicomial.

Mesmo Marx não sendo um analista, teórico ou historiador da loucura, sua teoria social e análise totalizante mostram-se relevantes para a crítica da produção da loucura no modo de produção capitalista, e como ela é hegemonicamente compreendida e “tratada” a partir da lógica asilar-manicomial que se fundamenta no saber e prática psiquiátrica. Nisso, podemos derivar (e fundamentar) a crítica do manicômio na própria crítica ao modo de produção da vida que se expressa – e perpetua – no/pelo mesmo manicômio; que o tem como forma de manifestar a sua condição exploratória, opressiva, reificada e alienante. 

Se olharmos para o atual estágio de desenvolvimento capitalista na particularidade brasileira, constatamos, por um lado, que, com a intensificação da crise, a saída do capital se orienta para a precarização das condições de vida classe trabalhadora – e, com isso, a produção de ainda mais sofrimento; e, por outro, que as respostas a esse panorama pelo campo da saúde mental são atravessadas por um conjunto de retrocessos – o que vem sendo denominado de Contrarreforma Psiquiátrica –, com ganho de força da lógica manicomial (que também é mercantil) e do próprio manicômio como instituição, ressurgindo sob “novas” formas, via Comunidades Terapêuticas, Hospitais Psiquiátricos etc. e fundamentados em “novos” discursos e “novas” aparências tecnicistas da suposta neutralidade e imparcialidade da técnica – posta à serviço da ordem. Em face disso, a análise marxiana, mesmo que situada em meados do século XIX e na Europa Ocidental, nos possibilita constatar que esse “novo” se trata do “velho”. Independentemente das maquiagens ou mesmo de não se apresentarem mais de maneira tão venal como suas formas de outrora, a essência, o conteúdo violento – e inaceitável – permanecem. Se não é possível afirmar um Marx antimanicomial, até porque seria um anacronismo, vide que tal movimento germina e se desenvolve no decorrer do século XXI, temos em Marx gérmens e fundamentos para uma práxis antimanicomial radical e revolucionária no presente.

Manicômio nunca mais!

 

O CRESCIMENTO DA LOUCURA NA GRÃ-BRETANHA

Karl Marx

New-York Daily Tribune, 20 de Agosto de 1858 (1)

Não há, talvez, fato mais bem estabelecido na sociedade britânica do que o correspondente crescimento da riqueza moderna e do pauperismo. Curiosamente, a mesma lei parece valer com respeito à loucura (2). O aumento da loucura na Grã-Bretanha acompanhou o aumento das exportações e ultrapassou o aumento da população. Seu rápido progresso na Inglaterra e no País de Gales durante o período que se estende de 1852 a 1857, um período de prosperidade comercial sem precedentes, ficará evidente a partir da seguinte comparação tabular dos números anuais de indigentes e loucos nos anos de 1852, 1854 e 1857 (3):

DataPopulaçãoPacientes em asilos do condado ou municipaisEm instituições residenciais licenciadasNas workhousesCom amigos ou em outros lugaresTotal de loucosProporção da população
Jan. 1, 185217.927.6099.4122.5845.0554.10721.1581 em 847
Jan. 1, 185418.649.84911.9561.8785.7134.94024.4871 em 762
Jan. 1, 185719.408.46413.4881.9086.8005.49727.6931 em 701

 

A proporção de casos agudos e curáveis para aqueles de tipo crônico e aparentemente incuráveis foi, no último dia de 1856, estimada em pouco menos que 1 em 5, de acordo com o seguinte resumo de declarações oficiais:

Pacientes de todos os tipos em asilosConsiderados curáveis
Em asilos do condado ou município14,3932.070
Em hospitais1,742340
Em instituições residenciais metropolitanas licenciadas2,578390
Em instituições residenciais de província licenciadas2,598527
Total21.3113.327
Considerados curáveis3.327
Considerados incuráveis17.984

 

Na Inglaterra e no País de Gales existem, para acomodação de loucos de todos os tipos e de todas as classes, 37 asilos públicos, dos quais 33 são de condados e 4 municipais; 15 hospitais; 116 serviços residenciais particulares licenciados, dos quais 37 são metropolitanos e 79 provinciais; e por último, as workhouses. Os asilos públicos, ou asilos para loucos propriamente ditos (4), eram, por lei, exclusivamente destinados ao acolhimento dos loucos pobres, para serem utilizados como hospitais para tratamento médico, e não como locais seguros para a mera custódia de loucos. De modo geral, pelo menos nos condados, podem ser considerados estabelecimentos bem regulamentados, embora de construção extensa demais para serem devidamente supervisionados, superlotados, carentes da separação cuidadosa das diferentes classes de pacientes, e ainda assim incapazes de acomodar aproximadamente mais da metade dos loucos pobres. Afinal, o espaço proporcionado por esses 37 estabelecimentos, espalhados por todo o país, seria suficiente para abrigar mais de 15.690 internos. A pressão sobre esses asilos caros por parte da população lunática pode ser ilustrada por um caso. Quando, em 1831, Hanwell (em Middlesex) foi construído para 500 pacientes, supunha-se que era grande o suficiente para atender todas as necessidades do condado. Mas, dois anos depois, estava cheio; depois de mais dois anos, teve de ser ampliado para mais 300 [pacientes]; e neste momento (enquanto isso, Colney Hatch foi construído para receber 1.200 indigentes loucos pertencentes ao mesmo condado) Hanwell contém mais de 1.000 pacientes. Colney Hatch foi inaugurado em 1851; dentro de um período de menos de cinco anos, tornou-se necessário apelar aos contribuintes [rate-payers] para acomodação adicional; e os últimos resultados mostram que no final de 1856 havia mais de 1.100 loucos indigentes pertencentes ao condado sem provisão de tratamento em qualquer um de seus asilos. Embora os asilos existentes sejam muito grandes para serem administrados adequadamente, seu número é muito pequeno para atender à rápida disseminação de transtornos mentais. Acima de tudo, os asilos devem ser separados em duas categorias distintas: asilos para os incuráveis, hospitais para os curáveis. Ao amontoar as duas classes, nenhuma recebe o tratamento e a cura adequados.

As residências privadas licenciadas são, em geral, reservadas para a porção mais abastada dos loucos. Contra esses “retiros confortáveis”, como eles gostam de se chamar, a indignação pública foi recentemente levantada pelo sequestro de Lady Bulwer em Wyke House (5) e os atrozes ultrajes cometidos contra a Sra. Turner em Acomb House, York. Sendo iminente uma investigação parlamentar sobre os segredos do comércio da loucura britânica, podemos nos referir a essa parte do assunto a seguir. Por ora, vamos chamar a atenção apenas para o tratamento dado aos 2.000 pobres loucos, que, por meio de contrato, o Conselho de Guardiães [Body of Guardians] e outras autoridades locais concederam aos administradores de residências privadas licenciadas. A tarifa semanal per capita para manutenção, tratamento e vestimentas, destinada a esses contratantes privados [donos das residências], varia de cinco a doze xelins, mas o subsídio médio pode ser estimado entre 5 a 8 xelins e 4 pence. Todo o planejamento dos contratantes consiste, é claro, no único ponto de fazer grandes lucros com essas pequenas receitas e, consequentemente, de manter o paciente com o menor gasto possível. Em seu último relatório, os Comissários da Loucura (6) afirmam que mesmo quando os meios de acomodação nessas casas licenciadas são grandes e amplos, a acomodação real oferecida é uma mera farsa e o tratamento dado aos internos uma vergonha.

É verdade que o Lord Chancellor (7) tem o poder de revogar uma licença ou de impedir sua renovação, a conselho dos Comissários da Loucura; mas, em muitos casos, onde não existe asilo público na vizinhança, ou onde o asilo existente já está superlotado, nenhuma alternativa foi deixada aos comissários a não ser impedir que a licença continuasse, ou jogar grandes massas de pobres loucos em suas várias workhouses. Ainda assim, os mesmos comissários acrescentam que, por maiores que sejam os males das instituições licenciadas, eles não são tão grandes quanto o perigo e o mal combinados de deixar esses indigentes quase descuidados nas workhouses. Nestas, cerca de 7.000 loucos estão atualmente confinados. No início, as enfermarias para loucos nas workhouses restringiam-se à recepção dos loucos indigentes, que exigiam pouco mais do que a acomodação comum, e eram capazes de se associar com os outros internos. Seja pela dificuldade de conseguir a admissão de seus pobres loucos em manicômios devidamente regulamentados, seja por motivos de economia de gastos, as juntas paroquiais estão transformando cada vez mais as workhouses não apenas em asilos para loucos, como em asilos com carências no atendimento, no tratamento e na fiscalização, constituindo a principal salvaguarda dos pacientes internados em asilos regularmente em funcionamento. Das maiores workhouses, muitas têm enfermarias para loucos contendo de 40 a 120 internos. As enfermarias são sombrias e desprovidas de qualquer meio de ocupação, exercício ou diversão. Os profissionais são, em sua maioria, internos indigentes, totalmente inaptos para as tarefas que lhes são impostas. A dieta, acima de tudo essencial para os objetos infelizes da doença mental, raramente supera o permitido, em qualquer caso, para que os internos sejam sãos ​​e saudáveis. Portanto, é um resultado natural que a detenção em workhouses não apenas piore os casos não tão agudos de loucura [harmless imbecility] para os quais foi originalmente planejada, mas tem a tendência de cronificar e tornar permanentes os casos que deveriam ter sido tratados por cuidados precoces. O princípio decisivo para os Conselhos de Guardiães é a economia.

De acordo com a lei, o louco indigente deve primeiro ficar sob os cuidados do cirurgião da paróquia distrital, que é obrigado a avisar os oficiais substitutos, por quem a comunicação deve ser feita ao magistrado, sob cuja ordem devem transmitir ao asilo. Na verdade, essas disposições são totalmente desconsideradas. Os pobres loucos são, em primeira instância, levados às pressas para as workhouses, para serem detidos lá permanentemente, se forem considerados controláveis. A recomendação dos Comissários da Loucura, durante as suas visitas às workhouses, de remover para os asilos todos os reclusos considerados curáveis sob a pena de serem expostos a tratamentos inadequados ao seu estado, é geralmente substituída pelo relatório do oficial médico da União, no sentido de que o paciente é “inofensivo”. O que a acomodação em uma workhouse é, pode ser entendido a partir das seguintes ilustrações – descritas no último Relatório da Loucura [Lunacy Report] como “exibindo fielmente as características gerais da acomodação em uma casa de trabalho”.

No Asilo da Enfermaria de Norwich, os leitos até mesmo dos doentes e enfermos eram de palha. O piso de treze pequenos cômodos era de pedra. Não havia descargas. A vigília noturna do lado masculino foi interrompida. Havia uma grande carência de cobertores, de toalhas, de flanelas, de coletes, de lavatórios, de cadeiras, de pratos, de colheres e de refeitórios. A ventilação era ruim. Citamos:

“Tampouco havia alguma fé a ser depositada no que, aparentemente, poderia ser considerado como melhoria. Descobriu-se, por exemplo, que em referência a um número considerável de leitos ocupados por pacientes sujos, existe a prática de retirá-los pela manhã e de substituir, apenas para exibição durante o dia, leitos limpos e de melhor aparência, por meio de lençóis e cobertores colocados nas cabeceiras, que eram regularmente retirados à noite, com as camas inferiores substituídas.”

Tome-se, como outro exemplo, a Blackburn Workhouse:

“As enfermarias do andar térreo, ocupadas por homens, são pequenas, baixas, sombrias e sujas, e o espaço para 11 pacientes é ocupado sobretudo por várias cadeiras pesadas, nas quais os pacientes são confinados por meio de amarras, e um grande guarda-fogo (8) de projeção. Os das mulheres, no andar de cima, também estão muito lotados, e um, que também é usado como quarto, tem uma grande parte fechada, dada como privativa; e as camas são colocadas juntas, sem nenhum espaço entre elas. Um quarto com 16 pacientes homens era fechado e repulsivo. A sala tem 29 pés de comprimento, 17 pés e 10 polegadas de largura e 7 pés e 5 polegadas de altura, permitindo, assim, 2,39 (9) pés cúbicos para cada paciente. Todas as camas são de palha e nenhuma outra descrição é fornecida para pacientes enfermos ou acamados. As caixas estavam geralmente muito sujas e marcadas pelas ripas de ferro enferrujadas das cabeceiras das camas. O cuidado com as camas parece ser deixado principalmente para os pacientes. Grande parte dos pacientes tem hábitos sujos, o que se deve principalmente à falta de cuidados e atenção adequados. Muitos poucos utensílios são fornecidos, e uma banheira deve ser colocada no centro do grande dormitório para uso dos pacientes homens. São dois pátios de cascalho para cada sexo, por onde caminham os pacientes, cercados por muros altos e sem assentos. O maior destes tem 74 pés de comprimento, 30 pés por 7 polegadas de largura, e o menor, 32 pés por 17 pés e 6 polegadas. Uma cela em um dos pátios é ocasionalmente usada para isolar pacientes excitados. É inteiramente construída em pedra, e possui uma pequena abertura quadrada para a admissão de luz, com barras de ferro deixadas para impedir a fuga do paciente, mas sem veneziana ou batente [da janela]. Uma grande cama de palha estava no chão e uma cadeira pesada em um canto do quarto. O controle total do departamento está nas mãos de um atendente e da enfermeira: o chefe raramente interfere, nem inspeciona isso tão de perto como faz com outras partes da workhouse.”

Seria muito repugnante fornecer trechos do relatório dos comissários sobre a St. Pancras Workhouse em Londres, uma espécie de pandemônio rebaixado. De modo geral, existem poucos estábulos ingleses que, ao lado das enfermarias dos lunáticos nos asilos, não apareceriam boudoirs (10), e onde o tratamento recebido pelos quadrúpedes não pode ser chamado de sentimental quando comparado ao dos pobres loucos.

*Pedro Henrique Antunes da Costa. Professor de Psicologia e militante da Resistência, Juiz de Fora/MG.

NOTAS

(1) Tradução feita direta do inglês (https://www.marxists.org/archive/marx/works/1858/08/20.htm) e cotejada com a tradução existente em espanhol feita por Ricardo Abduca (presente em Acerca del Suicidio, 2011, Las cuarenta editorial, organização de Ricardo Abduca)
(2) Dadas as especificidades da língua portuguesa no Brasil e configuração do campo da saúde mental no país, resolvemos traduzir como loucura os termos: demency, lunacy, insanity, e outros usados por Marx como correlatos. Isso vale para a caracterização dos sujeitos (lunatics, insane, idiots etc.), como loucos, sem nenhum juízo de valor ou sentido pejorativo
(3) Casas de trabalho. Instituições voltadas ao abrigamento de indigentes (paupers) condicionada ao trabalho em condições degradantes e à punição.
(4) Instituições próximas aos manicômios, tal como denominamos no Brasil.
(5) Rosina Bulwr-Lytton foi diagnosticada como louca, sequestrada e enclausurada após denunciar a conduta de seu ex-marido Edward Bulwer-Lytton, renomado escritor e político conservador. Duas semanas antes do presente artigo, Marx publicou no mesmo New-York Daily Tribune, um artigo sobre o caso, criticando toda a conduta e condução do mesmo.
(6) Lunacy Comissioners. Atores estatais responsáveis pela implementação e fiscalização das leis sobre a loucura, como, por exemplo, a Lunacy Act, instituída em 1845, a qual Marx se refere no texto.  
(7) Segundo mais importante cargo na hierarquia do Estado britânico, atrás apenas do Lord High Steward. O Lorde Chancelor é apontado pelo soberano britânico a conselho do Primeiro-Ministro
(8) Estrutura de metal que é colocada na frente de lareiras para evitar que lenha ou carvão caiam.
(9) Um equivale a 30,48cm.
(10) Cômodo (quarto, sala de estar ou salão de beleza privado) cheio de requintes, bastante comum com as mulheres das classes mais abastadas da época.